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Como a Câmara de Lisboa pode perder mais de 300 milhões para a Bragaparques

Ninguém sai bem do caso Feira Popular/Parque Mayer. Santana Lopes, Carmona Rodrigues e António Costa — todos surgem num processo que pode custar mais de 300 milhões à cidade de Lisboa.

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Este é um daqueles processos em que ninguém sai bem na fotografia. Presidentes de câmara, vereadores, assessores, partidos, diretores municipais ou meros funcionários públicos — a descoordenação entre todos aqueles que deviam representar o interesse público na Câmara Municipal de Lisboa (CML) foi total e absoluta. Com uma consequência: o pagamento de uma indemnização colossal a uma empresa privada.

Falamos do processo Parque Mayer/Feira Popular e da indemnização de mais de 239,6 milhões de euros que a CML se arrisca a pagar à empresa Bragaparques, caso o Supremo Tribunal Administrativo confirme a sentença do Tribunal Arbitral conhecida há mais de três semanas. Tudo por causa do negócio de troca de terrenos da autarquia na Feira Popular com os imóveis do Parque Mayer detidos pela Bragaparques e das respetivas operações urbanísticas promovidas pela autarquia.

É igualmente certo que aquele custo (239,6 milhões de euros) não é o final, já que temos de somar outros valores que já foram pagos, relacionados com a passagem dos terrenos da Feira Popular para a esfera da autarquia:

  • Indemnizações para os comerciantes da Feira Popular: 20,4 milhões de euros
  • Indemnizações para a Fundação O Século entre 2003 e 2010: 18,2 milhões de euros
  • Valor pago ao Fundo Especial de Transportes Terrestres pela reversão de uma parcela da Feira Popular que não era da autarquia: 1,5 milhões de euros
  • Remunerações pagas pela EPUL ao arquiteto Frank Ghery para a requalificação do Parque Mayer: 2,5 milhões de euros

Subtotal: cerca de 42,6 milhões de euros.

O que pode fazer subir a fatura total da CML como dossiê Parque Mayer/Feira Popular para um valor eventual de cerca de 280,6 milhões de euros. E, mesmo assim, este valor é conservador. Quanto mais tempo levar a decidir o recurso que a autarquia diz querer interpor no Supremo, mais juros de mora serão contados a partir de 2005 (a data em que o negócio foi concretizado entre a autarquia e a Bragaparques), o que poderá fazer com que, no caso de nova derrota, a fatura dispare para valores superiores a 300 milhões de euros.

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As culpas…

Apesar de as decisões-chave deste dossiê terem sido tomadas entre 2002 e 2007 pelos Executivos PSD/CDS liderados por Santana Lopes e Carmona Rodrigues, certo é que a vereação de António Costa entre 2007 e 2015 tem tanta responsabilidade pelo resultado final (os mais de 239,6 milhões de euros de indemnização) quanto os social-democratas.

Quem o diz é o próprio Tribunal Arbitral, que decidiu a 20 de outubro condenar a CML ao pagamento de mais de 138 milhões de euros — valor que acresce aos cerca de 101,6 milhões de euros que a autarquia liderada por António Costa já tinha acordado pagar em 2014 à Bragaparques. Esta empresa reclamava cerca de 345 milhões de euros de prejuízos.

Apesar das decisões-chave deste dossiê terem sido tomadas entre 2002 e 2007 pelos Executivos PPD/PSD, certo é que a vereação de António Costa entre 2007 e 2015 tem tanta responsabilidade pelo resultado final quanto os social-democratas. Quem o diz é o Tribunal Arbitral que condenou a autarquia há 15 dias.

No acórdão assinado por António Menezes Cordeiro, Miguel Catela e Luís Cortes Martins, e sem acolher nenhuma das teses levadas a tribunal pela autarquia e pela Bragaparques, os executivos de Santana Lopes e de Carmona Rodrigues são censurados por terem promovido “uma situação de confiança que levou a demandante Parque Mayer [do Grupo Bragaparques] a acreditar e a investir num cenário de viabilidade jurídica do empreendimento”. Isto é, o tribunal considerou que, tendo em conta as irregularidades que foram detetadas mais tarde, tal relação de confiança “não devia ter sido criada”, lê-se no acórdão a que o Observador teve acesso.

Mas António Costa, de acordo com o tribunal, também não sai bem na fotografia, já que deveria “levar até ao fim a execução do contratado. Apurando-se irregularidades no processo municipal, totalmente sob controlo do município, cabia a este tomar todas as medidas para as corrigir: aprovar um loteamento correto, organizar uma hasta pública válida e assim por diante”. Isto é, em vez de se ter aliado a José Sá Fernandes na ação popular que ditou a condenação da CML por diversas irregularidades e a anulação do negócio de permuta estabelecido com a Bragaparques, Costa deveria ter retificado as ilegalidades que tinham sido detetadas.

Isto porque “a ilicitude em que incorre o município” deve-se ao facto “de não ter observado perante a Parque Mayer os deveres de cuidado e de lealdade necessários para que o empreendimento da Feira Popular seguisse o seu rumo, à luz do mercado”, lê-se no acórdão.

Por isso mesmo, o tribunal considera que “as delongas no processo, as eventuais ilegalidades perpetradas pelos serviços do município” nos mandatos de Santana Lopes e de Carmona Rodrigues “e a postura final” do Executivo de António Costa “de vir, em juízo” em nome da autarquia, “atacar os atos que ele próprio [o município] celebrara, traduziram-se em violações dos bens contratualmente protegidos”.

O raciocínio do Tribunal Arbitral pode ser simplificado da seguinte forma:

  • A autarquia acordou de livre vontade dois contratos com a Bragaparques: permutou o Lote 1 e vendeu o Lote 2, ambos da Feira Popular, para a construção de um empreendimento imobiliário de habitação e de serviços;
  • Promoveu uma operação de loteamento para a construção desse empreendimento;
  • Não cumpriu os dois contratos devido a irregularidades detetadas;
  • Mas também não retificou essas irregularidades — quando podia e devia tê-lo feito;
  • Logo, está em causa dois contratos que não foram executados, mercê do incumprimento por parte da autarquia;
  • “Os danos a revelar são os do incumprimento” da CML, lê-se na decisão do Tribunal.

O Observador instou o gabinete de Fernando Medina, o sucessor de António Costa como edil lisboeta, a contestar esta leitura dos factos. “A decisão do Tribunal Arbitral não é definitiva. Dela cabe recurso para o Tribunal Central Administrativo. A Câmara Municipal discorda da decisão e da sua fundamentação e por isso vai obviamente recorrer”, afirma fonte oficial da CML.

A mesma fonte assegura que, ao contrário do que diz o Tribunal Arbitral, “não era possível ‘rectificar’ nulidades – aliás o que é nulo é insuscetível de retificação. O Tribunal Central Administrativo considerou que o loteamento de 2005 era nulo e que, portanto, nem existia lote que pudesse ser permutado com a Bragaparques”. A autarquia considera mesmo que “não há ‘estragos’ da CML. O município é proprietário da Feira Popular e do Parque Mayer e é necessário avaliar quanto tem de pagar à Bragaparques por esses bens. Consideramos que a conclusão do Tribunal Arbitral é excessiva”, daí o recurso que será apresentado, na “defesa dos interesses patrimoniais da cidade”.

O vereador Carlos Moura (PCP) diz, por seu lado, que “seria muito difícil sanar as desconformidades” da responsabilidade dos executivos PSD/CDS e continuar o negócio com a Bragaparques.

João Gonçalves Pereira (CDS) concorda: “Só faria sentido um acordo com a Bragaparques se fosse um acordo global, o que não foi o caso”, afirma.

… e a mudança promovida por Costa

Recuemos a 2007 para percebermos como foi criada a “ilicitude” referida pelo Tribunal Arbitral. O Executivo liderado por Carmona Rodrigues (eleito dois anos antes) tinha ficado sem quórum depois da renúncia dos deputados do PSD devido a uma série de casos judiciais que culminaram com a constituição de arguido do próprio Carmona, do seu vice-presidente Fontão de Carvalho e da sua vereadora Gabriela Seara. Em causa estava precisamente o negócio de permuta de terrenos camarários da Feira Popular com o Parque Mayer (da Bragaparques).

António Costa sai de ministro de Estado e da Administração Interna de José Sócrates para ganhar as intercalares e tomar posse como novo presidente da Câmara de Lisboa em agosto de 2007. Para conseguir uma maioria de 9 vereadores, Costa aliou-se à lista independente de Helena Roseta (que tinha conseguido 2 vereadores) e ao Bloco de Esquerda, cuja lista era liderada pelo advogado José Sá Fernandes.

Sá Fernandes tinha interposto em 2005 uma ação popular contra a CML para anular todo o negócio realizado com a Bragaparques. É com a aliança política entre Costa e Sá Fernandes que tudo vai mudar. A CML, que se opunha aos argumentos do agora seu vereador, alterou a sua posição.

Em janeiro de 2008, o Executivo aprova por maioria uma deliberação proposta por António Costa na qual fica claro que a nova visão da CML naquela ação passa a ser a seguinte:

  • A operação de loteamento dos terrenos da Bragaparques da Feira Popular aprovado em 2005 é nulo porque viola o PDM de Lisboa. O que significa que a empresa não pode construir naqueles terrenos;
  • Consequentemente, os contratos de permuta e de compra e venda realizados entre a autarquia e a empresa de Domingos Névoa são igualmente inválidos;
  • A hasta pública que fez com que a Bragaparques ficasse proprietária do Lote 2 da Feira Popular é igualmente considerada nula, porque o direito de preferência da Bragaparques não existia.

Na prática, a autarquia passou a concordar com o queixoso Sá Fernandes. O que, como é óbvio, aumentou substancialmente as probabilidades de a CML ser condenada naquela ação. Uma estratégia de risco.

O jogo político do edil António Costa concordar com os argumentos do agora vereador José Sá Fernandes na ação popular interposta contra a autarquia é criticado pelo Tribunal Arbitral. "O município de Lisboa é só um, independentemente das maiorias circunstanciais que ocupem os cargos municipais”, lê-se no acórdão.

Porquê? Porque ao reconhecer no âmbito de um processo judicial que a autarquia tinha cometido ilegalidades, mesmo que num ato de boa-fé, corria o risco de que essa posição fosse vista como uma admissão de que tinha causado um dano à Bragaparques em matérias que dependiam única e exclusivamente da autarquia.

Foi sem surpresa que o Tribunal Administrativo de Lisboa decretou em 2010 no âmbito da ação de Sá Fernandes a nulidade dos seguintes atos:

  • Deliberações do Executivo e da Assembleia Municipal que permitiram a realização da permuta entre a CML e a Bragaparques;
  • Da própria permuta;
  • E da hasta pública realizada.

Decisão esta que veio a ser confirmada pelo Tribunal Central Administrativo em 2012.

É precisamente este jogo político de António Costa/José Sá Fernandes que é agora criticado pelo Tribunal Arbitral. “Verifica-se, no plano jurisdicional, que o município, tendo começado por defender a legalidade dos seus próprios atos, inverteu a posição, passando a propugnar pela sua ilegalidade. De resto, as irregularidades perpetradas poderiam ter sido sanadas, através da prática dos atos em causa (…). A impossibilidade política de o fazer não tem relevância jurídica: é imputável ao próprio município, não o podendo isentar de quaisquer deveres”, lê-se no acórdão do Tribunal Arbitral.

Mais: “O decurso factual que conduziu à presente arbitragem esteve, todo ele, sob o controlo do município. As flutuações políticas subjacentes não permitem outra conclusão: (…) o município de Lisboa é só um, independentemente das maiorias circunstanciais que ocupem os cargos municipais”, conclui o tribunal. Isto é, a ação de Sá Fernandes foi interposta contra a autarquia enquanto entidade pública — e não contra o partido A ou o político B.

A autarquia refuta que a mudança de posição da CML tenha sido decisiva para as decisões do Tribunal Administrativo e Fiscal e pelo Tribunal Central Administrativo. Ambos os tribunais “consideraram os contratos inválidos” porque o “loteamento que a Câmara aprovou em 2005 para a Feira Popular era nulo e a avaliação do Parque Mayer se baseava em pressupostos ilegais”, explica fonte oficial.

O vereador João Gonçalves Pereira (CDS) afirma que a decisão de mudar a posição da CML na ação popular de Sá Fernandes, que foi aprovada pela maioria do Executivo da autarquia, “fragilizou a posição do Municipio face a esse processo”.

O acordo com a Bragaparques e o Tribunal Arbitral

Em 2014, e quando ainda estava a decorrer a análise dos recursos que a autarquia tinha interposto no Supremo Tribunal Administrativo das decisões condenatórias da primeira instância e do Tribunal Central Administrativo, António Costa surpreende ao anunciar um acordo com a Bragaparques que promove a paz judicial entre a autarquia e a empresa de Domingos Névoa e estipula os seguintes pagamentos por parte da autarquia à empresa de Braga:

  • 77.390.997 €: preço pago em 2005 pela Bragaparques pelo Lote 2 da Feira Popular;
  • 3.259.345 €: IMI e Imposto de Selo pagos aquando da escritura do Lote 2 da Feira Popular
  • 2.810.273 €: obras de demolição e escavação realizadas nos terrenos da Feira Popular
  • 18.223.821 €: CML declara-se devedora deste valor, já que assume a obrigação de restituir o valor dos prédios da Bragaparques no Parque Mayer, ficando os mesmos na posse da autarquia.

Total da fatura que António Costa aceita pagar semestralmente entre junho de 2016 e junho de 2023: 101.673.436 euros.

A prova de como a autarquia tinha tudo a perder com a criação de um Tribunal Arbitral para dirimir a indemnização remanescente que a Bragaparques continuava a reclamar era que apenas pedia 1,5 milhões de euros pelos custos que teve com a desocupação do Parque Mayer, enquanto que os prejuízos alegados pela empresa de Domingos Névoa eram de 345 milhões de euros.

António Costa aceitou ainda a criação de um tribunal arbitral para dirimir o valor da indemnização remanescente que a Bragaparques continuava a reclamar, relacionado essencialmente com lucros cessantes, custos de imobilização de capital (tradução: custos financeiros de um empréstimo bancário) do empreendimento imobiliário previsto para os terrenos da Feira Popular e, por fim, os juros de mora a contar desde 2005. Todos os pedidos da Bragaparques somavam mais de de 300 milhões de euros de indemnização.

A prova de como a autarquia tinha tudo a perder com a arbitragem era que apenas pedia 1,5 milhões de euros pelos custos que teve com a desocupação do Parque Mayer. Certo é que António Costa estava otimista: não acreditava que o tribunal, onde a autarquia foi defendida pelo seu amigo e advogado Pedro Siza Vieira (muito próximo de Costa e de Diogo Lacerda Machado), condenasse a autarquia.

O Tribunal Arbitral, como já vimos, acabou por condenar a CML a pagar mais de 138 milhões de euros à Bragaparques relativos a:

  • 41, 1 milhões de euros correspondentes ao valor do Lote 1 da Feira Popular;
  • 47,2 milhões de euros correspondentes ao juros de mora entre julho de 2005 e junho de 2014 do Lote 1;
  • 7,8 milhões de euros que dizem respeito a juros de mora entre junho de 2014 e outubro de 2016 do Lote 1;
  • 42,2 milhões de euros correspondentes a juros de mora relativos ao Lote 2 da Feira Popular entre julho de 2005 e junho de 2014.

O que perfaz um total de cerca de de 239,6 milhões de euros.

PCP e CDS criticam António Costa

Carlos Moura, vereador do PCP, faz questão de recordar que “avisou em devido tempo o então presidente António Costa dos riscos” do tribunal arbitral, quer devido à avaliação dos terrenos (com “índices de urbanização irrealistas”), quer aos “possíveis lucros cessantes” a que a Bragaparques poderia ter direito. “Daí que, do ponto de vista do PCP este era um tribunal, que dadas as suas limitações de análise, se tornava um campo fortemente desfavorável às pretensões da CML”, afirma Moura.

De acordo com o vereador comunista, “o então presidente da Câmara assumiu, com algum excesso de otimismo, que tal não aconteceria e entendeu por bem avançar”. Eis uma característica de António Costa que já foi criticada por Marcelo Rebelo de Sousa.

O vereador Carlos Moura diz que o PCP "avisou em devido tempo o então presidente António Costa dos riscos" do tribunal arbitral. "Era um tribunal fortemente desfavorável às pretensões da CML. O então presidente da Câmara assumiu, com algum excesso de otimismo, que tal não aconteceria e entendeu por bem avançar", afirma. Eis uma característica de António Costa que já foi criticada por Marcelo Rebelo de Sousa.

O vereador João Gonçalves Pereira (CDS), por seu lado, diz que o “executivo socialista optou pelo caminho mais perigoso que custará seguramente muitos milhões de euros ao erário municipal”. Gonçalves Pereira diz que “alertou para os perigos do acordo incompleto tendo votado contra a decisão e deixado escrita a sua posição. Nunca entendi a decisão da CML de pagar 100 milhões de euros (não é pouco), deixando depois para um Tribunal Arbitral todo um conjunto de matérias que, como infelizmente se verifica agora, irão custar ao Município muitas dezenas de milhões de euros”.

Carlos Moura conclui: “O PCP sempre foi crítico em relação a todo o processo. Todas as forças políticas, com exceção do PCP, têm responsabilidades. Se à data tivessem dado ouvidos ao PCP não teriam sido cometidas as ilegalidades e o município não enfrentava hoje a possibilidade de ter de indemnizar ninguém”.

Como tudo começou

Esta história, contudo, não se inicia com António Costa. Começa com Pedro Santana Lopes e com Carmona Rodrigues. Como já se escreveu no início, as decisões que marcaram este dossiê foram tomadas pelos executivos por si liderados.

Um breve resumo de como a história começou:

  • Em 1999, a Bragaparques compra os terrenos do Parque Mayer por cerca de 2,2 milhões de contos (cerca de 11 milhões de euros);
  • Pedro Santana Lopes, eleito presidente da Câmara de Lisboa em dezembro de 2001, apresenta um plano de recuperação do Parque Mayer que consiste num casino, 15 salas de cinema, 3 salas de teatro, 2 teatro-estúdio, um museu dedicado ao cinema, áreas comerciais, escritórios e um parque de estacionamento para 1500 lugares.
  • Santana Lopes idealizou um edifício icónico que, tal como o Museu Guggenheim (em Bilbau), fizesse de Lisboa uma referência arquitetónica à escala europeia. Daí ter contratado sem qualquer concurso público o norte-americano Frank Gehry (o autor do Guggenheim), a quem a EPUL pagou 2,5 milhões de euros por um projeto que não saiu do papel.
  • Em 2003, a CML toma posse do quarteirão da Feira Popular depois de indemnizar a Fundação O Século, feirantes e reverter uma parcela de terreno que tinha cedido nos anos 60 a um fundo governamental;

É assim que a Câmara de Lisboa faz a primeira proposta à empresa gerida por Domingos Névoa e Manuel Serino: uma permuta entre 46.500 m2 de área de construção na Feira Popular pelos terrenos do Parque Mayer. Os líderes da Bragaparques recusam.

Entramos em 2004 e dá-se uma troca de cadeiras importante: Carmona Rodrigues, eleito para o Executivo da CML em 2001 e ministro das Obras Públicas de Durão Barroso desde 2002, assume a presidência da autarquia no mesmo dia em que Pedro Santana Lopes toma posse como primeiro-ministro, sucedendo a Barroso, que estava de partida para Bruxelas para liderar a Comissão Europeia.

A permuta e a carta de aceitação

Quando entra na autarquia, Carmona Rodrigues assume pessoalmente a gestão das negociações com a Bragaparques e faz uma segunda proposta de permuta: em vez dos anteriores 46.500 m2, propõe agora trocar 120.000 m2 de área de construção na Feira Popular (para uso habitacional e de serviços) por 50.000 m2 no Parque Mayer (para uso de equipamentos culturais e de serviços), sendo que, obviamente, o valor total de cada um dos terrenos seria igual. E dá valores para a avaliação:

  • Os terrenos camarários são avaliados em 895, 52 euros o m2;
  • Os terrenos do Parque Mayer são avaliados em 1.200 euros o m2.

Contextualização relevante: no mercado imobiliário das zonas centrais de Lisboa, o m2 de habitação vale significativamente mais, por norma, do que o m2 de serviços e muito mais do que o m2 de equipamentos culturais.

A contestação da oposição camarária a esta primeira avaliação fez com que Carmona Rodrigues baixasse em fevereiro de 2005 a sua proposta em termos de área de construção e de avaliação:

  • De 120.000 m2 passou-se para 61.000 m2 na Feira Popular que se propunha trocar com os mesmos 50.000 m2 do Parque Mayer. Como? Dividindo o terreno da Feira Popular em dois lotes: um seria permutado com a Bragaparques (e teria os 61.000 m2 de área de construção), enquanto o segundo lote (com uma área de construção de 59.000 m2) seria alvo de hasta pública — o que seria um novo foco de polémica, como veremos mais à frente.
  • Em vez de 1.200 euros, passou-se a avaliar em termos médios o m2 do Parque Mayer em 1.050 euros. O m2 dos equipamentos culturais foi avaliado em 901, 48 euros, enquanto os 32.000 m2 de serviços manteve o valor de 1 200 euros o m2.
  • Os terrenos alvo de permuta continuaram a ser avaliados no mesmo valor: 54,6 milhões de euros.

A forte redução da área de construção e o corte na avaliação dos terrenos do Parque Mayer podem fazer crer que a Bragaparques viu a sua margem muito reduzida. Contudo, se analisarmos os números, percebemos que, a um preço médio de 1.050 euros por m2, a Bragaparques viu os seus terrenos passarem de um valor de mercado de 11 milhões de euros (preço pago em 1999) para 54,6 milhões de euros. Uma subida de valor de mais de 43,6 milhões de euros.

Por outro lado, as áreas de construção alvo de permuta eram fictícias. Isto é, no momento em que é feita esta proposta, tais áreas não eram permitidas pelo PDM de Lisboa — o que só foi discutido e alterado posteriormente. Esta será uma das bases da ação popular de José Sá Fernandes.

A partir do momento em que o Executivo aprova esta proposta, o que aconteceu em fevereiro de 2005, era necessário que a Bragaparques emitisse uma carta de aceitação das condições do negócio — e aqui começa uma nova polémica.

A empresa de Domingos Névoa envia uma carta para Carmona Rodrigues onde refere que tem “direito de preferência na aquisição” do segundo lote de terrenos da Feira Popular que seria alvo de hasta pública. Isto é, bastava-lhe igualar a proposta mais alta que fosse apresentada no leilão e ficava com o terreno. Era a primeira vez que tal questão era levantada, já que a proposta de Carmona Rodrigues que foi aprovada pelo Executivo da CML era omissa nesse aspeto.

A Assembleia Municipal de Lisboa (AML) ratifica a proposta do Executivo (e a carta de aceitação) com os votos a favor do PSD, PS, CDS, PPM e Bloco de Esquerda, enquanto o PCP é o único partido que vota contra — como já tinha feito na reunião do Executivo. Mas ninguém dá pela carta de aceitação.

Uma carta de aceitação da Bragaparques do negócio da permuta terá imposto um direito de preferência sobre um segunto lote da Feira Popular e a poupança para a empresa de cerca de 13,3 milhões de euros em taxas e compensações urbanísticas. A Assembleia Municipal terá ratificado o negócio da permuta sem que aparentemente os deputados municipais tivessem consciência dessas condições.

Segundo Modesto Navarro (presidente da AML indicado pelo PCP), este órgão “nunca aprovou o direito de preferência da Bragaparques, que não constava da proposta levada a votação pelo Executivo. O direito de preferência teria de constar da parte deliberativa das propostas — e tal não sucede”, afirmou então Navarro. Carmona Rodrigues acusou o líder da AML de ter escondido a carta dos deputados municipais.

Mais: ao aprovar a carta da Bragaparques, a AML terá ainda concordado com o direito da Bragaparques de não pagar taxas e compensações urbanísticas no valor total de mais de 13,3 milhões de euros.

A hasta pública e a recusa de Santana Lopes

Aqui entra um novo personagem chamado Remédio Pires, diretor municipal dos Serviços Centrais da CML e presidente da Comissão da Hasta Pública da Feira Popular. A 4 de julho de 2005, o jurista reúne a Comissão de Hasta Pública, diz que houve um lapso no edital que omite o direito de preferência da Bragaparques e o órgão por si liderado decreta tal direito da empresa de Domingos Névoa como uma das condições do leilão pelo Lote 2 da Feira Popular.

Regressado à liderança da Câmara de Lisboa em março de 2015, depois de perder clamorosamente as eleições legislativas antecipadas para José Sócrates, Santana Lopes recusou homologar a hasta pública do Lote 2 da Feira Popular. Foi Carmona quem homologou a venda à Bragaparques.

No dia seguinte é assinada a escritura de permuta entre a CML e a Bragaparques e 10 dias depois realiza-se a hasta pública do Lote 2 da Feira Popular. Mais um pormenor rocambolesco: foram apresentadas duas propostas de 69 milhões de euros na primeira ronda do leilão mas o concorrente acabou por retirá-las.

Reiniciado o leilão, a sociedade Bernardino Gomes apresenta uma proposta cerca de 7 milhões de euros mais baixa do que a anterior e a Bragaparques exerce o direito de preferência sobre este valor: 61.950.000 euros.

Total do investimento da Bragaparques para ficar com 120.000 m2 de área de construção na Feira Popular: 11.000.000 euros (valor pago em 1999 pelos terrenos do Parque Mayer que forma permutados pelo Lote 1 da Feira Popular) + 61.950.000 euros (preço de aquisição do Lote 2) = 72.950.000 euros

Pormenor relevante: regressado à liderança da Câmara de Lisboa em março de 2015, depois de perder as eleições legislativas antecipadas para José Sócrates, Santana Lopes recusou homologar a hasta pública. Foi Carmona quem homologou a hasta pública.

A acusação do MP e a absolvição

Entretanto, o advogado José Sá Fernandes, que se tinha notabilizado na luta judicial contra o Túnel do Marquês, interpõe em 2005 a ação popular que será decisiva para o presente deste dossiê.

Em outubro de 2005, Carmona Rodrigues ganha as eleições autárquicas nas listas do PSD contra Manuel Maria Carrilho, do PS. A sua lista consegue eleger 8 em 17 vereadores.

O DIAP de Lisboa e a Polícia Judiciária iniciam as investigações ao caso Feira Popular/Parque Mayer em 2006 por suspeita da prática dos crimes de corrupção, abuso de poder, prevaricação e tráfico de influência que culminam com com a constituição de arguido de Fontão de Carvalho, vice-presidente de Carmona Rodrigues com o pelouro das Finanças, Gabriela Seara, vereadora do Urbanismo e braço-direito de Carmona desde 2002, e do próprio Carmona Rodrigues em 2007. Em maio, pouco depois do então edil ser considerado oficialmente suspeito, Marques Mendes, líder do PSD, retira a confiança política a Carmona e os vereadores social-democratas renunciam aos cargos, precipitando a convocação de eleições intercalares.

O vice-presidente Fontão de Carvalho e a vereadora Gabriela Seara foram constituídos arguidos pelo DIAP de Lisboa no caso Bragaparques, sendo que Carmona Rodrigues teve o mesmo destino em maio de 2007. Marques Mendes, líder do PSD, retira a confiança política a Carmona e os vereadores social-democratas na CML renunciam aos cargos. São convocadas eleições intercalares.

Em janeiro de 2008, Carmona Rodrigues, Fontão de Carvalho, Eduarda Napoleão (vereadora do Urbanismo) e Remédio Pires são formalmente acusados do crime de prevaricação por alegadamente terem favorecido a Bragaparques e prejudicado o erário público em mais de 13,3 milhões de euros em taxas e compensações urbanísticas não concretizadas. Dois arquitetos da autarquia são igualmente acusados. As suspeitas contra Gabriela Seara são arquivadas.

As suspeitas de corrupção são consideradas infundadas pelo DIAP de Lisboa e pela PJ. As contas bancárias de Carmona, Fontão, Napoleão e Seara foram vistas de cima a baixo mas nada foi encontrado.

O mesmo não se pode dizer de Remédio Pires. A PJ detetou movimentos de 466 mil euros entre 2004 e 2007 incompatíveis com os seus rendimentos de trabalho no mesmo período: 131 mil euros. Mais: nas entradas de dinheiro detetadas, 53 mil euros diziam respeito a depósitos em dinheiro vivo. Remédio Pires alegou que o dinheiro provinha de uma herança. A Judiciária não acreditou mas também não conseguiu provar a origem das notas depositadas na conta de Pires. Logo, as suspeitas de corrupção também foram arquivadas.

Os arguidos foram pronunciados pelo Tribunal de Instrução Criminal mas o julgamento do caso Bragaparques teve várias vicissitudes. O julgamento foi repetido duas vezes e só à terceira é que Carmona Rodrigues, Fontão de Carvalho, Remédio Pires e Eduarda Napoleão foram absolvidos do crime de prevaricação, livrando-se do pagamento de uma indemnização total de cerca de 4,2 milhões de euros que era exigida pelo DIAP de Lisboa.

O tribunal entendeu que as regras urbanísticas não tinham sido violadas e que os arguidos não tinham beneficiado a Bragaparques. Mais: a autarquia também não tinha sido prejudicada nem com a permuta entre o Lote 1 da Feira Popular e os terrenos do Parque Mayer nem com a hasta pública realizada para o Lote 2 da Feira Popular. A existirem irregularidades, concluiu o tribunal, essas seriam de ordem administrativa. A Relação de Lisboa concordou com esta absolvição em janeiro de 2016, após recurso do MP.

Corrigido o nome próprio do professor Menezes Cordeiro

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