É possível que, até ao momento, “Genera+ion” não tenha surgido no radar de muitos dos que vão acompanhado as (muitas, serão de mais?) estreias do mundo das séries, semana após semana. Esta é uma produção “com” adolescentes, mas não é “sobre” adolescentes — ou pelo menos não o é de acordo com aquilo que tal rótulo costuma significar. As sinopses e outras descrições rápidas tendem a apresentá-la como uma série que fala sobre a Geração Z e respetivos problemas; e que é das poucas – senão a única – a fazê-lo bem. Tudo isso está certo, mas não está completo. Porque omite o que “Genera+ion” tem para lá disso. Se por um lado é raro ver adolescentes retratados com uma perspetiva tão real, fluída e natural, é ainda mais raro vê-los no ecrã de uam forma que nos faz deixar de pensar neles como adolescentes, como se fossem uma sub-espécie de seres humanos, mas sim como gente de corpo inteiro. Essa é a grande virtude da série que está disponível na HBO Portugal desde março deste ano.
Criada por uma adolescente, Zelda Barnz, e pelo seu pai, Daniel Barnz (realizador de filmes como “Cake – Um Sopro de Vida” ou “Nunca Desistas”), “Genera+ion” é — como diria um dos melhores clichés para usar neste momento — uma força da natureza. As suas personagens não parecem reais, são vivas. O desenrolar das suas vidas é inesperado e, simultaneamente, expectável, porque é-nos revelado em linha com o nosso comportamento, em linha com a vida real. Depois de ver “Genera+ion”, quase tudo o resto que anda por aí sabe a pouco. Não por uma questão de qualidade, mas pela forma como quase tudo se reduz a géneros e a fórmulas. “Genera+ion” só quer contar a história das suas personagens e convidar o espectador a fazer parte desse caminho. Parece simples, mas é algo muito difícil de conseguir.
A série é emocionalmente visceral. Dança com o próprio humor e cada episódio tem uma estrutura ou perspectiva autónoma, deixando o espectador em constante alerta para o que se está a passar. Os dezasseis episódios – que se estrearam em duas partes ao longo dos últimos meses – estão todos disponíveis na HBO Portugal. Estivemos à conversa com os criadores, Zelda e Daniel Barnz, filha e pai, criadora e co-criador desta viagem emocional.
[o trailer de “Genera+ion”:]
https://www.youtube.com/watch?v=4cIunt5KkDU
Daniel, o que o levou a saltar do cinema para a televisão? E deixo já outra pergunta: porquê fazê-lo com uma série sobre adolescentes… ainda que não seja bem assim?
Daniel Barnz (DB) — Obrigado por deixares esse aviso. Tem piada como as pessoas, inconscientemente, descrevem “Genera+ion” como um programa sobre adolescentes, ou sobre a escola secundária. E tem graça, claro, porque as mesmas pessoas acabam quase todas por chegar à conclusão de que “é sobre muito mais do que isso”. Mas enfim. A minha carreira é o cinema independente. Há uma sobreposição interessante, porque, de certa forma, olho para “Genera+ion” como dezasseis pequenos filmes independentes. Cada um tem a sua estrutura, o seu tom. Sempre gostei de televisão e algo que há muito desejava era passar um tempo mais prolongado com personagens. Porque no cinema temos aqueles noventa minutos, ou duas horas, para viver com elas, criamo-las, deixamo-las sair cá para fora e está acabado. O que é maravilhoso com a televisão é que é esta coisa viva, que respira, continua, podemos pegar numa personagem e explorá-la ao longo de dezasseis episódios e mostrar diferentes cores, nuances. Para uma personagem como Chester [Justice Smith] foi algo crítico, porque poderia facilmente cair em clichés ou maneirismos. O que queríamos era criar uma personagem corajosa, forte, queer, que é esperta, extrovertida, mas que no seu interior tem uma grande solidão, que é muito inteligente, consegue citar Kafka e RuPaul ao mesmo tempo. Para explorar uma personagem assim, precisamos de episódios. Esse é o apelo deste tipo de meio. E, como pai, o que mais quero é passar tempo de qualidade com os meus filhos. E quando a Zelda veio com esta ideia, de explorar as personagens num cenário de escola secundária e começou a falar disso como um programa de televisão, adorei a oportunidade. Não só iria satisfazer uma necessidade criatividade minha, mas também dar-me a oportunidade de passar tempo com a minha filha antes dela sair de casa e partir para o mundo.
Tenho de perguntar à Zelda: como é que foi trabalhar com o seu pai?
Zelda Barnz (ZB) — Basicamente, quando tinha 15 anos, assumi-me, durante umas férias de verão. E comecei a aperceber-me, à medida que tinha conversas com as pessoas, que não estava a ver representação positiva do universo queer no entretenimento. E queria ver algo que celebrasse os miúdos queer e que não os tolerasse apenas. Ao mesmo tempo, comecei a ter estas conversas com a minha família, sobre como a queerness agora é diferente daquela que existia há 20 anos. Começámos a falar destas diferenças, das mudanças geracionais. Tive esta ideia de contar a história de como a queerness é agora. Ao falar com o meu pai, ele disse-me que queria fazer isto comigo. Trabalhámos ideias juntos e desenvolvemos tudo a partir daí. Tem sido uma parceria fantástica, estou muito feliz que o tenhamos feito juntos.
Não vejo “Genera+ion” como uma série adolescente ou uma série queer. Vejo-o como uma série sobre a individualidade das pessoas, feito de uma forma como não se via há muito tempo. É errado não atribuir-lhe rótulos ou são indispensáveis?
ZB — Não penso que seja errado pensar assim, que é um programa sobre pessoas. Mas é inevitavelmente um programa queer, porque grande parte das personagens são queer e uma grande parte da inspiração para o programa é uma celebração da queerness. Mas é verdadeiramente uma série sobre pessoas, sobre como as pessoas se comportam e estão juntas. Adoro essa forma de pensar.
DB — Gosto dessa descrição, porque uma inspiração para nós foi “Friday Night Lights” [série de ficção em volta de uma equipa de futebol americano universitário].
Faz todo o sentido, sim.
DB — E atenção, não sou do Texas, não gosto de futebol americano, de todo. Mas adoro a série. A nossa esperança com “Genera+ion” era de que as pessoas que não fossem queer, ou que não fossem adolescentes, conseguissem relacionar-se com as emoções, conflitos, esperanças e sonhos destes adolescentes e criar uma relação com eles enquanto pessoas, separada de tudo o resto. Há algo de fundamental que queríamos trabalhar, esse sentimento universal de esperança, de possibilidade, de confusão, de tempestade e glória. Fomos ambiciosos porque, ao mesmo tempo, queríamos que os miúdos, que têm a mesma idade dos miúdos em “Genera+ion” vissem a série e pensassem: “Sim, é assim que me sinto agora”. E que as pessoas da minha idade, ou mais velhas, olhassem para aquelas personagens e tivessem um sentimento visceral: “Sim, era isto, era assim que eu me sentia.”
O elenco participa de alguma forma na escrita ou no desenvolvimento das personagens?
DB — O casting é sempre um risco, mas fomos abençoados. É possível identificar talento, mas nem sempre é possível saber que tipo de ser humano vamos ter à nossa frente. São atores, mas também são muito inteligentes e têm muita alma. As personagens comunicam com quem vê. Parte disso vem da escrita e da realização, mas vem dos atores. E eles estão dispostos a participar. Uma das coisas que gosto de fazer nos episódios que estou a realizar é que gosto de brincar. Fazemos uma cena e quero experimentá-la de formas diferentes, “vamos tentar esta como uma farsa ou uma tragédia”. Ou “esta é a coisa mais divertida que já aconteceu no mundo”, ou “estás furioso mas não consegues deixar a outra pessoa ver”. O elenco esteve sempre disposto a tentar e a participar nisto. Como alguns deles estão próximos da idade das personagens, diziam muitas vezes algo como “não diria isto desta forma” ou ao escrever mensagens “tenho de escrever em minúsculas”. O Justice era muito particular sobre símbolos astrológicos, por isso, sempre que ele refere o signo de alguém, tinha muito a dizer sobre isso. É formidável o quão generosos eles foram.
Pouco depois da estreia, li uma entrevista que a Zelda ajudou muito na escrita das mensagens de telemóvel que vemos na série. As mensagens são importantes na forma como os episódios se desenrolam. E são muito naturais. Zelda, como foi o seu papel nisso?
ZB — Basicamente, tudo o que acontece no ecrã de um telemóvel foi-me enviado, para eu fazer uma revisão final. Dava notas sobre tudo, mesmo sobre quando uma personagem está a navegar no Instagram. As mensagens foram escritas no guião e depois transpostas para o ecrã do telemóvel, enquanto filmamos. Durante a escrita, todos os argumentistas enviavam-me mensagens a perguntar sobre que palavra os jovens usariam de facto? Reescrevia as mensagens para soar ao que alguém com dezasseis anos escreveria. Tirei muita pontuação, miúdos da minha idade não escrevem com pontuação. Sei que os meus pais fazem isso e muita gente da Geração X faz isso, por isso tirei muitos pontos finais das mensagens. Supervisionava estes detalhes para garantir que tudo parecia ter sido escrito por um adolescente. Outra coisa que fiz foi garantir que as mensagens tinham sempre a hora nos ecrãs. É muito comum nos programas de televisão, quando as personagens enviam mensagens, não aparecer a hora a que uma mensagem foi enviada. Mas tomei atenção a isso.
DB — Tomo atenção aos detalhes quando estou a ver séries. Quando vejo uma mensagem numa série, quero ver logo a seguir qual foi a anterior. E consigo sempre perceber quando foi escrita de uma forma genérica. A Zelda e os restantes argumentistas tiveram muito cuidado, olhavam para todos os ecrãs, para o caso do espectador parar e ler o ecrã, a mensagem anterior iria revelar algo sobre essa personagem ou dar alguma informação. Ao invés de ser algo tipo “comi um bom pequeno-almoço hoje”. Queríamos deixar isso claro, como parte da construção da personagem.
ZB — Lembro-me perfeitamente de uma troca de mensagens entre o Nathan [Uly Schlesinger] e a Naomi [Chloe East], ela a pedir-lhe dinheiro e ele a dizer “não, pede à mãe”. São metade das conversas que tenho com o meu irmão, pedir-lhe dinheiro. Metemos ali uma pequena conversa entre irmãos. Essas coisas foram divertidas.
DB — Uma das coisas boas em trabalhar com a criatividade de alguém com a idade das personagens é que a Zelda tinha muita preocupação com a apresentação das redes sociais, para que nunca soasse moralista. Ela sente que em muitas séries esta realidade é representada através dos olhos de um adulto e que por isso há algum moralismo, sobre como os miúdos passam demasiado tempo nas redes sociais, etc. Ela sempre teve cuidado em explicar que as redes sociais são uma linguagem, por vezes podem ser usadas para dizer algo negativo, mas também pode ser usado para dizer algo positivo e carinhoso. A Zelda garantiu que seguíamos esse caminho e não um moralista.
Na segunda parte da primeira temporada a escola está menos presente. Foi algo natural ou uma decisão criativa?
DB — Sim e não. Uma das âncoras na primeira parte foi o GSA [“Gay-Straight Alliances”], o grupo e as reuniões que juntam as personagens homo e heterosexuais organicamente. Mas assim que passou a existir essa conexão, houve menos necessidade desse tipo de reuniões. Na segunda parte, a escola está presente, mas de uma forma diferente. Uma das coisas que a Zelda observou é que nas séries sobre adolescentes, os miúdos nunca parecem ir à escola, nunca fazem trabalhos de casa, nunca estão nas aulas, estão sempre a andar nos corredores. Ela queria ter a certeza de que introduziríamos um momento de sala de aula.
Zelda, que papel teve na construção da escola secundária?
ZB — Tentei contribuir o máximo possível para tornar esse universo credível. Houve muitos momentos em que me perguntei: “O que acontece noutras séries sobre adolescentes que parece deslocado e que podemos melhorar aqui?”. E não se veem adolescentes nas salas de aulas, porque não é divertido de ver. Tentámos pensar numa forma que fosse entusiasmante para o espectador para mostrar os miúdos nas salas de aulas.
DB — Outra coisa que ela fez foi estar presente na rodagem de olho atento para nos alertar para coisas que não nos ocorreriam como adultos. Ela conseguia olhar para as pessoas, durante o casting, e dizer se elas pareciam alguém que poderia andar no secundário. Não era só uma questão de idade, mas mesmo o tipo de corpo, como estava desenvolvido, a forma de andar, a confiança. Ela olhava para os figurantes e diria se pertenciam ou não àquele universo. Por exemplo, os bailes costuma ser coisas super produzidas, a música é incrível, mas a realidade não é assim, muitas vezes são deprimentes, não soam bem, a luz é muito branca, as decorações estão a cair. E ela quis que assim fosse.
O amor é muito explorado em “Genera+ion”. E há momentos que parecem muito adultos, talvez. Quando isso acontece, as personagens estão a aproximar-se da realidade ou da ficção?
ZB — Conheço muitas relações do secundário que se tornaram muito intensas, com pessoas que dizem de facto “amo-te”. Mas com a Greta, desde o início temos a ideia de que ela gosta da Riley. Está nervosa, quer falar com ela, quer conhecê-la. Mas começa de forma complicada. A viagem da Greta é de descoberta, descobrir o que quer. E acho que naquele momento é que ela está a dizer o que sente.
A divisão desta primeira temporada em duas partes foi criativa? Ou teve a ver com uma política de conteúdos da plataforma?
DB — Originalmente, a HBO pediu-nos dez episódios e foi isso que escrevemos. Quando a pandemia aconteceu, percebemos que tínhamos de adiar a produção. Falámos com a HBO e decidimos em conjunto que poderíamos usar o tempo que não estaríamos a filmar para escrever mais episódios. Por isso, subiram o pedido para dezasseis episódios. Queríamos que saíssem em duas partes para podermos construir os arcos narrativos sabendo que haveria uma separação de meses entre os dois blocos.
Começou por dizer que pensa na série como se fosse composta por dezasseis filmes. Como pensa em cada episódio? A ideia da estrutura começa no argumento ou na visão do realizador?
DB — É difícil de responder porque sou argumentista e realizador. Por vezes é difícil de saber onde um cérebro termina e o outro começa. Escrevemos o piloto com a ideia de perspetiva em mente. Queríamos explorar o quão especial era ter uma série sobre jovens adultos criada por uma jovem adulta. E queríamos ter esse sentimento de imersão, dentro da perspetiva dos miúdos, a ver o mundo como eles o veem ou não veem. Porque são brilhantes, mas também podem ser incrivelmente míopes. Por vezes, não conseguem ver além. Queríamos explorar isso. Cedo decidimos que seria a história de cada episódio a ditar a estrutura. Como realizador, quis celebrar a autenticidade adolescente de “Genera+ion”. Quando comecei a filmar, juntei o designer de produção, o diretor de fotografia, o designer do guarda-roupa, fizemos um retiro criativo e voltámos com uma linguagem visual definida.
Em alguns episódios chegamos a ficar com a sensação de que de repente estamos a ver outra série…
DB — Muito por culpa da Zelda. Ela foi a nossa bússola criativa. Ela lembrava-nos que as séries de adolescentes por vezes têm demasiada história ou romance, cheias de voltas e reviravoltas. Claro que as pessoas querem histórias, romance, e também temos. Mas parte da experiência de ser adolescente é a vida a revelar-se. E por vezes existem dias aborrecidos e desse aborrecimento, algo fabuloso, mágico, ou divertido acontece. Num momento, podem estar com os amigos, a stressar com as alterações climáticas e no minuto seguinte estão a mostrar um vídeo estúpido no Tik Tok. A Zelda falava nisso, é o que é ser adolescente, o movimento entre estas modalidades diferentes.
Zelda, como é que é isto de explicar ao seu pai o que faz sentido ou não? Não é demasiado revelador entre filha e pai?
ZB — O mais difícil de explicar são as coisas relacionadas com redes sociais. Ele não está em nenhuma, não gosta. E é uma cultura especifica, o que é divertido para a Geração Z é muito especifico e esquisito e explicar isso é complicado, sobretudo para alguém que não está em contacto com isso. A essência de “Genera+ion”… é difícil de explicar, é sobre a alegria de ser adolescente. E isso não necessita de muita explicação, porque os argumentistas percebem, conseguem lembrar-se desses sentimentos e colocar isso na escrita. Fico muito feliz pela nossa série não ter um sentimento de nostalgia, fico muito feliz por ser algo presente.
“Genera+ion” não mostra uma necessidade de ser cool. Porquê?
DB — Trabalhámos contra isso. Ser adolescente por vezes é parvo, ridículo… historicamente, séries de adolescentes tornam-se muito dramáticos, há muita novela ou raiva. Ou há programas divertidos, como “Freaks And Geeks”, que ambos adoramos. Mas “Genera+ion” quer andar pelo meio, por vezes há coisas divertidas e estão combinadas com momentos muito escuros.
Como é que imagina o programa daqui para a frente? Imagina um “Genera+ion” diferente, com outras personagens, ou acompanham estas personagens a crescerem?
DB — Queremos que a série continue, as personagens são muito ricas, existe muita história para contar. Quisemos deixar o final em aberto, para perceber o que acontece entre o Chester e o Nathan, o que vai acontecer com o Bo [Marwan Salama], com a Greta e Riley. Quero explorar o que acontece com duas pessoas que estão apaixonadas e uma delas se identifica como assexual. Adoraríamos juntar ao elenco alguma representação transgénero e não-binária, adoramos a personagem da Ana [Nava Mau], mas há outras personagens, como o irmão do Cooper [Diego Josef], que é trans… envolvê-lo mais na história. A geração Z é aberta sobre a sexualidade, mas também sobre as doenças mentais. Ouvimos conversas em que as pessoas dizem “estou diagnosticado com isto” ou “tenho esta medicação ou aquela”. Coisas de que ninguém falava quando eu andava na escola secundária. E acho incrível essa liberdade, falar abertamente sobre estes problemas que eram tabu. Estamos com muita vontade para contar mais histórias.