O cartaz está escrito em hebreu e em inglês e tem um final tão significativo como demolidor: “O Estado de Israel, estabelecido para garantir a segurança dos seus cidadãos – de forma a que os pogroms e o Holocausto que marcaram a história dos judeus nunca mais voltassem a acontecer – falhou no seu dever básico de proteger os nossos filhos que queriam simplesmente divertir-se de forma descomprometida numa festa permitida pelas autoridades. O terreno onde agora estamos, os terrenos em redor, estão empapados com o sangue de jovens que foram assassinados de forma incompreensível neste lugar de massacre.”
A mensagem está exposta num pequeno memorial que as famílias dos que morreram no 7 de Outubro de 2023 ergueram num dos locais de maior brutalidade, o espaço onde estava a decorrer um festival de música, o Festival Nova. Há fotografias das vítimas por todo o lado, há pequenos objectos que as famílias quiseram trazer, há velas acesas e velas apagadas, há muitas bandeiras e há também apelos ao silêncio e ao respeito. E depois há aquele cartaz e aquela mensagem, imensamente reveladora dos traumas e das divisões que cruzam a sociedade israelita.
Daqui por alguns dias, quando passar o primeiro aniversário do dia em que o Hamas desencadeou o seu ataque, governo e familiares das vítimas e dos reféns não estarão juntos – até porque não têm claramente as mesmas prioridades. Como desde bem antes daquela madrugada trágica e traumática os israelitas continuam profundamente divididos, e há muitos meses que as manifestações regressaram às ruas de Tel Aviv, onde todos os sábados à noite milhares, por vezes dezenas de milhares, desfilam em protesto. Antes do 7 de Outubro era por causa da reforma judicial que o governo de Netanyahu preparava; agora é para que o destino dos reféns não seja esquecido e a sua libertação seja uma prioridade. Antes os activistas da esquerda hebraica não se misturavam com as famílias das vítimas, agora já coincidem nos mesmos protestos.
“O nosso grande inimigo é o esquecimento”
“Aqui em Tel Aviv a vida parece que voltou ao normal, mas não é assim, sobretudo não é assim para as famílias dos que morreram e para as famílias dos reféns, para todos os que são próximos daqueles que não sabemos se estão vivos ou mortos, que sobretudo não sabemos quando vão ser libertados”, diz-nos Colete Avital, antiga embaixadora (esteve colocada em Lisboa) e hoje voluntária na principal organização de famílias das vítimas. “Os nossos maiores inimigos são os terroristas que não libertam os reféns, mas o nosso segundo maior inimigo é o esquecimento”, acrescenta.
Talvez seja difícil esquecer, até porque se há imagens omnipresentes em todo o Israel, nas praças, nas alamedas, ao longo das estradas, nas paredes em ruínas ou nos monumentos bem tratados, são as imagens dos reféns que continuam em Gaza – 101 no total, 97 raptados a 7 de Outubro, quatro outros há mais tempo em cativeiro – e a hashtag #BringThemHomeNow. Isto para além das bandeiras e dos laços amarelos. Só que o tempo passa e mesmo essas imagens podem tornar-se banais, passar a ser apenas mais uma parte da paisagem de todos os dias, no fundo deixar de ser sinais de alerta.
É por isso que organizações como esta, para além de campanhas de informação, para além de se juntarem aos desfiles semanais, para além do apoio que dão aos familiares das vítimas (apoio médico e também financeiro), sabem que para não esquecer é necessário que os rostos que alinharam nos cartazes que estão um pouco por todo o lado não sejam apenas um mosaico banalizado de tanto ser visto, seja antes decomposto em tantas histórias individuais como as dos reféns que continuam em Gaza – ou nas histórias, tantas vezes também trágicas, dos que foram libertados aquando dos únicos acordos já conseguidos.
O dia que mudou tudo
E depois há aquilo que aquele cartaz explicita com crueza: a percepção de que o Estado lhes falhou. Não apenas o Governo, também as Forças Armadas, o mítico IDF que, naquele sábado de Outubro, tinha deslocado algumas unidades da fronteira de Gaza para a Cisjordânia.
“Nós aqui, nos kibutzin do Sul, éramos, somos, quase todos de esquerda, lá nos colonatos estão os da extrema-direita de que depende o governo de Netanyahu, foi para lá que enviaram as tropas”, acusa Irit Lahav, uma das sobreviventes do kibutz Nir Oz, um daqueles de onde se avista a fronteira de Gaza e um dos que mais sofreram: antes do ataque moravam ali 430 pessoas, a estimativa é que um terço tenha sido morta ou levada como refém. Hoje ninguém habita nas poucas casas que não foram arrombadas e incendiadas e onde tudo parece ter ficado exactamente como estava naquele dia, até os brinquedos que as crianças abandonaram ao fugir, as que conseguiram fugir.
Mas não foi a 7 de Outubro que Irit Lahav deixou de gostar do governo do seu país: sempre que podia ia a uma das manifestações semanais contra Netanyahu e lembra com orgulho que a sua mãe até costumava dizer que a família era mais de esquerda do que os palestinianos (o que quer que isso queira dizer). Mais: a sua opção de viver numa comunidade onde regularmente era necessário correr para um abrigo porque soava a sirene que avisava dos disparos dos mísseis do Hamas estava de alguma forma ligada ao trabalho solidário que desenvolvia, pois fazia parte dos grupos de voluntários que iam regularmente à fronteira de Gaza buscar doentes graves para os levar para cuidados mais diferenciados em Israel. Mais ainda: sendo israelita, filha de pais que já nasceram na terra de Israel, não pratica o judaísmo pois aderiu ao budismo, atribuindo até ao que aquela religião lhe ensinou a capacidade de se controlar e manter calma nas horas mais difíceis do 7 de Outubro.
Por isso tudo houve qualquer coisa ainda mais estrutural que se quebrou dentro dela quando, trancada dentro do quarto blindado da sua casa, ouviu primeiro o tiroteio e as explosões e depois sentiu chegar os que de Gaza vieram para o saque.
“Sempre acreditei que o Hamas não representava a população de Gaza”, confessa. “Sempre pensei que do lado de lá daquela vedação viviam pessoas como eu, mães como eu que só desejavam uma boa educação para os seus filhos, que só sonhavam com uma vida boa para os seus rebentos, famílias trabalhadoras e pacíficas. Sempre pensei que era só um punhado de extremistas, de gente má do Hamas, e que o resto era gente boa, mas quando vi o que aconteceu, quando sei que com os militantes do Hamas vieram também mulheres e adolescentes, quando vejo o que fizeram, só posso pensar que tudo isto não é humano. O que hoje sinto é que a nação palestiniana não reconhece linhas vermelhas, não conhece limites. O que hoje sinto é que não é apenas o Hamas que representa uma minoria má, sinto que o Hamas representa os palestinianos tal como o nosso governo nos representa. Para mim foi uma grande, grande desilusão”.
Esta enorme desilusão fá-la sentir que se encontra perante um beco sem saída: como chegar algum dia à paz com alguém que não se recusa apenas a aceitar a existência de Israel, ou reivindicar o direito de retornar às aldeias do seus avós, mas alguém para quem o desejo de expulsar os judeus leva a que matem indiscriminadamente, que destruam e violem, que raptem tanto anciãos como bebés?
Solução dos dois Estados tem cada vez menos adeptos
É quando ouvimos palavras como estas de Irit Lahav que percebemos como o choque do 7 de Outubro não foi apenas o de o país se ter confrontado com o colossal falhanço do Estado e das Forças Armadas, não foi só ter feito regressar os fantasmas dos progroms e do Holocausto: foi ter porventura passado a pensar que o país está mesmo condenado a uma guerra sem fim contra inimigos – como o Hamas e também o Hezbollah – que nunca abdicarão do seu objectivo final, a erradicação do Estado de Israel.
Disso mesmo é indicação a mais recente sondagem realizada em paralelo em Israel e nos territórios palestinianos, um estudo académico que se repete todos os anos (da responsabilidade conjunta do Centro de Investigação Palestiniano para Políticas e Sondagens, sediado em Ramallah, e o Programa Internacional de Resolução de Conflitos e Mediação, da Universidade de Tel Aviv). Para além de revelar atitudes muito simétricas e antagónicas no que respeita à vitimização e à avaliação do quadro político – por exemplo: 80% dos palestinianos acredita que o seu sofrimento justifica o 7 de Outubro enquanto 82% dos israelitas crêem que esse mesmo 7 de Outubro justifica a guerra –, o dado porventura mais preocupante para quem olha o conflito de longe é a erosão do apoio à solução dos dois estados.
À pergunta sobre se apoiam “o estabelecimento de um estado palestiniano junto a Israel”, apenas 31% dos inquiridos responderam afirmativamente, percentagem que desce para 21% se considerarmos apenas os judeus israelitas (não nos esqueçamos que entre um quinto e um sexto da população de Israel é árabe). Trata-se da mais baixa percentagem de apoio à solução de dois estados desde 1987 e uma evolução brutal se considerarmos que em 2010 esse apoio ainda se situava nos 71%. Mais revelador ainda: neste momento há 42% de judeus israelitas que apoiam a solução de um só Estado que ocupe os territórios palestinianos mas não dê aos palestinianos os mesmos direitos de cidadania que tem, por exemplo, a minoria árabe que vive (e vota, e elege deputados) em Israel.
É certo que os autores do estudo chamam a atenção para o facto de circunstâncias políticas diferentes poderem suscitar discussões diferentes no espaço público e isso poder levar a uma reversão desta evolução dos sentimentos políticos tanto de israelitas como de palestinianos, mas a verdade é que isso não parece fácil de acontecer no actual clima de guerra.
Uma ruptura na sociedade
No dia a dia do debate público – e deixando de lado um ambiente de intriga política ainda mais tortuoso do que aquele a que nos começamos a habituar em Portugal – a clivagem parece ser entre os que defendem que se faça tudo, mas mesmo tudo, para conseguir a libertação imediata dos reféns, e aqueles que não estabelecem a mesma prioridade, ou se preferirmos a mesma urgência.
O tema não é fácil e não divide apenas os familiares a que se juntaram activistas de esquerda dos que tendem a apoiar o Governo (sendo que, para surpresa de muitos, as sondagens são neste momento favoráveis a Netanyahu). E o tema não é fácil porque para obter a libertação de mais reféns, ou de todos os reféns, Israel terá de aceitar libertar um número muito maior de palestinianos presos, a esmagadora maioria deles suspeitos ou mesmo condenados por terrorismo.
Talvez por isso surpreende ver alguém que facilmente colocaríamos nos antípodas de Irit Lahav – falamos de Ishay Efroni, o gigante de arma automática a tiracolo que encontrámos a tomar conta do kibutz de Metsuva, junto à fronteira do Líbano – responder exactamente da mesma forma à pergunta sobre até onde iria para libertar os 101 reféns que o Hamas ainda tem em seu poder: “Se for preciso trocá-los por todos os presos palestinianos, faça-se essa troca já amanhã”.
Não seria a primeira vez que Israel faria uma troca assim tão desequilibrada – 101 reféns, 30 dos quais se sabe que já estão mortos, por uns 7.000 prisioneiros palestinianos. Na verdade, em 2011 o governo de Tel Aviv aceitou trocar 1027 palestinianos que estavam nas prisões de Israel por apenas um soldado, Gilad Shalit, que tinha sido raptado pelo Hamas cinco anos antes. Pormenor importante dessa troca: entre os libertados por Israel estava Yahya Sinwar, hoje o líder do Hamas em Gaza e o homem que planeou e ordenou os massacres e raptos do 7 de Outubro.
Com as atenções viradas agora para o norte e para a fronteira com o Líbano, com especulações sobre não dever haver qualquer acordo de cessar-fogo – logo não haver acordo para o regresso dos reféns – antes das eleições norte-americanas, não surpreende que as manifestações deste sábado se tenha acusado o primeiro-ministro Netanyahu de ter escolhido “o caminho da escalada e do conflito regional e decidido sacrificar os reféns, tudo em nome da sua obsessão por conservar o poder”, como disse o familiar de um dos raptados a 7 de Outubro no desfile de Tel Aviv.
Há no entanto uma enorme diferença entre os que marcham nestas manifestações onde se exige que se dê prioridade ao regresso a casa dos reféns e tantas outras manifestação, e declarações, que ouvimos nas ruas e nas televisões da Europa ou dos Estados Unidos: aqui ninguém pede o fim imediato da guerra ou o regresso dos soldados. Numa sociedade onde todos têm de servir, homens e mulheres, num país onde até aos 40 anos se continua na reserva e se pode ser chamado a qualquer momento (muitos, a maioria dos que agora combatem eram reservistas e tinham as suas vidas até ao 7 de Outubro), num país onde a sensação de cerco se acentuou, a única certeza é a de uma guerra para quem ninguém consegue adivinhar um fim. Ou imaginar que um dia se possa viver em paz sem a ameaça de organizações como o Hamas ou o Hezbolah.
“Podemos derrotá-los hoje, mas não definitivamente”, disse-nos o mesmo Ishay Efroni, ele mesmo um veterano de várias campanhas no Líbano. “Mas não conseguimos derrotar a ideologia”.
Foi do sentido profundo dessa ideologia irredentista que mesmo os mais pacifistas dos israelitas se aperceberam no 7 de Outubro. É que a grande despreparação desse dia também foi fruto da ilusão de que um dia mesmo os radicais aceitariam a coexistência pacífica, quando essa simples ideia é para eles o maior dos anátemas.
O Observador integrou um grupo de jornalistas europeus que esteve em Israel a convite da EIPA, Associação de Imprensa Europa-Israel