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Bala Desejo é euforia, tesão, corpo, amor carnal e astral. É o reverso da pandemia, a ânsia de beber e comer de todas as influências, é o reflorescer tropicalista e a revisitação do manifesto antropofágico de Oswald de Andrade. É a antítese do isolamento, do individualismo, da fatalidade. Enfim, é a banda sonora que tanto ansiávamos para nos reencontrar, connosco e com os outros, fechada a porta do bunker existencialista a que a pandemia nos votou.
Para quem ainda não se cruzou com esta Kombi (como os próprios gostam de chamar) que tem sempre espaço para mais um, mais dez, mais mil tripulantes, os Bala Desejo são, na sua essência, Zé Ibarra, Lucas Nunes, Dora Morelenbaum e Julia Mestre, quatro músicos da nova geração brasileira, dos mais promissores que o país do carnaval tem para nos dar. Não se veem como uma banda, antes sim como quatro forças que seguem caminhos próprios, mas as quais o presente convocou para, sem o saberem, assinarem um manifesto cultural que tem como ponto de partida o verbo “Recarnavalizar”. Ou seja, esse ato de “tornar possível o acesso de volta à vida, ao encontro e ao abraço, incorporando o SIM como postura afirmativa”.
Nesse SIM cabem vários brasis, de Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Rita Lee, Novos Baianos, Chico Buarque, Dorival Caymmi a Tim Bernardes, Duda Beat, Tom Veloso ou Tom Karabachian. Mas também está lá a América Latina e laivos de ABBA e Michael Jackson. A fusão é real, como nos conta Zé Ibarra que, juntamente com Dora Morelenbaum, falou do outro lado do oceano com o Observador: “A música pop brasileira hoje não poderia culminar se não abraçássemos tudo”.
Um disco de referência, não de reverência
SIM SIM SIM foi lançado em duas tranches: primeiro o Lado A, em janeiro, e agora o Lado B, recuperando a mística do vinil. “Não é uma atitude saudosista, de querer voltar para uma coisa que não existe mais. Acho que uma coisa que já foi interessante, pode ser de novo, pode ser de outra forma ou mais interessante ainda”, explica Dora.
[oiça o Lado A de “SIM SIM SIM” através do Spotify:]
Toda a estética do álbum remete-nos para os anos 70, quer no formato, quer no ideal e sonoridade tropicalista. Porém, como Zé Ibarra enfatiza, aquilo a que os Bala Desejo se propuseram foi fazer uma coisa que tivesse relevância e que não acabasse no mesmo lugar explorado pelos autores clássicos que os quatro têm como clara influência. “Acho que o tropicalismo está dentro de todos nós. Toda a postura tropicalista é muito forte aqui no Brasil. Embora seja muito clara a que família é que pertencemos, este disco nunca se pretendeu a ser um disco de reverência, mas de referência”.
A herança cultural, ao contrário de aparecer como um lugar sacralizado, brota com vontade de se renovar no solo fértil da criatividade destes quatro músicos nascidos nos anos 90, que tiveram a acutilância de saber cantar e encarnar o presente tornando SIM SIM SIM um testemunho plural e total dos nossos tempos. “Queríamos que Bala Desejo soasse múltiplo, anti-individualista, que fosse um processo coletivo e que incorporasse as mil facetas possíveis de qualquer coisa que aparecesse à nossa frente. Talvez assim conseguiríamos chegar a um lugar mais interessante”, conta Zé Ibarra. O disco é, nesse sentido, “uma miscelânea de várias coisas”, a prova de que o Brasil, musical e conceptualmente falando, ainda tem muito espaço para ser explorado: “Ele está-se atualizando”.
Não foi do nada que aqui chegaram: Dora é filha do violoncelista e maestro Jaques Morelenbaum, que aliás assina os arranjos de cordas e divide com Diogo Gomes os de sopro deste disco; Lucas Nunes produziu o mais recente álbum de Caetano Veloso, Meu Coco, e é parceiro de Zé Ibarra nos Dônica, banda que partilham com Tom Veloso. Ibarra é, por sua vez, um dos nomes que os grandes da música brasileira se têm vindo a apaixonar: Gala Costa chamou-o para o dueto “Meu bem, meu mal”, do projeto “Gal 75” e Milton Nascimento convidou-o para integrar a sua banda na digressão Clube da Esquina. Julia Mestre vem trilhando o seu caminho entre a pop dos anos 80, o punk e a MPB e está prestes a lançar o seu segundo álbum, Arrepiada. Todos se conheceram na escola e desde aí que são grandes amigos.
O movimento Bala Desejo
Foi com naturalidade que os quatro se juntaram em casa de Julia quando a pandemia estalou. Ali montaram um estúdio, sob o pretexto de cada um trabalhar nos seus materiais, mas cedo se aperceberam de que qualquer coisa nova estava a nascer daquela experiência. “Fomos para a casa da Julia sem intenção de fazer um projeto, mas aconteceu que Bala Desejo nasceu dessa vontade de estarmos juntos”, conta Dora, referindo que o facto de se terem aproximado foi uma resposta espontânea a uma imposição de isolamento geral, que é prévia à própria pandemia e que já estava a ser veiculada por uma retórica individualista do mundo.
A madrinha do projeto, chamemos-lhe assim, foi a cantora e compositora carioca Teresa Cristina, que durante a pandemia fez dos seus lives no Instagram um verdadeiro fenómeno nacional, ao ponto de ter sido eleita artista do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). “Na pandemia rolaram muitos movimentos de lives, só que a Teresa comprometeu-se a fazê-lo todos os dias. Ela é uma enciclopédia musical e além disso tem um carisma fenomenal, um jeito maravilhoso de falar, de seduzir pela voz e pelas ideias. Quando demos por ela, estava toda a gente vidrada nas lives. Houve lives com mais de 10 mil pessoas! Foi uma coisa muito louca”, conta Ibarra.
Em certa medida, os lives da Teresa Cristina tornaram-se nos concertos possíveis numa altura em que os espetáculos ao vivo estavam congelados. Todos os dias, vários artistas eram convidados a tocar, cada qual em sua casa, prestando homenagem a diferentes nomes e movimentos da música brasileira. “Nós também fomos chamados a participar nesse palco. Em algumas lives, a Dora tocou com o Lucas, eu toquei sozinho noutra e noutras duas Bala Desejo, que na altura nem era Bala Desejo, tocou.”
As reações foram instantâneas. Muitos disseram que queriam morar na mesma casa que os quatro músicos ou simplesmente conhecê-los. “Foi aí que começou o movimento Bala Desejo. Nós nem tínhamos ideia de ser uma banda, foi o público que falou”, aponta Zé, corrobora Dora: “Foi um movimento que nasceu de fora para dentro”.
As coisas ficaram mais sérias quando os responsáveis do Coala Festival, evento de referência que provoca o encontro entre a música brasileira da velha guarda e a contemporânea, convidaram em direto, num dos lives de Teresa Cristina, os quatro a tocar na edição desse ano do festival. Segundo Marcus Preto, jornalista e produtor prestigiado que faz parte da equipa de curadoria do Coala, os Bala Desejo representavam tudo o que o festival defendia: a nova música brasileira que sabe de onde veio e dialoga com a própria história, sem que isso seja uma questão; compositores que valorizam especialmente a canção; artistas com potencial para furar a bolha alternativa e conquistar ouvidos e amores para além de limites de mercado; e figuras de força musical indiscutível, mas que também sejam grandes em cena.
[oiça o Lado B de “SIM SIM SIM” através do Spotify:]
O festival não chegou a acontecer, por causa da pandemia, porém o movimento Bala Desejo já era uma realidade muito forte para ser abandono. Zé Ibarra, Dora Morelenbaum, Julia Mestre e Lucas Nunes foram então desafiados a criar um álbum, sob o selo da Coala Records. Entre março e agosto de 2021 compuseram treze temas, fazendo residências esporádicas em Barbacena, no interior de Minas Gerais, essa terra fértil da música brasileira que nos anos 70 foi berço do Clube da Esquina. “Foi um fluxo intenso”, diz Dora, que na sua conta de Instagram já tinha confidenciado que este tinha sido o processo mais intenso que vivera em toda a sua vida, dedicando-lhe “cada instante, delírio e vontade, do último fio de cabelo à ponta do dedo do pé”. “Mergulhámos totalmente nisto, estávamos imersos sem conseguir ver muitas vezes o que estava do lado de fora. Foi essencial e maravilhoso ter acontecido como aconteceu e demandou muito de cada um de nós”.
Uma sopa composta por mil ingredientes
Simbolicamente, o Lado A abre com Teresa Cristina a dialogar com o sambista carioca Mosquito na faixa “Embala Pra Viagem”, um registo de fim de noite de boteco que representa bem o lado corriqueiro, mundano e de rua que os Bala Desejo quiseram trazer para o disco. Aí começa o “Recarnaval”, essa viagem “da alegria, da dor sublimada e transformada, da afirmação da arte e da cultura”, como Dora explica, a que os quatro se propuseram explorar.
Há frevo, Rita Lee e pop americano em “Baile de Máscaras (Recarnaval)”, o tiro de partida de SIM SIM SIM; reggae em “Clama Floresta”, uma ode à natureza e uma crítica “ao poder aniquilador do humano e a sua fome maior que a boca”, que termina com o poema “Não deixar em vão o choro das Ibirapitangas” de Maria Gadú e Maria Santos. Tem um blues paulista chamado “Nesse Sofá”, sublimado pela colaboração na guitarra de Tim Bernardes e por uma lírica que, de forma simples, delicada e sensível, nos faz lembrar aqueles penosos dias em que estivemos fechados em casa a ver o tempo e o café a passar, ansiando amanhecer com um amigo ao nosso lado, nesse sofá.
Por aqui já se vê que os quatro músicos não se fecharam neles mesmos e abriram portas a várias outras vozes, de diferentes áreas, para fazerem parte deste processo. “Todo o mundo que participou teve, de alguma forma, grande influência para nós. Antes, durante ou depois do processo”, diz Dora, lembrando, por exemplo, a participação dos poetas, escritores e atores Bruno Jablonski e Maria Santos na escrita do roteiro do álbum. A faixa “Lambe Lambe” é, de certo modo, uma homenagem a todos os que fizeram parte desta “sopa composta por mil ingredientes”. Estão lá Gilberto Gil, Caetano Veloso, mas também os nomes do presente: Cai na nossa cama uma semana sem parar / Tim, tom, beat, brack, ana, rubel, chablaubla, cantam, referindo-se a Tim Bernardes, Tom Veloso, Tom Karabachian, Duda Beat, Duda Brack, Rubel, Sophia Chablau e Ana Frango Elétrico, a coprodutora do álbum. “Ela coproduziu, esteve presente e continua a estar, ao desenvolver o show connosco”.
As influências latinas são igualmente claras. “Existe uma aproximação muito familiar com a América Latina. Tanto a Julia quanto o Zé têm descendência, ela espanhola, ele chilena”, diz Dora, para Zé lembrar que também os músicos tropicalistas fizeram aproximações a outros ritmos vizinhos. “Eles chamavam pessoas para cantar no Brasil de forma a ressignificar essa ideia esquisita de que estamos fora da América Latina, de que não fazemos parte. Fazemos, pois, tanto que os ritmos combinam.”
Essas referências estão presentes em faixas como “Passarinha”, um bonito canto feminino que brinca com o português e espanhol, num exercício de total liberdade linguista e musical, onde cabe cumbia, berimbau e Buena Vista Social Club; ou em “Dourado Dourado”, que logo nos acordes saltitantes de entrada da guitarra lembra Novos Baianos e esse modo de comungar e fazer música meio a sério, meio a brincar, que é o melhor jeito de se criar, de se viver; e também em “Nana del Caballo Grande”, poema de Federico García Lorca musicado por Sergio Aschero, a única faixa que não foi composta pelos Bala Desejo, mas que encaixa perfeitamente no disco, ao fazer a transição do Lado A, mais extrovertido, para o Lado B mais introvertido, momento que arranca com “Chupeta”, uma metáfora de união: “A Kombi do Bala parou pra descansar e enguiçou e só com muita gente empurrando ela pode seguir viagem”.
É lá que encontramos “Sim Sim Sim”, um exercício poético livre de trinta segundos e que imagina um céu que, ao invés de derramar chuva, atira sobre nós inúmeros “sins”, esse som que reafirma a nossa individualidade e nos convoca a entrar nessa dança coletiva que é parte maior da nossa existência: “O sim como motor político, o sim do corpo, o sim da vontade e do tesão como ponto de partida para qualquer manifestação no mundo”, lê-se em comunicado.
[“Baile de Máscaras (Recarnaval)”: os Bala Desejo ao vivo:]
Segue-se “Muito Só”, a música mais antiga do disco, cuja melodia e harmonia já tinham sido compostas em 2016, numa viagem de fim de ano da turma de Zé, Lucas, Dora e Julia. Lembra Tim Maia no seu lado mais lânguido, mas também Elis Regina e Jorge Ben Jor – que já tinha sido evocado em “Lua Comanche”, do Lado A – e enrola-nos numa certa sensualidade blasée que se vai entranhando com a repetição dos versos me sinto muito só. “Cronofagia (O Peixe) encerra o Lado B e o álbum de uma forma muito Caymminiana, no jeito de contar histórias e de mostrar a ciclicidade da vida com a simplicidade poética da imagem do peixe, que nada, nada, nada e além do nada o próprio mar.
O tempo tem a fome do tempo e o rio tem o tempo dos rios, descendo imenso e morrendo por chegar, cantam. Assim é, também, o ciclo de Bala Desejo, que só ficará completo quando desaguar nos concertos ao vivo: “O show vai conseguir incorporar tudo o que o Bala Desejo tem para oferecer ao mundo, a vocês e a nós mesmos. É o começo e o fim da linha”. Portugal está no mapa, “já temos convites, não é brincadeira, é realidade”, garante Zé que, curiosamente, tem família no Porto. “Pousando no Porto já vamos à Casa Guedes”, brinca. Ficámos à espera deles, com o desejo de os devorar, lamber, comer nesse Recarnaval.