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Era uma vez um senhor chamado Johansen, Derek Johansen. Devia de ser muito rico e observador, porque às tantas desenvolveu o hábito de viajar por terras de Sua Majestade anotando, numa espécie de caderno de bordo, as impressões dos hotéis onde pernoitava.
A história desta obscura personagem, cujo livro seminal ainda se encontra à venda na Amazon (Derek Johansen’s Recommended Hotels in Great Britain 1987) tem algumas semelhanças com a de Maureen e Tony Wheeler, o casal que fundou a Lonely Planet. Quer os Wheeler, quer os Johansen (o noruguês Derek desposou a britânica Joanna em 1993), desenvolveram guias para termos uma ideia do que podemos esperar, ou desesperar, quando vamos a um dado local – e no caso dos estabelecimentos contemplados pela Condé Nast Johansens, podemos esperar muito, porque os hotéis que fazem parte da lista têm de ser, no mínimo, exclusivos.
No mínimo porquê? Porque não faz parte da lista da Condé Nast Johansens (CNJ) quem quer, só quem pode. E neste caso não se trata apenas de dinheiro, que por sinal é condição sine qua non para pertencer à coleção de propriedades recomendadas; para tal, é preciso que o espaço – hotel de luxo, vila, spa e por aí fora – cumpra uma longa e meticulosa lista de requisitos.
O trabalho dos inspetores – local experts na gíria Johansens – é parecido ao dos críticos que visitam os restaurantes do guia Michelin, com uma nuance que faz toda a diferença: não viajam nem reservam de incógnito. Pelo contrário: ajudam os estabelecimentos selecionados a cumprir os mínimos olímpicos, por assim dizer, e a desenvolver novos elementos de diferenciação ou de excelência.
Um galego chamado Nino
Mas não percamos o foco. A história do Sr. Johansen acaba de ser revelada por um galego chamado Nino. Estamos numa cantina mexicana dum bairro elegante de Londres e Nino, o relações públicas que tem como missão dar-me apoio nesta reportagem (confesso que, nestas andanças, nunca antes tinha usufruído de um orientador ou escudeiro), faz 50 anos. O aniversário não é, contudo, o motivo pelo qual liquida as despesas geradas durante o almoço: a minha estadia é paga, obviamente, pelo mesmo grupo que paga a viagem de Nino, que além de editar o guia hoteleiro é proprietário da Vogue, GQ, Vanity Fair e Wired, entre outras publicações de prestígio.
Três hotéis portugueses entre os melhores da Condé Nast Johansens
O império forjado por Condé Montrose Nast, magnata de raízes franco-germânicas, foi, provavelmente, o primeiro a focar-se num grupo ou segmento social específico (em vez de tentar chegar ao maior número de leitores possível). A sede do grupo continua em Nova Iorque, onde edita, por exemplo, a The New Yorker, mas o braço internacional é coordenado a partir de Londres, quartel-general de 124 revistas e de mais de uma centena de sites e 200 apps.
Ou seja: eles podem dar-se ao luxo – porque o luxo é com eles – de celebrar os seus prémios anuais num hotel junto ao palácio de Buckingham que, no entanto, parece um postal de Nova Iorque no Natal, porque a sua fachada de tijolo brilha com uma miríade de pontinhos brancos, apesar de faltarem ainda 49 dias para a consoada.
Entramos no bar exatamente às 19h00. Antes sequer de deixar os casacos, somos agasalhados com as primeiras flutes de Taittinger, o champanhe oficial e um dos poderosos patrocinadores do evento. Pouco depois, o toast master agita vigorosamente um sininho para anunciar – a gritos mas sem perder a britânica compostura – que o jantar está pronto, e que devemos encaminhar-nos para a espaçosa cave onde 21 mesas redondas, sisudamente distribuídas e guarnecidas como no melhor dos casamentos, aguardam as nossas presenças devidamente identificadas.
Há ecrãs gigantes e uma mesa de mistura na parede oposta, onde dezenas de empregados, fardados à antiga, atendem as solicitações dos mui elegantes convidados. Os homens vestem camisas imaculadas com botões de punho sumptuosos, laços negros ou gravatas sóbrias. As mulheres regalam-se com vestidos, sapatos, jóias e maquilhagens das grandes ocasiões; só em cabeleiras, há milhares de libras investidas nesta sala.
O pinot noir, o borgonhês e os outros
A cerimónia avança com a precisão de um relógio. Antes de servir a entrada, os ubíquos copeiros do The May Fair Hotel – que também será galardoado nesta noite de festa – não param de atestar os nossos copos. O tinto é um pinot noir neozelandês que não aquece nem arrefece, mas a alternativa é absolutamente irresistível. Fotografo a garrafa para evitar lacunas etílicas: um chardonnay borgonhês da antiga casa Louis Jadot.
O branco é uma delícia e a Fortuna tocou a nossa mesa, agraciada com muitos dos vencedores da gala. À minha direita senta-se Ross Grieve, gerente do vencedor na categoria Best for Romance. Hoje spa de cinco estrelas e “orgulhoso membro do Pride of Britain” (um consórcio de hotéis de luxo, nada a ver com o brexit), Seaham Hall foi, em 1815, a mansão georgiana onde Lord Byron casou com Anne Isabella Milbanke, rica herdeira de Durham com quem teve a única filha legítima (Ada Lovelace, considerada a primeira programadora informática pela posteridade).
Mas estou a dispersar-me de novo. À direita de Ross, bom conversador que em breve ostentará os dois troféus da praxe (um diploma emoldurado e um acrílico, ambos com a legenda AWARD WINNER 2018), encontra-se Vincent Poulingue, cluster general manager do Palácio das Cardosas, porta-aviões do gigante IHG (InterContinental Hotels Group) em plena baixa portuense.
O InterContinental Porto era um dos três finalistas na categoria “Melhor Serviço”, mas o título foi para The Ashbee Hotel, um concorrente siciliano. O moustache de Vincent não é grande o suficiente para esconder a deceção: “A Condé Nast Johansens é muito importante nesta indústria, nomeadamente no segmento do luxo”, diz. Num inglês irrepreensível, o gerente argumenta que fazer parte da lista da CDJ é uma “garantia de qualidade”, e que os prémios são uma montra para o mundo. “O guia foi concebido sobretudo para hotéis independentes, e o facto de termos sido nomeados demonstra que somos capazes de competir neste nicho de mercado… apesar de pertencermos a uma grande cadeia”.
Apesar da derrota, a colheita não foi má: Vincent acabou por levantar-se da cadeira para recolher o prémio ao “Melhor Hotel para Reuniões ou Conferências”, conquistado pelo InterContinental Lisbon, um dos três hotéis portugueses galardoados (havia sete finalistas) nas 18 categorias.
Hospitalidade sem fim
Chegados a este ponto, talvez seja boa ideia explicar que os Prémios à Excelência se bifurcam, logo à partida, em “Reino Unido & Irlanda” e “Europa & Mediterrâneo”. Isto significa que, no final do evento, haverá 36 e não 18 vencedores. Os galardões têm como base os votos online, as avaliações dos hóspedes e os relatórios emitidos pelos local experts, determinantes nas diferentes fases e triagens realizadas para apurar os vencedores.
A concorrência e a exigência são de tal calibre que Cristina Borges, diretora de relações públicas do Anantara Vilamoura Algarve, pula de alegria quando o mestre de cerimónias anuncia que foram escolhidos “Melhor Novo Hotel no Guia ou de Novo no Guia”. “Fico extremamente feliz, porque recompensa o esforço de uma equipa excecional para implementar o primeiro Anantara na Europa”, justifica.
Anantara é uma das marcas da Minor International, uma corporação tailandesa que opera em 32 mercados de vários continentes, mas também um acrónimo inspirado no ioga que significa qualquer coisa como hospitalidade sem fim. “A nossa sofisticação é simples, não é espampanante”, continua Borges, antes de desfiar uma mão-cheia de motivos para merecer o prémio – nomeadamente, uma localização “privilegiada” onde se cruzam “a paixão pelos detalhes” tailandesa e os produtos e materiais portugueses, como a cortiça e os azulejos. “O nosso diretor-geral, Tamir Kabrin, aposta muito no serviço. Não podemos concorrer com o luxo opulento, e por isso a nossa aposta é oferecer a doce hospitalidade tailandesa num lugar mágico”, conclui.
O fim da cerimónia aproxima-se e os meus convivas continuam numa roda viva. Julien Vaughan, um especialista em marketing que veste um casaco de veludo vermelho, sobe várias vezes ao palco. David Ashington e Manuel Bravo, do também algarvio Monte Rei Golf & Country Club, não saem do sítio, mas também não desanimam: não se pode ganhar sempre (no ano passado receberam o título de “Best Villa or Serviced Apartment”).
À minha esquerda, quase a fechar o círculo, tenho Italo Melo, um brasileiro residente em Londres que parece um híbrido de Jeremy Irons e Caetano Veloso em versão agente imobiliário. Entre Italo e eu só se interpõe Nino, o orientador-escudeiro galego que, talvez porque faz anos, deixou de aceitar Taittinger na flute. Com a minha gravata preta, os meus ténis verdes e o meu misto de alienação e fascínio, sinto-me como “um toureiro do outro lado da cortina de ferro”, para usar a bizarra analogia consagrada por Joaquín Sabina, cantor-compositor de voz rouca e origens andaluzas.
O terceiro e último prémio para Portugal é para o Heritage da Avenida da Liberdade lisboeta, “Melhor Hotel com Valor de Luxo”. Ano após ano, aumenta o número de estabelecimentos portugueses na exclusiva lista da Johansens, um sinal dos tempos mas também do bom trabalho da local expert sediada no Algarve, Danielle du Plessis.
Sabonetes novos todos os dias
Na manhã seguinte ao jantar, num descontraído pequeno-almoço de imprensa com ovos mexidos e capuccinos, tento convencer a diretora da CNJ, Charlotte Evans, a alargar o leque de categorias ecologistas nos prémios anuais. Atualmente só há uma, o “Melhor Hotel Ambiental”, mas em tempos houve duas: uma para a responsabilidade social e outra destinada às melhores práticas ecologistas.
Charlotte explica que as categorias dos prémios não estanques, mudam de ano para ano para incorporar as alterações no mercado. Acresce que as questões ambientais nunca são simples num contexto de luxo. Um exemplo: nos hotéis de cinco estrelas – a esmagadora maioria na lista da CNJ – substituem os sabonetes todos os dias, mesmo que o cliente não queira ou que a reserva seja para várias noites. Alguém sugere substituir os sabonetes sólidos por doseadores líquidos, mas Danielle du Plessis torce o nariz: doseadores e cinco estrelas não casam bem, sorry.
A anedota serve para ilustrar que, tal como os críticos da Michelin, os inspetores da Johansens não brincam em serviço. Mas também para lembrar que o futuro da humanidade, ou pelo menos da pequena percentagem que frequenta hotéis e restaurantes com muitas estrelas, passa em parte por eles: se não convencerem as elites – os clientes, mas também os fornecedores – a reduzir o desperdício, dificilmente haverá progressos noutros segmentos da população.