Índice
Índice
Os Jogos Olímpicos da Antiguidade começaram por ser de uma singeleza extrema: no primeiro evento, que teve lugar em 776 a.C., a única competição foi uma corrida de c.180 metros, designada por “stadion”, a partir do nome da estrutura onde tinha lugar e que daria origem à moderna acepção de “estádio”, em português e na maioria das línguas da Europa Ocidental (que à unidade grega de comprimento correspondente). Durante as primeiras 13 edições dos Jogos, o “stadion” foi a única modalidade e só em 724 a.C., nos XIV Jogos, surgiu o “diaulos” – que pouca variedade trouxe, já que se limitava a duplicar a distância do “stadion”. Na edição seguinte foi acrescentado o “dolichos”, corrido ao longo de 4800 metros, e só em 708 a.C. foi introduzida a luta livre e o pentatlo (que, então, compreendia o “stadion”, o lançamento do dardo, o lançamento do disco, o salto em comprimento e a luta livre). O número de modalidades foi aumentando lentamente (boxe, pancrácio, várias corridas de carros puxados por equídeos) e a partir da XXXVII edição dos Jogos Olímpicos (632 a.C.) surgiram modalidades específicas para rapazes. Porém, dada a natureza misógina da sociedade grega, a competição estava interdita ao sexo feminino e às mulheres casadas nem sequer lhes era permitido assistir aos jogos.
Os últimos Jogos clássicos de que há registo datam de 393 d.C. e só em 1896 a tradição olímpica foi reavivada em Atenas, sob a égide do Comité Olímpico Internacional, fundado dois anos antes em Lausanne, na Suíça, pelo barão Pierre de Coubertin (um francês) e por Demetrios Vikelas (um grego). Claro que, sendo os tempos outros, as modalidades disputadas em 1896 não se limitaram a reproduzir a tradição da Antiguidade: o atletismo e a luta foram fortemente expandidos e entraram em cena a natação, a ginástica, o halterofilismo, os desportos náuticos (vela e remo), o tiro, a esgrima, o ciclismo e o ténis, num total de 43 provas.
Desde 1896, as modalidades olímpicas têm vindo a sofrer constantes alterações, em função das modas, do poder dos grupos de pressão associados a cada desporto, da inclinação dos países organizadores em promover desportos associados à cultura nacional e dos humores do Comité Olímpico Internacional. Regularmente, os Jogos acolhem, além das modalidades oficiais, modalidades “de demonstração” ou “de exibição”, em que não são atribuídas medalhas, e que servem para avaliar a adesão de participantes e espectadores (e, mais recentemente, dos patrocinadores). Algumas destas modalidades “experimentais” acabam por impor-se e são hoje parte integrante dos Jogos, enquanto outras tiveram existência efémera. Desde 2008 que o COI deixou cair a designação “desportos de demonstração/exibição”, mas os Jogos continuam a acolher modalidades “experimentais”, que não fazem parte da competição oficial e não são contempladas com medalhas olímpicas.
Escalada em corda
Uma das inovações introduzidas nas primeiras Olimpíadas da Era Moderna (e que se manteria até 1932) foi a escalada em corda. Ao contrário do que é usual noutras competições de escalada em corda, em que apenas conta a rapidez da ascensão (recorrendo apenas aos braços), nos Jogos Olímpicos o júri era também chamado a pronunciar-se sobre a componente “artística” (até porque, chegado ao topo da corda, o trepador deveria assumir e manter uma posição em “L”).
A escalada em corda acabou por desaparecer dos eventos desportivos “sérios” e foi relegada para os campeonatos e demonstrações de polícias e bombeiros. A escalada regressou como modalidade olímpica nos Jogos de 2021, mas na sua faceta moderna e de “interior”, em que se usam mãos e pés para trepar uma superfície (aproximadamente) vertical dotada de pontos de apoio (escalada desportiva ou “sport climbing”).
A escalada em corda é, como espectáculo desportivo, uma sensaboria, até porque o Homo sapiens é pouco dotado para este tipo de acrobacias: um atleta humano que consagrou dezenas de milhares de horas a robustecer os músculos e a aperfeiçoar a técnica de escalada fará sempre triste figura ao lado de um banal orangotango de seis meses de idade.
Croquet
Os Jogos Olímpicos de Paris, em 1900, foram férteis em inovação e experimentação – o número total de provas, que fora de 43 em Atenas, passou para 95 –, o que se deveu, em parte, a fazerem parte de um evento mais vasto e ambicioso, a Exposição Universal de Paris, pelo que a organização das provas desportivas não ficou inteiramente sob a alçada do Comité Olímpico Internacional. Algumas modalidades introduzidas em 1900 não tiveram continuidade – foi o caso do croquet, desporto que, apesar da semelhança de nome, pouco tem a ver com o cricket, sendo mais afim do golfe (o nome croquet provém possivelmente da forma curvada (“crooked”) dos primeiros tacos). O croquet, que terá surgido na Irlanda c.1830, era então praticado sobretudo pela alta sociedade e tinha uma toada pacata e relaxada.
Os concorrentes que se apresentaram em 1900 eram todos franceses (três damas e sete cavalheiros), e, inevitavelmente, arrecadaram todas as medalhas. Foi a única competição olímpica deste desporto, embora nos Jogos de 1904, em St. Louis, tenha feito efémera aparição uma sua variante americana, o “roque”.
Cricket
Embora seja um desporto popular nas Ilhas Britânicas e nalgumas ex-colónias britânicas – sobretudo na Índia, Paquistão, Austrália e Nova Zelândia – o cricket só teve uma aparição como modalidade olímpica, nos Jogos de 1900. O desporto não tinha (como não tem) implantação na Europa continental, pelo que a competição prevista para os Jogos de Atenas fora cancelada por falta de participantes; em Paris, a equipa da Grã-Bretanha viu-se na iminência de ficar, novamente, sem adversários, mas acabou por defrontar uma equipa “francesa”, formada por membros da comunidade britânica em Paris. O resultado foi a vitória dos britânicos do lado de lá do Canal sobre os britânicos do lado de cá do Canal.
Pelota basca
A pelota basca é uma das muitas variações do “jeu de paume” (jogo de palma), um jogo disputado num pátio e em que uma bola é lançada contra um muro – começou por ser jogado com a palma da mão (“paume”, em francês) e, pouco a pouco, foram surgindo diferentes tipos de luvas e raquetas. Enquanto as variantes com raquetas evoluíram para o moderno ténis, as variantes com luvas conduziram à pelota basca (“pelota” de “pela” = bola, por, originalmente a bola ser cheia com pêlos, e “basca” por a sua prática apenas ter subsistido no País Basco, nos dois lados dos Pirenéus). No século XIX, o advento da bola em borracha tornou o jogo mais rápido e emocionante, o que foi acompanhado, c.1850, pelo desenvolvimento de uma luva que se prolonga sob a forma de uma cesta em vime, ou “chistera” (a cesta dá nome a uma variedade da pelota basca, a “cesta punta”), que permite lançar a bola com maior velocidade.
Nos Jogos de 1900 apenas se apresentaram duas equipas, espanhola e francesa (os dois únicos países onde o desporto era então praticado), tendo a prova sido ganha pela primeira, naquela que foi a estreia espanhola em medalhas olímpicas. A pelota basca regressou em 1924, 1968 e 1992, mas apenas como modalidade de demonstração. O desporto pouca expressão tem tido fora do País Basco (onde é jogado dos dois lados da fronteira) e das comunidades bascas na América Latina e nos EUA (sobretudo na Florida).
Tracção à corda
A competição em que dois grupos de pessoas puxam uma corda, tentando arrastar o grupo adversário, tem origem antiquíssima e expressão em todos os continentes, dos antigos egípcios aos índios do Deserto de Mojave, passando pela Índia, China e Japão, quer em contexto de ritual religioso quer de treino militar – a origem bélica está patente no nome que esta competição (desporto?) tem no Brasil (“cabo de guerra”) e no mundo anglófono (“tug of war”). Era popular na Grécia Clássica, onde era muito usada para desenvolver a robustez dos soldados, mas nunca integrou as Olimpíadas da Antiguidade.
A tracção à corda (é este o nome oficial do desporto em Portugal) fez a sua primeira aparição nos II Jogos Olímpicos Modernos, em Paris, em 1900, numa competição marcada por algumas bizarrias e irregularidades: estavam previstas apenas duas equipas, de seis homens cada, representando a França e os EUA, mas os membros da equipa americana estavam também inscritos noutras modalidades – três deles no lançamento do martelo. Quando a representação americana descobriu que as provas de tracção à corda e lançamento do martelo decorriam em simultâneo, desistiram da primeira, pelo que a equipa da casa teve de arranjar um adversário para defrontar.
A escolha recaiu sobre uma equipa mista de suecos e dinamarqueses montada com atletas inscritos noutras modalidades e complementada por um jornalista. Apesar de ter sido improvisada, a equipa nórdica vendeu a francesa – quanto aos americanos, a opção pelo lançamento do martelo revelou-se acertada, pois os seus três atletas arrebataram as medalhas de ouro, prata e bronze. Ainda assim, decidiram mostrar que, não fosse a coincidência de horários, poderiam ter também vencido a tracção à corda e desafiaram a equipa vencedora para uma prova fora do programa oficial. Sobre este confronto existem relatos divergentes: fontes americanas falam de duas vitórias americanas (e até da conquista da medalha de ouro); fontes franceses relatam que os americanos foram forçados a descalçar os seus sapatos com pitons, após protestos dos nórdicos, mas mesmo assim venceram a primeira mão; na segunda, quando a equipa americana deu indícios de começar a fraquejar, houve compatriotas seus que decidiram dar-lhes uma ajuda, o que motivou a indignação dos nórdicos e quase resultou em pancadaria.
Apesar deste início pouco auspicioso, a tracção à corda manteve-se como modalidade olímpica até aos Jogos de 1920, altura em esta a popularidade que esta competição adquirira no início do século começava a desvanecer-se, ficando relegada para feiras e folguedos rústicos, encontros de escuteiros e brincadeiras juvenis. É uma prova demasiado rudimentar e enfadonha para ser elevada à dignidade de “desporto”, mas poderia dizer-se o mesmo de modalidades como o lançamento do peso, do martelo ou do dardo.
Natação com obstáculos
Os Jogos de 1900 viram também a única competição olímpica de natação com obstáculos, na qual, ao longo de um percurso de 200 metros, os nadadores eram obrigados a trepar sobre duas embarcações e a mergulhar sob outras duas.
A prova, que foi vencida pelo australiano Fred Lane, não voltou a surgir entre as modalidades olímpicas.
Natação subaquática
Mais uma “ave rara” (ou um “peixe exótico”?) que teve a sua única oportunidade olímpica nos Jogos de 1900. Entre os 14 participantes que se atiraram ao Sena, o nadador norueguês Peder Lykkeberg foi quem se manteve debaixo de água durante mais tempo (90 segundos) e percorreu maior distância, mas terá interpretado mal o regulamento e descreveu um círculo na água, quando o que contava era a distância à margem – as medalhas de ouro e prata foram para os franceses Charles Devendeville e André Six, respectivamente, e Lykkeberg teve de contentar-se com o bronze.
É compreensível que uma modalidade que decorria longe dos olhares do público fosse pouco cativante em 1900 – hoje existe tecnologia para mostrar a natação subaquática em todo o seu esplendor, mas ninguém pensou seriamente em recuperá-la como desporto.
Salto em comprimento sem impulsão
Os Jogos de 1900 marcaram também a estreia olímpica do salto em comprimento sem impulsão, uma modalidade que se manteve até aos Jogos de 1912. O primeiro vencedor, com um salto de 3.47 metros, foi o americano Ray Ewry, que repetiria a medalha de ouro em 1904 e 1908, bem como nos Jogos Intercalares de 1906, em Atenas. O grego Konstantinos Tsiklitiras, após obter a prata em 1908, ascendeu ao ouro em 1912, em Estocolmo.
Salto em altura sem impulsão
A carreira olímpica desta modalidade acompanhou de perto a do salto em comprimento sem impulsão – durando de 1900 a 1912 – e foi dominada pelo mesmo protagonista nas três primeiras edições: o americano Ray Ewry conquistou medalhas de ouro em Paris, St. Louis e Londres, bem como nos Jogos Intercalares de 1906. Como Ewry também conquistou a medalha de ouro no triplo salto em Paris e St. Louis, obteve oito medalhas em provas individuais, um recorde que só seria igualado (e superado) 100 anos depois – em 2008 – pelo nadador americano Michael Phelps. O record olímpico nesta modalidade foi fixado em Paris em 1900, por Ewry, com 1.65 metros – o record do mundo foi, entretanto, subindo e é hoje de 1.90 metros.
Balonismo
Mais uma das modalidades que só surgiram nos Jogos de 1900, embora sem estatuto olímpico, até porque a iniciativa esteve sobretudo vinculada à Exposição Universal de Paris. Foram disputadas várias provas, segundo critérios de distância percorrida, elevação, duração do voo e precisão, isto é, um voo com destino pré-fixado (que não era fácil de atingir, uma vez que os balões não estavam dotados de qualquer meio de propulsão ou manobra, vogando ao sabor do vento). Todos os concorrentes eram franceses.
O vencedor da primeira prova de distância foi o conde Henry de La Vaulx, que aterrou em Włocławek, no Grão-Ducado da Polónia (então parte do Império Russo), percorrendo 1237 quilómetros. Na prova final, La Vaulx atingiria Korostychiv, na Ucrânia (então no Império Russo), cobrindo 1925 Km em 35 horas e 45 minutos.
A emoção que rodeia uma competição desportiva estava ausente desta modalidade, uma vez que a prova decorria, na sua essência, longe dos olhos e do conhecimento dos espectadores – o que terá contribuído para que o balonismo desaparecesse dos Jogos.
Boules
“Boules” designa vários jogos de arremesso de bolas, com regras similares mas tamanhos ou materiais diferentes nas bolas, de que o mais conhecido entre nós é a petanca. Os jogos de “boules” são eminentemente franceses, como atesta o facto de nos Jogos de 1900, disputados no “boulodrome” de Saint-Mandé, os 216 jogadores que disputaram as duas modalidades – “boule lyonnaise” e “boule parisienne” – serem todos franceses. Sem surpresa, as “boules” não voltaram a surgir nos Jogos Olímpicos.
Tiro ao pombo (vivo)
A modalidade mais embaraçosa dos Jogos de 1900 foi o tiro ao pombo e em abono da organização pode apenas dizer-se que não incluiu aquela entre as nove modalidades oficiais de tiro desse ano. Este “desporto” consistia em disparar sobre os pombos que eram libertados, um a um, de uma gaiola a alguma distância dos atiradores e as duas provas realizadas saldaram-se na morte de 300 pombos. A competição foi ensombrada pelos protestos dos grupos de defesa dos animais e a modalidade não voltou a figurar nos Jogos Olímpicos.
Outras modalidades “marginais” dos Jogos de 1900
O facto de os Jogos de 1900 serem co-organizados com a Exposição Universal de Paris levou a que Comité Olímpico Internacional não deixasse claro o estatuto de algumas modalidades: entre as que ficaram no limbo contam-se o voo de papagaios de papel; a pesca à linha; o resgate de pessoas da água; o combate a incêndios (cuja competição destinada a bombeiros profissionais foi ganha por uma equipa de Kansas City, sendo a vitória na categoria voluntários conquistada por uma equipa do Porto, uma glória semi-olímpica pouco conhecida); as corridas de pombos (com sete provas); o tiro com canhão (supõe-se que não tendo por alvo os pombos); desportos motorizados sobre rodas (15 provas, incluindo duas para carrinhas de entregas e duas para táxis, repartidas entre veículos com motores de combustão e veículos eléctricos, que, na época, ainda contestavam a hegemonia da gasolina); e desportos motorizados aquáticos (oito provas para embarcações de diferentes dimensões e em diferentes distâncias).
No tiro com canhão só alinharam franceses e nos desportos motorizados e na pesca à linha não foi muito diferente, tendo a França açambarcado todas as medalhas (semi-oficiais) nestas modalidades.
Lacrosse
Tal como os Jogos de 1900, também os de 1904 surgiram inseridos num evento imponente e com múltiplas vertentes: a Exposição Universal de St. Louis, também conhecida como Louisiana Purchase Centennial Exposition (por ter como tema central a celebração do centenário da aquisição da Louisiana à França pelos EUA). Tinha sido a Chicago que o Comité Olímpico Internacional (COI) atribuíra a realização dos Jogos de 1904, mas a ameaça de a componente desportiva da Exposição Universal de St. Louis, com sede em St. Louis, Missouri, ofuscar os Jogos de Chicago levou o COI a reatribuir o evento a St. Louis.
A integração dos Jogos na Exposição Universal voltou a favorecer a aparição de modalidades olímpicas pouco ortodoxas e de vida curta, entre as quais esteve uma de cunho fortemente americano: o lacrosse. Este desporto em que um taco é usado para introduzir uma bola numa baliza tem origem num jogo que, há séculos, era corrente entre as tribos de índios da América do Norte – nalgumas tribos canadianas o “proto-lacrosse” chegava a congregar centenas de jogadores num “campo” com vários hectares.
Como seria expectável, apenas alinharam equipas representando os EUA e o Canadá, tendo a vitória cabido ao segundo. O lacrosse regressou nos Jogos de 1908 e, como modalidade de demonstração, nos Jogos de 1928, 1932 e 1948.
Roque
A fraca adesão ao croquet nos Jogos de 1900 não dissuadiu os americanos de, em St. Louis, tentar impor a sua recente variante do jogo, o “roque”, cujo nome resultou da supressão da letra inicial e da letra final de “croquet” e se pronuncia como “rouk”. O “roque” tem regras similares ao croquet, mas é disputado num campo delimitado por um murete baixo e com uma superfície dura ou compactada, enquanto o croquet se joga num relvado sem limites definidos. O “roque” estava então em franca ascensão nos EUA e os seus promotores proclamavam que iria ser “o jogo do século”, mas era tão enfadonho de se ver como o croquet e não mais regressou aos Jogos Olímpicos; a sua popularidade nos EUA também acabou por declinar acentuadamente a partir da década de 1930.
Mergulho à distância
O mergulho à distância teve a sua única aparição olímpica nos Jogos de 1904. Consistia em saltar para a água a partir do bordo da piscina (sem tomar balanço) e em deslizar na água o mais longe possível, de barco, sem emergir e sem realizar qualquer trabalho de impulsão com os membros, ou seja, sendo o movimento decorrente apenas do impulso inicial. Quem, ao fim de 60 segundos, lograsse afastar-se mais do bordo da piscina seria declarado vencedor. Este “desporto” era, já então, encarado com reservas, pois requeria do “atleta” uma atitude pouco “pró-activa”, como hoje se diz. Não é de estranhar que após a edição de 1904, em que os “saltadores” americanos conquistaram as três medalhas (a de ouro foi para William Paul Dickey, com 19.05 metros), não tenha voltado a constar do programa olímpico nem de qualquer outra competição formal.
Singlestick
Está documentado que alguns chimpanzés usam paus como armas na caça de pequenos mamíferos e que outros primatas atiram paus (e pedras e frutos) como forma de defesa, embora de forma frouxa e imprecisa – a verdade é que nenhum outro animal é capaz de manejar um pau com a desenvoltura, firmeza e precisão do Homo sapiens. Entre os vários tipos de lutas com paus que cristalizaram como artes marciais em diferentes civilizações, a primeira a converter-se (efemeramente) em modalidade olímpica foi o “singlestick”, uma “arte marcial” que empregava um bastão de freixo de c.80-90 cm e que remontava à Inglaterra dos séculos XVI/XVII (por isso era também conhecida como “English singlestick”) e que se tornara parte do adestramento dos marinheiros da Royal Navy e, depois, da U.S. Navy.
O “singlestick” fez uma aparição nos Jogos de 1904, como uma das modalidades de esgrima, e as três medalhas foram conquistadas pelos EUA. Na época, esta arte marcial já caíra em desuso na Marinha dos EUA, o que leva alguns investigadores a sugerir que a competição disputada em St. Louis terá sido mais afim da “canne à combat” (ou “bâton français”), uma arte marcial desenvolvida em França no século XIX, focada na auto-defesa das classes possidentes (as ruas eram então assaz inseguras) e que, numa variante, recorria não a um bastão mas a uma bengala. Na verdade, a “canne de combat” já fizera parte das competições paralelas da Exposição Universal de 1900, e regressaria nos Jogos Olímpicos de 1924, novamente em Paris, como “modalidade de demonstração”. O aumento da segurança nas urbes francesas levou ao rápido declínio da “canne de combat”, só renascendo, agora como “desporto”, a partir da década de 1960.
Vale a pena recordar que a bengala, hoje restrita a quem tem dificuldades de locomoção, era usada na viragem dos séculos XIX/XX por cavalheiros robustos e desempenados e era frequentemente empregue para dirimir divergências de opinião e reparar afrontas, nomeadamente entre políticos, jornalistas e outros protagonistas do espaço público. A bengalada foi hoje substituída pelo tweet e pelo post no Facebook, artes marciais que, embora tenham vasto número de praticantes, não reúnem condições para serem modalidades olímpicas (não há regras e abundam os golpes baixos).
Clavas
Os eventos de ginástica dos Jogos de 1904 incluíram a modalidade de clavas ou maças indianas, conhecida em inglês por “club swinging” (não confundir com “clubes de swing”) ou “Indian clubs”. Os peritos na matéria consideram “club swinging” uma modalidade distinta da “Indian club”, embora ambas envolvam revolutear maças, cabendo a um júri avaliar a rapidez, destreza e valor estético (?) dos movimentos. Embora, como o nome indica, este “desporto” tenha origem na Índia, foram imigrantes alemães que, no final do século XIX, o levaram para os EUA, onde ganhou um efémera popularidade – não é de admirar que as três medalhas nos Jogos de 1904 tenham sido atribuídas a americanos.
Como mais nenhum país atribuía dignidade de desporto à gesticulação com clavas, estas só ressurgiram nos Jogos de 1932, em Los Angeles – embora os picuinhas insistam que, desta feita, a modalidade era o “Indian clubs” – e os americanos voltaram a monopolizar as medalhas, para gáudio dos 60.000 espectadores que enchiam o Memorial Coliseum. Não por acaso, os três “atletas” medalhados – George Roth (ouro), Philip Erenberg (prata) e William Kuhlemeier (bronze) – tinham apelidos de origem alemã.
Modalidades “antropológicas”
Entre as principais iniciativas da Exposição Universal de 1904 estavam as “exposições antropológicas” que davam a ver, numa perspectiva paternalista, eurocêntrica e racista, etnias de regiões “exóticas”. Em St. Louis mais de dois milhares de “indígenas” da Ásia, África, Médio Oriente, Américas e Oceânia foram exibidos em réplicas canhestras dos seus “habitats naturais”, não para pôr em evidência a deslumbrante diversidade da Humanidade ou para promover o diálogo intercultural, mas para proclamar a indiscutível superioridade da civilização americana branca. Havia ainu do Norte do Japão (vistos como infra-humanos até pelos restantes japoneses), pigmeus Mbuti (adquiridos a Leopoldo II, rei dos Belgas e único proprietário do Estado Livre do Congo), “patagões” dos Andes e uma amostra do que restava das tribos índias norte-americanas massacradas e escorraçadas na Conquista do Oeste (entre os quais avultava o líder apache Geronimo, que se prontificava a tirar selfies com os visitantes – as selfies permitidas pela tecnologia de 1904, entenda-se), bem como índios mexicanos, turcos e sírios.
A principal atracção do jardim zoológico humano de St. Louis era a Reserva Filipina, uma área de 19 hectares contendo uma “aldeia” dos igorot, um povo das regiões montanhosas da ilha de Luzón – recorde-se que as Filipinas eram a adição mais recente às possessões americanas e que o arquipélago tinha sido alvo de uma brutal guerra de pacificação, terminada dois antes (os “ingratos” filipinos não se tinham mostrado suficientemente gratos por os EUA os terem “libertado” do jugo espanhol em 1898). A Reserva Filipina, que albergava 1400 almas, tinha o duplo propósito de exibir a nova aquisição americana aos visitantes e de criar uma “embaixada” filipina que, de regresso à terra natal, divulgasse junto dos seus as maravilhas da civilização americana, contribuindo para a “domesticação” do arquipélago. O facto de os igorot serem apresentados como estando “na Idade da Pedra”, andarem seminus e terem o hábito de confraternizar em redor de um cão assado no espeto terá contribuído para que a sua aldeia fosse a mais visitada das “atracções antropológicas” da Exposição Universal.
Foi neste contexto que James E. Sullivan, presidente na União Atlética Amadora, e William J. McGee, presidente da Associação Americana de Antropologia, tiveram a ideia de improvisar uns “Special Olympics”, que ficaram conhecidos como Anthropology Days (a imprensa local preferiu chamar-lhes “Savage Olympics”) e decorreram a 12 e 13 de Agosto, alguns dias antes do início dos Jogos Olímpicos propriamente ditos. No primeiro dia, os “selvagens” competiram entre si em provas que pretendiam replicar as modalidades dos atletas “civilizados”, mas que decorreram de forma anárquica, em resultado de poucos “selvagens” compreenderem a língua inglesa e terem interpretado mal as regras que lhes foram apressadamente transmitidas. No segundo dia, decorreram as “modalidades” que ilustravam actividades próprias de “selvagens”, como escalada de árvores e de pau ensebado, tiro com arco e flecha, lançamento de zagaias, combates de lama. Quase todas as provas redundaram em fiasco, não só por os “atletas” não terem compreendido o que se pretendia deles, como por serem alheios aos conceitos de “desporto”, superação, competição e disciplina – nas provas de corrida era usual que os que seguiam à frente parassem para esperar pelos companheiros.
A própria ideia de fazer um tremendo dispêndio de energia física e mental sem a geração de qualquer benefício prático parecia escapar a muitos dos “selvagens”; é também provável que estas gentes considerassem que só alguém possuído por espíritos malignos escolheria consagrar toda a vida ao aperfeiçoamento e automatização de um rígido e limitado repertório de movimentos que, em muitas modalidades (nomeadamente as de lançamento e salto), se esgota em menos de cinco segundos, e cuja prática repetida e obsessiva rapidamente faz evaporar a componente lúdica e de quebra de rotina que está na raiz de qualquer jogo.
O completo fracasso dos Anthropology Days não impediu McGee de concluir que a iniciativa “provou de forma quantitativa a inferioridade dos povos primitivos […], no que respeita à coordenação da mente e do corpo, que assinala um pináculo da evolução humana e permite medir a excelência humana”.
Apesar de os Anthropology Days não fazerem parte da programação olímpica, algumas fontes reproduziriam depois a ideia de que a escalada do pau ensebado já foi modalidade olímpica – o que não seria assim tão invulgar, já que a escalada eme corda teve essa distinção.
Outras modalidades dos Jogos de 1904
Os Jogos de 1904 marcaram a estreia de vários desportos que tiveram sortes diversas.
A estreia na competição oficial do boxe – na verdade um regresso, se considerarmos que, com outras regras, já figurara nas Olimpíadas da Antiguidade – veio para ficar. Já a demonstração de boxe feminino não foi bem acolhida pelo COI, que considerou que representava “um risco para a saúde” das atletas; na verdade, talvez tenha pesado mais na decisão o facto de chocar com os códigos sociais (aliás, custa a crer que o mundo de 1904 a tenha aceitado sequer a título experimental). O boxe feminino só em 2012 seria admitido nos Jogos – abrindo a metade da Humanidade o ensejo para infligir e receber lesões cerebrais irreversíveis em contexto olímpico.
O basquetebol não pegou e só em 1936 foi admitido oficialmente – dando lugar a décadas de domínio americano, com intromissões pontuais da Jugoslávia, URSS e Argentina.
O baseball tornar-se-ia num dos desportos mais populares do mundo, mas teve presença errática (a título de demonstração) nos Jogos, foi admitido como modalidade olímpica em 1992, voltou a ser excluído nos Jogos de 2012 e foi readmitido nos de 2020, ou não fosse o Japão um dos países onde o desporto goza de maior popularidade (por influência da ocupação americanas no pós-II Guerra Mundial).
O futebol gaélico, que pode ser visto como um híbrido de futebol e rugby e não tinha (nem nunca teve) expressão fora da Irlanda, não conseguiu convencer o COI.
O futebol americano (ou simplesmente “football”, para os americanos), foi ganho pela equipa da casa, a Universidade de St. Louis, mas a vitória foi um mero artifício de secretaria, pois os jogos nem sequer fizeram parte do calendário dos Jogos Olímpicos: as equipas designadas – todas americanas, claro – limitaram-se a cumprir o calendário usual da temporada. A modalidade só regressaria, novamente como demonstração, quando os Jogos regressaram aos EUA, em Los Angeles, em 1932, mas não foi admitida pelo COI, situação que se mantém até hoje, em parte porque, embora o desporto seja hoje acompanhado na televisão um pouco por todo o mundo, continua a só ser jogado a alto nível nos EUA.
Duelo com pistola
Os Jogos Olímpicos idealizados pelo barão Pierre de Coubertin não se limitavam a pretender reviver os ideais da Grécia Clássica: espelhavam também os hobbies dos aristocratas e oficiais da viragem dos séculos XIX/XX, como se comprova pela introdução de numerosas modalidades de tiro, equitação e combate e pelo facto de os primeiros “atletas” incluírem forte representação daquelas classes, que era quem dispunha do tempo livre e dos meios necessários à prática desportiva – e também da alimentação adequada para gerar um corpo de atleta: entre a populaça, devido à fome, às doenças, ao trabalho infantil e às condições insalubres em casa e no trabalho, campeavam o raquitismo, as deformações ósseas, as atrofias musculares e as doenças respiratórias.
A aparição (singular) do duelo com pistola nos Jogos Olímpicos de 1908, em Londres (como modalidade não-oficial, inserida na Exposição Franco-Britânica, que decorria em paralelo), enquadra-se nesta perspectiva aristocrática e militar do desporto. No “duelo olímpico”, como a modalidade também era designada, os dois adversários, envergando protecções na cabeça e tronco, disparavam projécteis de cera um contra o outro, a 20 metros (categoria ganha pelo francês Léon Moreaux) e a 30 metros (categoria ganha pelo grego Konstantinos Skarlatos).
Na verdade, o duelo com pistola já fizera a sua aparição nos Jogos Intercalares de 1906, em Atenas, um evento olímpico semi-oficial, mas nesta ocasião os dois atiradores não dispararam um contra o outro mas contra um manequim.
Jeu de paume
O antepassado da pelota basca, o “jeu de paume” (jogo de palma), reemergiu da profundeza dos tempos para os Jogos de 1908, em Londres, na versão com raquetas, que, após a primeira aparição, no início do século XVI, tinham substituído rapidamente as luvas de couro (o jogo de mãos nuas continuou a ser praticado entre as classes mais humildes, que não podiam dar-se ao luxo das raquetas).
Na Idade Média o “jeu de paume” ganhara extraordinária popularidade em França, a ponto de, em 1397, as autoridades de Paris terem decretado que apenas poderia ser jogado aos domingos, para que jogadores e público não descurassem os seus ofícios e famílias e não perturbassem a ordem pública. O apreço continuado dos franceses pelo jogo é atestado pelo facto de em 1527 Francisco I ter promulgado os estatutos dos jogadores profissionais (“paumiers”) e de no final desse século existirem em Paris 1800 espaços consagrados ao jogo (entre pátios e salas); por esta altura, um viajante inglês espantou-se por em França os campos destinados ao “jeu de paume” serem “mais numerosos do que as igrejas e haver mais jogadores do que bebedores de cerveja em Inglaterra”.
No século XVIII o desporto entrou num rápido declínio em França, embora tenha logrado lançar raízes do outro lado do Canal da Mancha (onde evoluiu para o “real tennis”, assim designado para se distinguir do ténis moderno ou “lawn tennis”) e, mais tarde, nos EUA. Sem surpresa, neste efémero ressurgimento nos Jogos de 1908 apenas se apresentaram “paumiers” britânicos e americanos, tendo a medalha de ouro sido conquistada por um americano, a prata e o bronze por britânicos.
Rackets
Os Jogos de 1908 foram também o palco da única aparição olímpica de um parente britânico do “jeu de paume” (e da pelota basca e do “squash”): o jogo, designado por “rackets” (um nome nada esclarecedor, já que muitos outros desportos usam raquetes) nascera no final do século XVIII em King’s Bench e Fleet, duas prisões londrinas especializadas em acolher caloteiros, que se entretinham a atirar bolas contra o muro do pátio da prisão. O “rackets” chegou ao Canadá em 1825 e teve alguma popularidade no nordeste dos EUA no início do século XX, mas nunca teve grande expressão fora da Grã-Bretanha. Todas as medalhas dos Jogos Olímpicos de Londres ficaram, claro, com os atletas “da casa”.
O “rackets” nasceu num contexto social em que os processos por dívidas eram tratados com dureza implacável: qualquer pessoa que não fosse capaz de pagar as suas dívidas, uma multa ou as custas de um processo judicial, era encarcerada sem apelo nem agravo e a pena de prisão não só não abatia um cêntimo à quantia devida aos credores, como o preso era obrigado a pagar as despesas do seu encarceramento. A forma draconiana como a justiça da época lidava com o endividamento levou a que na Grã-Bretanha dos séculos XVIII e XIX fossem condenadas à prisão por dívidas uma média de 10.000 pessoas por ano, o que explica a existência de várias prisões exclusivamente consagradas a este tipo de crime (ainda que alguns reclusoso beneficiassem de saídas temporárias). É um curioso contraste com o Portugal do século XXI, onde é possível, durante anos a fio, acumular dívidas de centenas de milhões de euros e continuar a gozar de plena liberdade e viver como um nababo – o que talvez explique a pouca implantação do “rackets” por cá.
Voo à vela
Em 1919, o Tratado de Versailles impôs à Alemanha sérias restrições no desenvolvimento e fabrico de material bélico – uma dessas interdições visava os aviões monolugares de combate, o que levou os engenheiros e fabricantes alemães a reorientar parte da sua actividade para o desenvolvimento de planadores. Estes serviram para o treino inicial dos pilotos militares e providenciaram valiosa informação (sobretudo no domínio da aerodinâmica) que foi, depois, aplicada na concepção de aviões de combate dotados de motor (fabricados no estrangeiro ou recorrendo a outros subterfúgios). O voo à vela foi ganhando popularidade na Alemanha e recebeu um forte impulso após a ascensão ao poder dos nazis, que viram nele uma forma de tornear parcialmente as restrições impostas em 1919. Em 1933, o Governo decretou a extinção dos clubes civis de voo à vela e colocou-os, juntamente com as secções de voo à vela das SA e das SS, sob a égide da Associação Alemã de Desportos Aéreos, convertida em 1935 na organização paramilitar Nationalsozialistisches Fliegerkorps (Corpo Aéreo Nacional-Socialista).
[Demonstração de voo à vela, Alemanha, meados da década de 1930:]
Em 1936, contando o voo à vela com quase 50.000 praticantes na Alemanha, é natural que o regime tenha introduzido nos Jogos Olímpicos de Berlim esta modalidade na categoria de demonstração. O COI aceitou que em 1940, nos Jogos Olímpicos de Tóquio, o voo à vela fosse uma modalidade oficial, mas não só os Jogos foram cancelados como, por essa altura, os pilotos que tinham feito a sua iniciação em planadores estavam agora a bombardear cidades, estradas, caminhos-de-ferro e navios aos comandos de Junkers Ju 87 Stuka – a era do voo planado dera lugar à do voo picado.
Natação sincronizada individual
A água é um meio em que, à partida, o Homo sapiens não se sente muito à vontade; enquanto quase todos os mamíferos sabem nadar instintivamente, o homem precisa de ser treinado e mesmo os melhores nadadores humanos fazem figura lerda e desajeitada quando comparados com animais adaptados ao meio.
A natação sincronizada é um espectáculo de pendor kitsch e comicidade involuntária e que só é parcialmente redimido pela capacidade dos humanos para planearem e agirem de forma concertada. A gesticulação é invariavelmente grotesca e sem relação com a música, mas a precisa articulação geométrica entre as várias nadadoras (a modalidade tem sido quase exclusivamente feminina, o que mereceria reflexão) parece ser apelativa para alguns espectadores – embora seja difícil perceber o que levará alguém a preferir ver uma prova de natação sincronizada em vez de um documentário sobre lontras.
A primeira competição de natação sincronizada (ou “bailado aquático”, como era então chamada) teve lugar em Berlim em 1891, mas o COI resistiu a admiti-la como modalidade olímpica, mesmo quando, nas décadas de 1940 e 1950, os “aquamusicals” protagonizados por Esther Williams averbaram sucessivos êxitos de bilheteira (justificando o cognome de Williams: “Million Dollar Mermaid”).
A natação sincronizada só se estreou nos Jogos de 1984, em Los Angeles, e tem, desde então, figurado em todas as Olimpíadas.
Outro destino teve a sua sub-modalidade individual, cujo nome é um aparente oxímoro – a “sincronização” diz respeito não às nadadoras mas à sintonia entre os seus movimentos e a música (que, de qualquer modo, é remota). A sua supressão em 1992 é compreensível, já que o único atractivo da natação sincronizada – a actuação coordenada das nadadoras – desaparece quando só há uma pessoa na piscina. Do ponto de vista do espectador, a modalidade equivale a um afogamento terrivelmente histriónico.
Surf
Um desporto pode ter séculos de existência, mais de um século de prática continuada no mundo ocidental, mais de meio século de competições internacionais (que hoje movimentam quantias substanciais e atraem patrocinadores generosos), milhões de praticantes espalhados pelo mundo e uma legião ainda mais vasta de seguidores, e, no entanto, estar excluído das modalidades olímpicas. Foi o que aconteceu com o surf, que, após anos de lobbying, só teve estreia oficial nos Jogos de 2020.
Porém, o que deveria ser um momento de regozijo para os praticantes e apreciadores de surf foi logo inquinado pela acusação de que o reconhecimento do surf pelo COI como modalidade olímpica era um “branqueamento” da sua real origem – o protesto emanou de nativos do Hawaii, que entendem que foram os seus antepassados que criaram e desenvolveram o desporto, para depois o verem apropriado pelos americanos brancos e, depois, pelos brancos em geral – e, com efeito, as figuras de proa da modalidade, quer nas competições masculinas quer nas femininas, têm sido homogeneamente brancas e dominantemente louras (se necessário recorrendo à descoloração do cabelo).
Nas palavras de um historiador havaiano, a consagração do surf sem menção às suas raízes havaianas representa “o paradoxo e hipocrisia da colonização”. Ou seja: os brancos desembarcaram no Hawaii, saquearam os seus recursos naturais, disseminaram doenças que dizimaram a população local, oprimiram e exploraram os sobreviventes, menorizaram a sua cultura e, para cúmulo, ainda lhes roubaram o surf.
Se o surf tivesse sido admitido como modalidade olímpica nos Jogos de Tóquio de 1964, a reboque da popularidade dos Beach Boys, ninguém teria reclamado e o surf seria hoje uma modalidade como as outras. Porém, em 2021, as antenas “woke” giram sem cessar, escrutinando o éter em busca de motivos para agravo e indignação e era inevitável que o surf fosse identificado como um escandaloso caso de “apropriação cultural” (ver Há turbas de linchamento à solta na Internet).
Com efeito, os registos históricos indicam que o surf – ou algo similar – já era praticado na Polinésia antes da chegada dos europeus, mas aí se quedou circunscrito até ao final do século XIX. O evento que espoletou a sua divulgação no “exterior” parece ter ocorrido em 1885, quando três jovens príncipes havaianos que estudavam numa escola em Santa Cruz, na Califórnia, foram vistos na foz do Rio San Lorenzo a deslizar nas ondas de pé sobre umas tábuas; nas primeiras décadas do século XX já a “cultura do surf”, com focos no Hawaii, Califórnia, Carolina do Norte e Austrália, passara a ser comandada por brancos. Ao mesmo tempo, o que nascera como um entretenimento (ou um acto ritual de comunhão com o mar), foi alvo da obsessão doentia do mundo ocidental em converter todo o lazer e ócio numa actividade quantificável e monetizável – e assim foi o surf “elevado” à condição de competição desportiva.
Retomando a polémica da “apropriação cultural”, é pertinente lembrar que os havaianos não são os únicos a reclamar a paternidade do surf, pois há indícios de que na cultura moche do Peru também existia a tradição de cavalgar as ondas sobre uma embarcação rudimentar feita de juncos (hoje conhecida como “caballito de totora”), cujos vestígios mais antigos remontam a c.200 d.C.
Por outro lado, poderia argumentar-se que também os senegaleses que jogam futebol ou os portugueses que praticam judo estão a cometer uma “apropriação cultural” (sobre os britânicos e os japoneses, respectivamente), mas a retórica “woke” só reconhece este fenómeno quando são os grupos historicamente dominantes a “pilhar” os grupos historicamente oprimidos – também o racismo só é reconhecido pelos “woke” quando se manifesta no sentido branco-negro. Com argumentos deste tipo, as hostes “woke” têm sempre garantida a vitória em todas as polémicas; resta esperar que esta cultura de ressabiamento não retire aos não-havaianos o prazer de deslizar sobre as ondas em equilíbrio sobre uma prancha.
Tosquia de caniches
Esta invulgar modalidade teve, supostamente, lugar nos Jogos de 1900, em Paris, contou com 128 participantes e 6000 espectadores e a medalha de prata foi conquistada pela francesa Avril Lafoule, a esposa de um lavrador da região de Auvergne que teria tosquiado 17 caniches em duas horas.
Ora, é certo que as Olimpíadas de 1900 foram férteis em desportos pouco convencionais, mas a tosquia de caniches não fez parte do seu programa, se é que alguma vez foi pretexto para uma competição: trata-se de um “hoax” nascido num texto jocoso de Christopher Lyles, publicado a 1 de Abril de 2008 no Daily Telegraph. Mas, como é usual na Era da Internet, o “hoax” mantém-se vivo, sendo reproduzido como um facto por media respeitáveis, apesar de o nome da vencedora da prova ser uma alusão óbvia a “April’s fool”, ou seja, o costume de contar mentiras no 1.º de Abril.
Hoje, mesmo que alguém tivesse a ideia de tornar a tosquia de caniches em modalidade olímpica enfrentaria seguramente a firme oposição de organizações e partidos animalistas, que considerariam tratar-se de uma inadmissível violência sobre os pobres cães.
De qualquer forma, a ideia de uma competição de tosquia de caniches não é muito mais vã, ridícula e enfadonha do que uma competição de clavas indianas – na verdade, estas modalidades “marginais” ajudam a colocar em perspectiva a natureza essencialmente absurda e destituída de sentido do espectáculo desportivo (seja ele olímpico ou de outra natureza, e sejam as modalidades mais ou menos “nobres” ou “consagradas”) e podem contribuir para que não se seja tão facilmente enfeitiçado pela cobertura de eventos desportivos realizada pelos media, que, mediante uma maciça manipulação emocional (onde se mesclam nacionalismo primário e uma narrativa martirológica de “sacrifício”, “sofrimento” e “superação”), conseguem instilar em milhões de “atletas de sofá” a aberrante ilusão de que o facto de um seu compatriota ter conseguido chegar uns centímetros mais longe numa caixa de areia em Tóquio do que um saltador paraguaio ou uzbeque, é um acontecimento de importância transcendente, na vida pessoal do espectador e no destino da nação.