Índice
Índice
São deputados municipais em Lisboa, mas deram como morada Viana do Castelo e Arronches (Alentejo), o que obrigou a autarquia a pagar-lhes respetivamente 274 e 150 euros por cada reunião só em subsídio de transporte durante vários meses. Outros, que viviam a poucos quilómetros, também preencheram os papéis e chegaram a receber algumas dezenas de euros por isso. Resultado: os 4.500 euros pagos em média de novembro de 2021 a fevereiro de 2022 passaram a 7.400 euros só no último mês de maio. A subida nos gastos fez o presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, Rosário Farmhouse, suspender este apoio. Após a polémica, alguns deputados abdicaram de receber, mas este mês o subsídio vai ser reposto, pelo menos para quatro deputados, incluindo o que vive no Alentejo.
Para perceber o buraco nas contas, basta aplicar uma matemática simples: com faturas de mais de sete mil euros mensais, seria impossível que os 46 mil euros previstos no Orçamento para 2022 fossem suficientes. Aliás, multiplicando os sete mil euros pelos 12 meses seria necessário praticamente o dobro do previsto no orçamento: 84 mil euros só para cobrir as despesas dos deputados em deslocações até à Assembleia Municipal.
Entre os deputados municipais há quem tenha recebido durante alguns meses o pagamento por deslocações a pouco mais de um quilómetro da Assembleia Municipal de Lisboa, mas também quem tenha declarado viver a mais de 200 ou 350 quilómetros do Fórum Lisboa, edifício onde decorrem as reuniões daquele órgão municipal.
De cada vez que um dos deputados participa em reuniões da Assembleia Municipal ou das comissões nas quais está inserido recebe uma compensação por isso. Além do pagamento das senhas de presença (cerca de 90 euros), a lei prevê também o pagamento despesas de deslocação. Aplica-se o valor de 0,36 euros por quilómetro, sem estabelecer tetos máximos ou mínimos. Mas porque é que a fatura mensal só escalou em maio se as eleições foram em setembro e a tomada de posse dos órgãos autárquicos aconteceu em outubro?
Ao que o Observador apurou, só depois de, em fevereiro, um dos deputados municipais ter exigido o pagamento do valor correspondente aos quilómetros que percorre para estar nas reuniões é que foi alterado o procedimento que era seguido nos últimos anos. Os serviços consideravam e pagavam, até então a compensação correspondente, mas apenas aos deputados que morassem a mais de 20 quilómetros.
De fora ficavam, imediatamente, parte dos deputados municipais já que, de acordo com a informação disponibilizada ao Observador pela Assembleia Municipal de Lisboa, cerca de 40% dos deputados optou por, logo em outubro, não declarar qualquer distância à Assembleia Municipal (estando automaticamente excluída a hipótese de serem compensados por esses quilómetros). Outros 30% dos deputados declarou viver a menos de 20 quilómetros e apenas 30% dos deputados municipais disse em outubro viver a uma distância superior a 20 quilómetros do Fórum Lisboa.
Nesses 30% há quem tenha declarado viver bem longe. Desde logo o deputado do PPM Gonçalo da Câmara Pereira, que declarou viver no concelho de Arronches e percorrer 420 quilómetros (para vir e voltar) para cada reunião. A outra exceção, com números ainda mais expressivos, é a do deputado do Aliança Jorge Nuno de Sá, que declarou viver em Viana do Castelo e percorrer 762 quilómetros de cada vez que marca presença nos atos oficiais da Assembleia Municipal para a qual foi eleito em setembro de 2021.
De acordo com a informação cedida pela AML ao Observador — e posteriormente confirmada pelo próprio —, o deputado do Aliança Jorge Nuno de Sá decidiu em maio — após a presidente suspender os subsídios — abdicar do pagamento das deslocações, que lhe garantiam o pagamento de despesas de cerca de 274 euros por cada reunião. Já o deputado do PPM teve uma posição diferente. Gonçalo da Câmara Pereira vai, já este mês, receber os valores em atraso no tempo que o subsídio esteve suspenso e continuar a ser compensado pelas deslocações entre Arronches e o Fórum Lisboa. Os 420 quilómetros traduzem-se em cerca de 150 euros por cada reunião que são pagos em conjunto, mensalmente, somando-se os montantes devidos pelas presenças.
Ao Observador, o deputado Gonçalo da Câmara Pereira recusou-se a fazer comentários sobre o que considera serem “mexericos”, dizendo apenas que a “Assembleia Municipal tem que cumprir a Lei”.
Já o deputado Jorge Nuno de Sá esclarece que “entendeu prescindir” do pagamento das despesas de deslocação ainda que “continue a não ter residência no concelho de Lisboa”. “Limitei-me a preencher todos os dados com a verdade. Prescindi de tudo o que por lei podia ter direito, exceto as senhas de presença”, explica o deputado municipal, acrescentando ainda que “não exigirá nada em atraso” e que “se algo foi recebido indevidamente” fará a “devolução, pese embora não tenha autorizado as despesas”. “Espero que os serviços tenham cumprido as regras e que a senhora presidente não tenha cometido nenhuma ilegalidade”, acrescenta ainda o deputado municipal do Aliança.
À data da candidatura às autárquicas de 2021, Jorge Nuno de Sá diz que “tinha a vida orientada em Viana do Castelo” e que só agora “voltou a estar na zona de Lisboa”, pelo que tomou a decisão de “prescindir”. “Entendo que não necessito de nada mais além das senhas de presença para assegurar o cumprimento das minhas funções, portanto prescindo. Sabendo que há falta de liquidez na Assembleia Municipal de Lisboa não serei mais uma fonte de problemas”, afirmou o deputado municipal.
Quer o Aliança quer o PPM integraram, nas autárquicas de 2021, a coligação Novos Tempos, encabeçada por Carlos Moedas que acabou por conseguir conquistar a autarquia lisboeta.
Quem vive a um quilómetro da Assembleia também recebeu compensação pelas viagens
A aplicação estrita do parecer pedido em fevereiro deu origem a que passassem a ser 43 os deputados a receber entre março e maio — quando Farmhouse puxou o travão — também uma compensação pelas viagens realizadas. Destes 43 deputados, há cinco que estão a menos de cinco quilómetros do Fórum Lisboa o que representou um custo de 1,80 euros por cada um, multiplicado pelo valor pago pelo número de presenças nos vários meses.
Mais económica para os cofres da autarquia foi, por exemplo, a participação da deputada do CDS Margarida Bentes Penedo, que percorre apenas um quilómetro entre casa e o Fórum Lisboa: foram 36 cêntimos por cada participação da deputada nas reuniões que lhe foram pagas durante dois meses. Também o democrata-cristão Francisco Camacho indicou morar a cerca de cinco quilómetros da AML, pelo que recebeu cerca de 1,73 euros por cada deslocação até à avenida de Roma, em Lisboa. Já o deputado socialista Pedro Domingues recebeu 1,08 euros, pelos três quilómetros que tem de percorrer para cada reunião.
Há vários outros exemplos em que isso aconteceu ainda abaixo dos 20 quilómetros de bitola: o presidente da junta de Campo de Ourique e filho de António Costa, Pedro Costa (13 quilómetros entre ida e volta); a deputada municipal do PS e filha do chefe de gabinete de António Costa, Sofia Escária (12 quilómetros entre ida e volta), ou a deputada municipal do BE e filha de Fernando Rosas, Leonor Rosas (apenas 2,6 quilómetros entre ida e volta).
Ao Observador, fonte da Assembleia Municipal admite que “os deputados podem nem ter reparado que estavam a receber” os pagamentos dos quilómetros. “Os valores são pagos mensalmente, incluindo as presenças nas reuniões, é possível que com valores tão baixos nem tenham reparado”, explica.
A presidência da AML explicou também, no entanto, ao Observador, que para que este valor pudesse ser contabilizado os deputados municipais “entregaram ao Departamento de Apoio aos Órgãos e Serviços do Município de Lisboa uma ficha pessoal, preenchida e assinada por mão própria, identificando a morada do seu ‘domicílio voluntário geral’ “e a distância, em quilómetros, deste domicílio ao Fórum Lisboa, sede da Assembleia Municipal de Lisboa, sito na Av. de Roma 14, em Lisboa.”
Um dos deputados do Chega, Nuno Pardal Ribeiro, declarou morar no concelho de Cascais, em Alcabideche, a 60 quilómetros do Fórum Lisboa, pelo que não tendo até ao momento abdicado do pagamento das despesas de deslocação e estando a mais de 14 quilómetros irá continuar a partir deste mês a receber o pagamento das despesas, contando desde o momento em que foi suspenso, em maio. Serão cerca de 21 euros por cada presença, que somará aos cerca de 90 euros que qualquer deputado municipal recebe de senha de presença.
A decisão é individual, já que o deputado do mesmo partido, Bruno Mascarenhas Garcia não informou a AML do local de residência pelo que nunca recebeu qualquer valor para ajudas de deslocação e continuará sem receber até ao final do mandato, de acordo com os dados enviados ao Observador pela AML.
Segundo a última atualização dos serviços da AML, a que o Observador teve acesso, há outros deputados que ainda não entregaram a ficha respetiva onde podem abdicar — ou não — do pagamento de despesas relativas às deslocações: do MPT, José Faria; do PCP: Fábio Sousa, Fernando Correia e Pedro Frias. Nestes casos, mantém-se a indicação dada no início do mandato, mas o pagamento mantém-se suspenso, desde maio, até que voltem a entregar a ficha novamente preenchida e indiquem se pretendem continuar a receber ou não. Já os deputados do PS Luís Coelho e Manuel Lage já entregaram as respetivas declarações à AML e vão continuar a receber o pagamento devido pelos quilómetros que percorrem para participar nas reuniões.
José Faria, do MPT, indicou aos serviços municipais percorrer 28 quilómetros entre casa e o Fórum Lisboa, pelo que receberá cerca de 10 euros de ajudas de custo cada vez que participa nos trabalhos da Assembleia Municipal de Lisboa. O mesmo valor é pago ao socialista Luís Coelho e aos comunistas Fernando Correia e Pedro Frias. O outro socialista, Manuel Lage, declarou percorrer 66 quilómetros, o que dará um apoio de cerca de 24 euros.
O que diz a Lei?
Segundo o Estatuto dos Eleitos Locais, Lei 29/87 de 30 de junho, esses eleitos locais têm direito ao “subsídio de transporte”. Mais, no artigo 12.º que define o subsídio de transporte, fica claro que “os membros das câmaras municipais e das assembleias municipais têm direito ao subsídio de transporte, nos termos e segundo a tabela em vigor para a função pública, quando se desloquem por motivo de serviço e não utilizem viaturas municipais”.
E detalha ainda no número dois do mesmo artigo que “os membros da assembleia municipal têm direito a subsídio de transporte quando se desloquem do seu domicílio para assistirem às reuniões ordinárias e extraordinárias e das comissões dos respetivos órgãos.”
Presidente da AML suspendeu pagamentos, comissão reuniu e as regras foram alteradas
Em maio, confrontada com um valor de pagamento que ultrapassava os sete mil euros, a presidente da Assembleia Municipal de Lisboa “mandou suspender o pagamento de subsídio para apurar a razão para tão significativo aumento”. Isto porque, mantendo o ritmo, com faturas mensais de sete mil euros seria impossível que os 46 mil euros previstos no Orçamento para 2022 fossem suficientes. Aliás, só para fazer face às despesas dos deputados em deslocações à Assembleia Municipal para reuniões, seria necessário ter praticamente o dobro do orçamento disponível: 84 mil euros.
De acordo com a AML, o “aumento dos valores”, que em abril se tinha fixado em 4.220 euros e em março em 4.582 euros, para os cerca de 7.400 euros deveu-se ao “pagamento de subsídios de transportes a deputados que moram em lugares muito longe da Assembleia Municipal” e ao “aumento abrupto do número de deputados que passaram a receber subsídio em março e abril por via da aplicação de um parecer jurídico de fevereiro de 2022 em que se concluiu que todos os deputados têm direito a receber o subsídio de transporte, independentemente da distância do seu domicílio à assembleia”.
A decisão de Rosário Farmhouse foi a de pedir “a todos os deputados que voltassem a preencher as fichas de morada, podendo se assim entendessem, renunciar ao subsídio de transporte”. Farmhouse propôs à “Conferência de Representantes que voltasse a aplicar o acordo que vigorara no passado de só pagar subsídio de transporte aos deputados que tenham o seu domicílio voluntário habitual a mais de 14 km de distância”, o que, segundo explica a AML ao Observador, “foi aceite.”
“No âmbito deste procedimento vários deputados prescindiram do direito de receber qualquer valor de subsídio de transporte, a partir de maio de 2022”, estando ainda a decorrer, neste momento, a “entrega das fichas e eventuais renúncias dos demais deputados que ainda não entregaram.”
Ao que o Observador apurou, apenas quatro deputados vão receber já este mês o pagamento das ajudas de custo com deslocações para a Assembleia Municipal de Lisboa, mantendo-se entre eles o deputado do PPM Gonçalo da Câmara Pereira, que voltou a identificar a morada no concelho de Arronches, no distrito de Portalegre. Os restantes, caso desejem continuar a receber o pagamento das despesas de deslocação terão que entregar novamente a ficha preenchida, com essa indicação.
Assembleia Municipal tem 46 mil euros orçamentados para 2022, 20 mil são para estacionamento
Segundo a informação enviada ao Observador pela Assembleia Municipal, dos 46.419 euros disponíveis para o ano de 2022 para despesas com transportes, 27.053 destina-se ao pagamento de “subsídio de transportes” e o restante é para parques de estacionamento.
Estão cabimentados no orçamento da Assembleia Municipal de Lisboa 19.337 euros para estacionamento, estando já a totalidade compromissada. No dia 27 de setembro, apenas estavam pagos cerca de dois mil euros desse total de quase 20 mil.
Já no que diz respeito ao subsídio de transportes, segundo os dados da AML, estavam pagos já 12.407 euros de um total de 14.153 compromissados e cerca de 27 mil cabimentados, ou seja, de alguma forma autorizados.
Artigo editado no dia 19 de outubro para acrescentar a informação de que os deputados do PS Manuel Lage e Luís Coelho já procederam ao envio da respetiva declaração, continuando a receber o pagamento de despesas de deslocação a partir deste mês