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Spencer Platt/Getty Images

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Craig Spencer sobreviveu ao ébola: “Não posso imaginar o que as pessoas passavam em casa”

O médico Craig Spencer sabia que era possível ser contaminado com ébola, mas muito improvável. Ainda assim aconteceu, mas teve a sorte de ter acesso aos melhores cuidados de saúde nos Estados Unidos.

A 26 de dezembro de 2013 uma criança guineense de 18 meses adoeceu. A febre, os vómitos e as fezes negras acabariam por resultar na morte do menino dois dias depois. Não passariam mais que três semanas até que vários elementos da família da criança também sucumbissem à doença e morressem – não só os que viviam na aldeia de Meliandou, mas também os que tinham vindo de outras aldeias para o funeral. Mesmo no hospital da cidade de Guéckédou, onde vários elementos desta família tinham sido tratados, se assistia a sintomas de doença e causas de morte semelhantes, mas desta vez entre os profissionais de saúde que tinham estado em contacto com eles.

Esta criança foi a primeira vítima do surto de ébola que matou mais de 11 mil pessoas na África ocidental nos dois anos seguintes, mas no início de 2014 as autoridade estavam longe de saber o que se estava a passar. Esta doença “misteriosa” só foi identificada como ébola em março e passaram mais de quatro meses até que a Organização Mundial de Saúde a considerasse uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, a 8 de agosto do mesmo ano.

O surto afetou sobretudo a Guiné-Conacri, Libéria e Serra Leoa onde foram registados mais de 28 mil casos – muitos outros terão ficado por identificar ou confirmar. Ninguém parecia estar a salvo da estirpe mais letal deste vírus, de civis a profissionais de saúde. Ainda assim mais de 10 mil pessoas conseguiram enfrentar a doença, para a qual não existe tratamento específico, e sobreviver. Um deles foi Craig Spencer, um médico do Presbyterian/Columbia University Medical Center, em Nova Iorque, que esteve na África ocidental como voluntário. O Observador foi ouvir a sua história quando passou por Portugal.

Craig Spencer chegou à Guiné-Conacri, integrado numa equipa dos Médicos Sem Fronteiras, em setembro de 2014 e durante cinco semanas tratou centenas de doentes. “Lembro-me particularmente de uma família que me marcou: eram nove e viajaram desde a fronteira com a Costa do Marfim. As nove pessoas vieram em duas motorizadas para serem tratadas pois sabiam que tinham sido infetadas. Durante as semanas seguintes cuidei desta família e aprendi imenso sobre o ébola com eles, o que esperar a cada estágio da doença”, contou o médico. “E aprendi o quão cruel o ébola pode ser. Porque das nove pessoas que vieram ao centro de tratamento, apenas quatro se foram embora. Cinco deles morreram, incluindo quatro crianças.”

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Quando decidiu ir para a África, ou mesmo quando lá chegou, não tinha qualquer experiência no tratamento de pessoas infetadas com ébola. Na verdade muito poucas pessoas tinham. Os surtos do passado tinham sido mais localizados e os profissionais de saúde que tinham lidado com a doença muito poucos. “Eu sabia que era possível – mas extremamente improvável – que eu adoecesse [com ébola]. Disseram-nos que era possível quando nos voluntariámos para ir mas, até àquele momento, os Médicos Sem Fronteiras nunca tinham tido um caso de infeção com nenhum dos seus médicos internacionais.”

Ainda que sem experiência no tratamento de um surto desta dimensão, os Médicos Sem Fronteiras treinaram intensamente os voluntários que seguiram para a África ocidental e seguiram protocolos rígidos de prevenção de contágio. Craig Spencer também treinou muito, mas nada o poderia preparar para os desafios físicos e mentais que enfrentaria. “Do ponto de vista emocional, não consigo explicar o quão difícil era estar naquele ambiente sabendo que a qualquer momento poderia ser infetado, ou talvez até já tivesse sido. O longo período de incubação do ébola – 21 dias – deixa-nos a pensar, desde o primeiro dia, quando é que, possivelmente, aparecerão os sintomas.”

"O longo período de incubação do ébola - 21 dias - deixa-nos a pensar, desde o primeiro dia, quando é que, possivelmente, aparecerão os sintomas.”

Depois vem o desgaste físico. Todos os dias, três a quatro vezes por dia, tinham de vestir o Equipamento de Protecção Individual. Com 35 ou 40 graus Celsius no exterior, usar o equipamento de proteção implicava que ao fim de uma hora, quando os profissionais de saúde tiravam os fatos, estavam ensopados, exaustos e desidratados.

“Todas as manhãs acordávamos às 6h30, começávamos a tratar de pacientes um bocado depois das 7 horas e não voltávamos a casa antes das oito, nove, às vezes 10 horas da noite e fazíamos isto todos os dias.” Se para Craig Spencer as cinco semanas que esteve na Guiné-Conacri foram exigentes, o médico não consegue imaginar como terão sido para o médico que supervisionava a equipa há então seis ou sete meses com poucos dias de repouso nesse período.

“Os desafios psicológicos também eram incríveis.” Nem a experiência como médico nas urgências em Nova Iorque, nem o trabalho que já tinha realizado em África e na Ásia o prepararam para o que teria de enfrentar. “Um dos membros da família de que falei estava tão doente que estava alterado, o seu estado mental não era normal, e, apesar de o estarmos a tentar ajudar, ele estava bastante agitado. Tentámos colocar uma [agulha] intravenosa de modo a dar-lhe fluidos e medicação e, enquanto o fazíamos, ele agarrou-me, agarrou a intravenosa, arrancou-a do braço e começou a girá-la, quase me acertou e quase acertou num dos meus colegas”, conta o médico. “A mortalidade de uma punção intravenosa com vírus ébola é de 100%.”

“A mortalidade de uma punção intravenosa com vírus ébola é de 100%.”

Os riscos que corriam com determinados procedimentos e a falta de recursos hospitalares faziam com que os médicos só pudessem prestar cuidados básicos aos doentes, nada comparável ao que poderia ser feito num hospital nos Estados Unidos ou na Europa. Além disso, sem um tratamento específico contra este vírus, os médicos tinham de se adaptar às novas situações que iam surgindo. Até à altura, em nenhum dos surtos de ébola anteriores, havia relatos de grávidas que tivessem sobrevivido à doença. Mas naquele momento a equipa de Craig Spencer tinha de decidir o que fazer com uma grávida de seis meses que tinha sobrevivido.

“E se esta mulher fosse para casa, a três horas do nosso centro de tratamento, e sofresse um aborto como achávamos que aconteceria? Então haveria sangue por toda a casa e o parteiro, ou a parteira tradicional, se ela tivesse a sorte de a ter, seria infetada, todos 10 filhos seriam infetados também e a epidemia continuaria.” Isto porque o contacto com os fluídos corporais, nomeadamente o sangue, são a principal forma de transmissão do vírus e os rituais fúnebres naquela região implica o contacto com o corpo do defunto.

E ainda que a mulher já não tivesse o vírus a circular no sangue, este podia estar “escondido” na placenta. Para minimizar os riscos e vigiar esta grávida a equipa acabou por contratá-la para ficar a trabalhar no hospital.

Não havia protocolo para a quantidade de situações novas que apareciam diariamente. Um dos doentes estava tão alterado devido à doença que fugiu do centro. “Não existe protocolo que defina como lidar com um paciente agitado desta forma. Tentamos impedi-lo? Corremos e tentamos apanhá-lo para que não vá para a comunidade? Infelizmente, não podíamos fazer nada. O melhor que podíamos fazer era deixá-lo sentar-se ao sol até que o calor o tornaria tão fraco e desidratado que não conseguiria ripostar e nessa altura ir lá e tratar dele.”

As cinco semanas intensas passaram rapidamente, embora se sentisse aliviado por regressar a casa, Craig Spencer enfrentava um conflito interior: “Vinha-me embora numa altura em que havia falta de médicos e pessoal”.

Mas regressar aos Estados Unidos não significou esquecer o que tinha vivido nas últimas semanas. “De volta a Nova Iorque, o sofrimento que tinha presenciado combinado com a exaustão fizeram-me sentir deprimido pela primeira vez na minha vida”, escreveu o médico na revista científica The New England Journal of Medicine (NEJM) sobre a sua experiência. “Tinha receio da possibilidade incrivelmente remota de poder ficar doente e infetar a minha noiva, a pessoa que mais amo. Tocar nos outros e dar um aperto de mãos – ações proibidas na África ocidental – ainda me deixavam desconfortável.”

O medo de poder adoecer nos 21 seguintes ao seu regresso – o tempo de incubação máximo conhecido para o vírus – deixavam Craig Spencer ansioso sempre que media a temperatura, duas vezes por dia como mandava o protocolo. Num desses dias, a 23 de outubro, o termómetro marcou 37,5º C. Nada de especial numa situação normal, mas com recomendação para vigilância para quem tinha estado em contacto com o ébola. Ao fim do dia, depois de ter dado entrada no hospital veio a confirmação, Craig Spencer tinha sido infetado com o ébola. “Durante os dezanove dias seguintes, fiquei em isolamento numa sala pequena e só tinha contacto com pessoas com Equipamento de Protecção Individual.”

“De volta a Nova Iorque, o sofrimento que tinha presenciado combinado com a exaustão fizeram-me sentir deprimido pela primeira vez na minha vida.”

A doença não poupou o médico. “Nos primeiros dias febre e indisposição. Depois disso veio a diarreia, os vómitos e sentes-te horrível”, conta. “Não consigo descrever o quão horrível é uma febre de 40,5º C, mas é. Acreditem. E também não consigo explicar o alívio quando a temperatura baixa de 40,5º C para 39º C e te sentes uma pessoa completamente nova.” Mas os sintomas da doença não ficaram por aí. “Passei por uma insuficiência renal e hepática, recebi uma transfusão de sangue de outro sobrevivente e sofri de uma lesão pulmonar aguda associada à transfusão, tinha a garganta inflamada, perdi 10 quilos, mas o que mais me assustou foi a erupção cutânea. Assustou-me mais do que qualquer outra coisa, porque nunca tinha assistido a isso antes.

Craig Spencer sobreviveu para contar a história, mas considera que “o tratamento que recebeu não era justo”. Enquanto em África, o médico tinha de tratar de 30 doentes ao mesmo tempo, sem ter tempo para lhes prestar todos os cuidados de que necessitavam. “Quando eu estava a ser tratado, havia 30 pessoas a cuidar de mim a qualquer momento.”

“Eu apresentei-me no hospital no dia zero ainda antes de ter febre. Muitas das pessoas em África, apresentavam-se no quarto, quinto ou sexto dia, alguns ainda mais tarde. E eu não consigo imaginar os sintomas que estas pessoas tiveram em casa, sem qualquer tipo de tratamento, o que deve ter sido horrível.

Além disso, estando nos Estados Unidos, o médico teve acesso a tratamento experimentais, que quem estava em África não tinha, nem mesmo os outros profissionais de saúde que eram infetados enquanto tratavam os doentes. “Durante todo o tempo, sentia que tinha muita sorte pelo tratamento que estava a receber, mas não conseguia ultrapassar o sentimento de culpa que tinha por estar a recebê-lo. Por muito má que a minha experiência soe – a febre, a perda de peso e os sintomas horríveis -, não posso sequer a compará-la com o que deve ter sido para os doentes em África: lidar com o estigma, com as mensagens pouco claras, com a falta de tratamento e com muitos outros problemas que enfrentaram durante a crise.”

“Durante todo o tempo, sentia que tinha muita sorte pelo tratamento que estava a receber, mas não conseguia ultrapassar o sentimento de culpa que tinha por estar a recebê-lo."

Mas o sofrimento provocado pela doença, não encerra todo o impacto negativo do ébola para Craig Spencer. Enquanto esteve hospitalizado, sem acesso a televisão ou ao que estava a ser reportado nos media, o médico foi fortemente criticado por ter feito uma “vida normal” antes de ser hospitalizado – passeou, andou de metro, jogou bowling. Em sua defesa, e no artigo que escreveu na NEJM, Craig Spencer lembra que deu entrada no hospital assim que teve os primeiros sintomas da doença e que antes disso era impossível – tal como se verificou – ter contaminado qualquer pessoa com quem se tivesse cruzado.

No artigo, o médico deixa duras críticas aos órgãos de comunicação social e aos políticos nos Estados Unidos que, em vez de esclarecerem a população com factos reais sobre o ébola, lançaram o pânico sem necessidade e impuseram medidas de quarentena desmotivadoras para quem pensasse em ir para a África ocidental ajudar. “Em vez de serem recebidos como ajudantes humanitários que mereciam respeito, os meus colegas norte-americanos que regressaram a casa depois de lutarem contra o ébola foram tratados como párias. Acredito que enviámos a mensagem errada ao impor um período de 21 dias de espera antes que pudessem passar de ‘perigo para a saúde pública’ a ‘heróis’.”

Apesar da experiência marcante e dos sintomas horríveis, Craig Spencer quis voltar à África ocidental. “A razão porque voltei foi saber que, durante o resto da minha vida, me fariam perguntas sobre o ébola, tal como agora e eu não tinha feito mais do que trabalhar num centro de tratamento.” Por isso voltou para conhecer a realidade fora dos centros de tratamento, voltou para saber o que se passava nas clínicas e hospitais locais e no seio das comunidades. “Eu sabia que, quer eu quisesse, quer não, teria sempre uma voz sobre o que estávamos a fazer e o que tínhamos feito com a epidemia do ébola e queria ter a certeza que era uma voz tão informada e útil quanto possível.”

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