“Existem dois Christian Dior”, explica o autor durante o prólogo da sua autobiografia. Foi para “contar a verdade sobre o segundo, o couturier da Maison Christian Dior, que o primeiro Christian Dior decidiu escrever este livro”. Começa assim a história de duas figuras distintas, antagónicas por vezes, e dos sacrifícios que ambos tiveram de fazer para erguer o império que conhecemos hoje – história essa relatada na autobiografia Dior por Dior, publicada originalmente em 1957, o ano em que morreria na sequência de um ataque cardíaco.
Do primeiro Christian Dior, o rapaz que nasceu em Granville, uma pequena cidade da Normandia, em 1905, no seio de uma família de produtores de fertilizantes, há pouco para ver na nova exposição do Victoria & Albert (V&A). O museu britânico de arte e design recriou no seu íntimo o atelier de Christian Dior no número 30 da célebre Avenue Montaigne, em Paris – ainda hoje sede da Dior e a sua loja mais antiga. Como uma matrioska, há uma casa dentro de outra casa. As paredes, as janelas e a porta do número 30 da Avenue Montaigne estão dentro do V&A, mas, curiosamente, a pequena parte da exposição sobre a vida de Christian Dior antes de fundar a Dior, estão cá fora. Que não restem dúvidas, a exposição “Dior: Designer of Dreams”, ou Criador de Sonhos numa tradução liberal, é sobre o segundo Christian Dior. Não trata do homem, mas antes perpetua o mito.
Couturier está para costureiro, como chef está para cozinheiro. Ainda que ambos façam uma omolete, os ovos que usam, a técnica de cozinha e a apresentação final são completamente diferentes. O seu trabalho está noutro patamar. Talvez por isso couturier, o termo que Christian Dior usava para se auto-designar, não tenha tradução direta em nenhuma outra língua, não exista que não no francês, porque é exatamente em Paris que a alta-costura nasceu, atingiu o seu expoente máximo e ainda hoje resiste.
Em 2017, o Museu das Artes Decorativas na capital francesa realizou a primeira grande exposição sobre a Dior aquando da comemoração dos 70 anos da sua fundação. Sob o título “Christian Dior: Couturier du Rêve (Couturier de sonhos, em tradução livre)”, criou-se a base para a exposição que dois anos mais tarde abre agora no V&A.
Em terreno britânico, o termo couturier perdeu-se e passou a designer, talvez por uma certa aversão a línguas estrangeiras, talvez por um nacionalismo que se quer impor em tempos de Brexit. Nesta versão da homenagem a Dior há uma sala que retrata a relação do couturier com a família real e explora os diferentes momentos em que Christian Dior veio a Terras de Sua Magestade, nomeadamente ao Hotel Savoy e outros lugares de requinte para mostrar os novos vestidos às senhoras da nobreza. Destaque para o vestido criado para a princesa Margarida, a irmã mais nova da Rainha Isabel, usado no célebre retrato oficial dos seus 21 anos tirado por Cecil Beaton. Menos branco do que no retrato, com uma palha de ouro que até então passaria desapercebida se não fosse vista de perto no bordado, nesta sala trocam-se histórias e trazem-se recordações. É neste momento que percebemos que a maioria das outras pessoas a visitar a exposição numa tarde de dia de semana são senhoras na sua terceira idade que vieram em grupo para admirar e recordar um tempo que já lá vai. Um tempo de couturiers, de luvas até ao cotovelo e chapéus a combinar, de saltos altos e vestido de cocktail.
Em 1947, quando Christian Dior apresentou a sua primeira coleção, haviam passado apenas dois anos sobre o fim da Segunda Guerra Mundial e do racionamento não só de comida, mas de outros essenciais como tecido. As voluptuosas saias e vestidos de Christian Dior pediam metros e metros de tecido e mão-de-obra especializada para os seus preciosos bordados e aplicações. A falta de refreio criativo de Dior enfureceu as mulheres europeias a quem apenas anos antes havia sido pedido que usassem cortinas e toalhas para fazer novas roupas. Mas, ao revitalizar os ateliers em Paris, Dior ajudou a economia francesa a recuperara do esforço de guerra. Uma ajuda que seria reconhecida com a Legião de Honra Francesa em 1950 pelo seu contributo para a indústria têxtil e da moda.
No centro do átrio que abre para dentro do atelier de Dior está exposto o Bar Suit, o famoso fato de duas peças que é absolutamente central na primeira coleção de Christian Dior – e à moda como a conhecemos hoje. Christian Dior chamou à sua primeira coleção “La Ligne Corolle”, evocando a corola da flor, o seu conjunto de pétalas, que reproduziu em cinturas estreitas que irrompem generosamente em volume. As revistas e jornais chamaram-lhe “New Look”. Por todo o mundo, as pessoas chamaram-lhe um escândalo. Para um apaixonado por moda, o Bar Suit é o equivalente à Mona Lisa. De perto examinam-se os pormenores e contrapõe-se a realidade à fantasia. Notam-se as fibras e as costuras enquanto se recordam os livros de história com a famosa foto de Willy Maywald.
Para lá das paredes de estuque branco e tetos altos, dentro do nº30 da Avenue Montaigne, sedas variadas, lã, renda e tule surgem em formas femininas retratando os dez anos em que Christian Dior, o homem, criou a essência do que para sempre seria a Dior. “A minha fraqueza, como já devem ter adivinhado, é a arquitetura que me fascina desde criança. Impedido pela minha família e pelas minhas circunstâncias de alguma vez realizar esta paixão, encontrei-lhe um escape na alta-costura. Considero o meu trabalho arquitetura efémera, dedicada à beleza do corpo feminino”. Os vestidos de Christian Dior definem a cintura, alargam as ancas, envolvem os ombros, abraçam a silhueta. Se por um lado se adaptam ao corpo da mulher, também o definem, salientando ora um traço ora outro, sempre com uma elevada dose de feminilidade.
Em “Christian Dior: Designer of Dreams”, o homem é apenas o começo da história da Dior. Em vez de se ir em pormenor aos problemas de saúde que o obrigavam a frequentes retiros a spas e termas, mostra-se o “esqueleto” das suas criações através de maravilhosos saiotes, corpetes e armações. Não se especula sobre a sua vida amorosa, mas antes refere-se por nome próprio as abelhas-mestras que, como Dior reconheceu, foram imprescindíveis no dia-a-dia do atelier e no desenvolvimento do negócio. Mulheres como Marguerite Carré que distribuía os desenhos entre os vários ateliers ou Raymonde Zehnacker, a gerente do estúdio que, como escreveu Dior “segurava as rédeas do negócio firmemente nas suas mãos”.
Numa das muitas fotos que revelam os bastidores desses primeiros anos da Dior, o fundador está sentado nas imponentes escadas do atelier rodeado por todas estas fantásticas mulheres. Parece tímido, mas seguro. A humildade com que Dior reconheceu a importância dos que o rodeavam não lhe retira mérito, mas antes fortalece uma figura que sozinha parece tão frágil. Da mesma forma que revelar as estruturas invisíveis ao olhar que sustentam as formas dos seus vestidos não lhes retira beleza, nem mostrar o trabalho minucioso dos ourives, sapateiros, criadores de relógios e outras preciosidades nos ateliers os faz perder algo de especial. Talvez seja esta a mais importante dualidade de “Christian Dior: Designer of Dreams”, a da realidade e da fantasia.
Ainda que haja todo o reconhecimento e seja feito o elogio do artesão e das muitas figuras que, entretanto, passaram pelo leme da Dior, o trabalho de todos mistura-se para criar o sonho mais bonito de todos. Ao retratar a Belle Époque como inspiração central, vestidos de Raf Simons, Christian Dior e John Galliano estão lado-a-lado sem que nenhum se sobreponha ao outro. Noutra sala há um jardim suspenso no teto com flores de papel e folhas que ganham vida através de um jogo de luzes e quase nos trazem o cheiro de Miss Dior, o primeiro dos perfumes criados por Christian Dior. Aqui revela-se a obsessão de Christian Dior por jardins, mas também que todos os outros couturiers que lhe seguiram na Dior gostam de jardinagem. Todos os vestidos desta sala glorificam esta paixão com motivos florais mais ou menos explícitos e cores primaveris.
“No mundo de hoje, a alta-costura é um dos últimos repositórios do maravilhoso e os couturiers são os últimos detentores da varinha mágica da Fada-Madrinha da Cinderela“, escreveu Dior na sua autobiografia. Talvez por isso, a exposição, com a curadoria de Oriole Cullen, acabe com um grande baile. Todos estão convidados desde Marc Bohan, o designer que, sendo o menos conhecido, foi o que esteve mais anos à frente da Dior, a Gianfranco Ferré, a Maria Grazia Chiuri, a primeira e única mulher a liderar a Dior. O trabalho de todos junta-se ao do fundador para criar uma sala de luxo e brilho, com vestidos que reluzem quando a sala escurece e constelações são projetadas no teto alto deste baile de máscaras.
A exposição “Christian Dior: Designer of Dreams” pode ser vista até 14 de julho no Museu Victoria&Albert, em Cromwell Road, Londres, todos os dias, das 10h às 17h45 (sexta-feira até às 22h). O bilhete custa entre 20 e 24 libras (até 27 euros).