A sardinha é o peixe da costa portuguesa mais valorizado do mercado: o rendimento gerado em lota pela venda da sardinha é quase o triplo da produzida pela venda da cavala, por exemplo, ou o dobro do que o dinheiro gerado pela venda do carapau aos compradores. Mas a mina de ouro que poderia ser a pesca da sardinha está longe de estar ao alcance dos pescadores: desde 2010 que a quota de pesca permitida para o novo caviar português tem baixado ano após ano. A quota deste ano — 14 mil toneladas — é cerca de quatro vezes mais baixa do que as toneladas permitidas há sete anos. E quebrá-la não compensa, garante Joaquim Zarro, mestre nazareno que nos recebeu no barco “Companheiro de Deus”: sempre que se cruza com um cardume de sardinha evita lançar as redes ao mar. As multas são tão grandes que arriscar é perder meses de trabalho. Joaquim Zarro simplesmente deixa a sardinha passar por debaixo do barco quando a quota fecha: “É como virar costas a ouro”, desabafa o pescador de 52 anos enquanto tenta encontrar carapau.
Desde 25 de outubro que os pescadores estão proibidos de apanhar sardinha, um peixe que conseguem vender a 88 euros por 22 kg (o peso de um cabaz) em dias bons. “Uma injustiça”, considera Joaquim Zarro: a sardinha só chega à Nazaré nesta altura do ano, quando as quotas já chegaram ao limite e é proibido apanhá-la. A alternativa do mestre do “Companheiro de Deus” é pescar carapau, um peixe que vende a apenas cinco euros por 22 kg — o preço por quilo a que vai ser vendido este mesmo peixe no dia seguinte nos supermercados Modelo. Uma coisa que “dói imenso”, considera o mestre: cada rede de Joaquim Zarro pode chegar a custar 30 mil euros. Precisaria de pescar 72 mil toneladas de carapau só para cobrir esse valor.
A partir de quarta-feira, os pescadores estão proibidos pelo Governo de capturar sardinha com artes de cerco porque a espécie vai entrar em período de reprodução. De acordo com o Regulamento do Regime de Apoio à Cessação Temporária das Atividades de Pesca com Recurso a Artes de Cerco, publicado em Diário da República, “a paragem das embarcações decorre pelo período de 30 dias seguidos, a cumprir entre a data de entrada em vigor do presente diploma [quarta-feira, dia seguinte à publicação] e 30 de abril de 2018″. O Observador esteve na Nazaré a bordo do “Companheiro de Deus” para saber como é a vida de quem depende do mar português — e das quotas do peixe impostas pelo Governo. Encontrámos sardinha, mas tivémos de a ignorar. E pescámos carapau com a alegria de quem tinha encontrado uma mina de ouro — que, nas contas do mestre Joaquim Zarro, está longe de o ser.
Governo proíbe temporariamente pesca de sardinha com artes de cerco e concede apoios
Segunda-feira, 09 horas e 32 minutos — O Primeiro Encontro
A julgar pelo som das gaivotas, que se ouvem a uma distância considerável do oceano, o dia já vai longo no porto de abrigo. O mestre Joaquim Zarro está por lá há meia hora a preparar o barco para regressar ao mar ao fim de algum tempo parado para ser limpo. Para o encontrar basta procurar uma máquina verde à direita, numa rampa que abre caminho para o mar. A máquina é verdadeiramente grande, mas vale-nos a capacidade vocal do mestre, que grita por nós do outro lado do cais, para o encontrar. O grito é tão imponente que até as gaivotas se calaram.
O barco de Joaquim Zarro chama-se “Companheiro de Deus” por motivos que só víriamos a compreender mais tarde — embora muitos dos barcos atracados junto aos armazéns dos pescadores sejam batizados com referências religiosas. Em redor do casco há uma grande faixa vermelha ornamentada com o símbolo do Benfica, um grande 36 estampado na ré e “tetra” escrito em letras capitais. É um universo benfiquista apenas interrompido pelo boné sportinguista de um dos pescadores. Joaquim Zarro sai do leme e estende-nos a mão. Tem os dedos pesados, a palma da mão áspera pelo roçar das cordas e a pele curtida pelo sol e pelo sal em que mexe todos os dias desde há 12 anos. É com ela que nos abre caminho para o barco, para onde entramos num salto entre o cais e a meia-ré. Os pescadores cumprimentam-nos, perguntam-nos como vamos e vão correndo de um lado para o outro para arrumar caixas, argolas e anzóis. Nenhum deles sabe ainda quem somos. Mas dizem-nos para estarmos à vontade: “É como se estivessem em casa”.
Ainda há muito para fazer até às duas da tarde, hora marcada no relógio de Joaquim Zarro para o regresso ao mar. O frenesim a bordo ganha ainda mais velocidade quando chega o momento de testar o motor: Joshua David Roberts, filho de Joaquim, desce até ao porão do “Companheiro de Deus” e faz rugir o aparelho, que anuncia estar pronto para arrastar o barco de regresso à Praia do Norte. Agora é preciso encher as tubagens com água, que tiveram de ser esvaziadas quando o barco ficou a seco. É um momento tenso e de ansiedade: a saúde da embarcação depende toda deste teste. Joshua e o pai trocam impressões sobre a resposta da maquinaria à água doce, mas não se compreende bem o que dizem: o sotaque nazareno é intrincado e ainda não nos habituámos a ele.
Segunda-feira, 11 horas e 00 minutos — O arranjo das redes
Para que duas pessoas sem qualquer experiência em pesca possam entrar a bordo de uma embarcação é preciso recolher assinaturas em três locais. Primeiro fomos ao secretariado do Porto da Nazaré, onde nos foi dado um documento chamado “Relação dos Indivíduos Não Marítimos Embarcados” com uma série de caixas de texto onde devemos indicar algumas informações sobre o “Companheiro de Deus” e sobre nós mesmos. A seguir levamos esse mesmo documento, assinado por Joaquim Zarro, à Mútua dos Pescadores. É lá que fazemos o seguro obrigatório para que possamos embarcar — e que garante uma indemnização de cinco mil euros caso aconteça um acidente grave em mar. E por fim levamos esses dois papéis à Capitania da Nazaré, responsável por aceitar ou não a nossa requisição. A decisão cabe ao capitão-tenente Paulo Agostinho, que acede ao nosso pedido com três condições: não podemos pescar, não podemos ficar ao comando do barco, nem podemos ficar mais de um ano embarcados. Temos acordo — até porque só trouxemos sandes de panado e fruta para umas seis horas.
Quando regressamos ao porto de abrigo, o “Companheiro de Deus” já não está debaixo da máquina verde. Vamos encontrá-lo no canto contrário do cais, ancorado junto à parede e com a popa quase toda embrulhada em três redes gigantescas rodeadas por argolas amarelas flutuantes. Os quatro pescadores que acompanham Joaquim Zarro estão a fazê-las passar por uma roldana de ferro que ajuda os trabalhadores a carregar as redes de regresso ao barco, prontas para serem usadas naquela tarde. Joaquim Zarro não consegue imaginar a área de cada uma daquelas redes e arregala muito os olhos quando lhe perguntamos que quantidade de peixe consegue apanhar deitando uma delas ao mar: repete três vezes que é “incalculável”, que uma rede daquelas pode chegar a custar 30 mil euros e que num dia produtivo podem encher completamente o barco de peixe. Depois olha-nos para os pés: “Vocês amanhã não venham com essas sapatilhas. Isto vai ficar tudo encharcado. Arranjem umas galochas e venham agasalhados”.
O relógio bate as duas. Joaquim Zarro está confiante: disse a um comprador habitual que o barco esteve demasiado tempo fora do mar e que, apanhe o peixe que apanhar, há de trazer o barco cheio dele para o vender. Acredita que regressará à lota com “uns 200 ou 300 cabazes”, o que corresponde a até 6,6 toneladas de peixe. Matemáticas à parte, que “nesta profissão mais vale não fazer planos”, mestre Joaquim entra na cabine do leme enquanto os colegas vestem umas calças impermeáveis e camisolas grossas que os protegem da maresia, agora mais fresca. O mar está mais picado do que estava ao início da manhã e o vento promete tornar-se agreste nas próximas horas. Desta vez não vamos embarcar: Joaquim tem a intuição que terça-feira será mais agradável para um frutífero dia de pesca. Aqui do cimo do sítio da Nazaré, o pequeno “Companheiro de Deus” vai deixando para trás o porto de abrigo, abre caminho entre as correntes do mar e passa para o outro lado do farol. Não se afasta muito da costa. Só amanhã poderemos saber se o dia correu bem ou não.
Terça-feira, 14 horas e 45 minutos — O Embarque
O dia não correu de facto nada bem a Joaquim Zarro e a culpa é das famosas (e polémicas) quotas impostas para a pesca de determinadas espécies. De acordo com o regulamento da União Europeia, publicado a 20 de janeiro deste ano, que fixa a quantidade de unidades populacionais de peixes que podem ser apanhados, os pescadores portugueses não podem pescar mais de 14 mil toneladas de sardinha durante um período de 144 dias, nem podem apanhar mais de 6522 toneladas de biqueirão durante o mesmo período de tempo. “Apanhámos muita sardinha e muito biqueirão, mas as quotas já fecharam. Não podemos apanhar sardinha desde 25 de outubro nem podemos pescar biqueirão desde dia 7 de novembro”, conta-nos Joaquim. Tudo o que apanharam teve de ser despejado outra vez no mar. O “Companheiro de Deus” regressou à lota sem peixe para vender ou então pagaria “uma multa muito pesada, que não compensa”. Foi um dia de trabalho perdido.
De acordo com o mestre Joaquim, “com esta coisa da quota da sardinha só se trabalha três meses no mar”: “A antiga ministra, Assunção Cristas, quando começou a falar nas sardinhas dizia que nós tínhamos outros recursos, que eram a cavala e o carapau. Ela tem razão: nós temos abundância de cavala e temos abundância de carapau, mas o que é certo é que faltam consumidores. As pessoas não compram. E, se não compram, nós não podemos vender”. Joaquim Zarro sabe que, quando regressar à lota, será uma sorte se conseguir vender um cabaz de carapau, correspondente a 22 kg de peixe, por cinco euros. Por esses mesmos cinco euros, compra-se um único quilo do mesmo carapau na manhã seguinte nos hipermercados Modelo: “É uma coisa fora do normal, acho que alguém tem de meter as mãos nisto. Acho ridículo. Nós estamos a pedir quase de joelhos para que nos comprem o peixe a cinco euros o cabaz. Ficamos já contentes se o vendermos. Só que somos nós que passamos os tormentos, nós é que desgastamos o material, mas eles é que ganham o dinheiro. Isso dói muito. Dói muito”.
É isto que o mestre vai confidenciando enquanto o som metálico e oco do sonar invade a cabine do leme, atulhada de tecnologia que não havia quando o pai e os avós de Joaquim se dedicavam à pesca: “Tento investir na tecnologia para não ficar muito atrasado em relação aos outros. Na pesca tem de se fazer esse esforço, senão os nossos concorrentes passam-nos a perna”. Num dos monitores há um grande retângulo azul escuro que vai sendo rasgado por uma barra vermelha, cor de laranja e amarela. A barra indica onde está o fundo do mar: quando aparece mais próxima à superfície, os estalidos enviados pelo sonar tornam-se menos intervalados; mas quando aparece mais profunda, os sons tornam-se mais espaçados. Entre a barra que simboliza o fundo do mar e a linha que indica a superfície da água, de vez em quando aparecem umas manchas vermelhas cintilantes. É sardinha. Joaquim Zarro passa por cima dela: “É como virar costas a ouro”. É que, com as quotas, a sardinha tornou-se o novo caviar dos mares.
Terça-feira, 15 horas e 30 minutos — Canhão da Nazaré à vista
A cabine do leme onde Joaquim Zarro comanda o “Companheiro de Deus” tem um banco de pele muito estreito, é pequena e revestida de madeira com cartões de orações a Nossa Senhora da Nazaré, bússolas, relógios antigos e estátuas de Jesus Cristo adornadas com terços. Os olhos do mestre só largam a proa do barco, com vista para o mar aberto, para contemplar o sítio da Nazaré, coroado pelo farol. Dali para a frente o mar ganha outra personalidade: as ondas, até agora mansas, investem com força contra as rochas da costa e testemunham a pujança do Canhão da Nazaré, o desfiladeiro com até cinco quilómetros de profundidade para onde nos dirigimos. Joaquim Zarro pede um minuto de silêncio e benze-se: “Isto é uma coisa que faço sempre. Já cheguei a estar a uma hora, hora e meia daqui e não me lembrar se me tinha benzido. Viro-me em direção à igreja e faço uma oração. Nós temos de acreditar em algo e eu acredito muito no além, que existe alguma coisa. Porque isto para mim é tudo um objetivo”. O mestre do barco explica-nos que vê a vida como uma cadeia de missões que temos de ir cumprindo: “Tentamos dar o melhor aos nossos filhos, tentamos arranjar um bom marido ou uma boa mulher e tentamos ser felizes. Pelo menos, tentamos ser felizes”, conclui.
Joaquim conhece o mar como à palma da mão. Desde muito novo que anda ao mar, porque o pai era pescador e já tinha herdado a profissão do avô. É tradição por aqui seguir o negócio de família e Joshua prepara-se para fazer o mesmo: “O miúdo — é sempre miúdo, mas já tem 18 anos — adora o que faz, tem gosto em continuar, por isso é deixá-lo continuar”. Joaquim só largou o mar quando foi para a tropa. Depois casou, com apenas 15 anos, e emigrou para Inglaterra onde andou embarcado nos navios cruzeiro: “Andei a lavar o chão, casas de banho e a fazer os serviços básicos. Cheguei até onde quis: fui chefe de mesa, que era onde estava o dinheiro, e depois conheci uma inglesa”. Era Andreia. Foi ela quem ensinou a Joaquim Zarro que a vida é feita de “targets, como é que se diz? Missões! Eu sou uma pessoa que gosta muito de missões. E achei que a Andreia era uma missão diferente para mim. Por isso fui para terra ter com ela”.
Ao fim de cinco anos e meio embarcado, Joaquim Zarro foi atrás do amor em terra. Disse a Andreia que iria ter com ela durante quinze dias, mas ao fim de dois anunciou-lhe que se ia embora: “Disse que ficava duas semanas, mas isso foi antes de os ouvir falar! Eu não percebia nada do que eles diziam”, conta. Andreia falou com a família e pediu-lhe que falassem um inglês mais corrente, para que Joaquim entendesse as conversas lá de casa. E os quinze dias de férias de Joaquim transformaram-se em 15 anos a viver em Inglaterra com “um inglês às três pancadas” e a gerir cinco bares com uma capacidade de 500 pessoas. Quando regressou a Portugal abriu “um dos melhores restaurantes do distrito de Leiria, pelo menos foi feito assim, que agora é uma coisa qualquer em francês”. Mas a vida ainda lhe havia de pregar mais partidas. E o mar ainda voltaria ao horizonte de Joaquim.
Terça-feira, 16 horas e 30 minutos — O “Companheiro de Deus” encontra peixe
O sol vai-se escondendo atrás do horizonte e Joaquim Zarro ainda não lançou as redes ao mar. O monitor à nossa frente, que vai registando o percurso feito pelo “Companheiro de Deus” desde que partiu do cais, mostra que andamos aos ziguezagues e cornucópias pela água na esperança de encontrar manchas vermelhas na sonda que compensem lançar as redes ao mar: “O peixe está muito pouco e dá-me a impressão que tenho de trabalhar a pouco. As pessoas não têm a mínima ideia do que é andar pelo mar, o que é o trabalho pesado que ainda por cima rende tão pouco dinheiro. Isto é tudo muito bonito quando está sol, quando não está vento e quando não há prejuízo. Mas de toda a vez que lançamos as redes ao mar temos prejuízo“, explica-nos o mestre. De repente, uma pequena mancha vermelha junto ao fundo do mar enche Joaquim Zarro de esperanças: “Esta mancha aqui deve ser carapau. Porque o carapau aprendeu a esconder-se mais junto à areia quando mar está cheio de barcos. Vou lançar as redes. Mas isto é uma lotaria. É tudo uma questão de intuição”.
Joaquim nem sequer precisa de anunciar que vai lançar as redes ao mar. Assim que sai da cabine do leme para vestir as calças impermeáveis cor de laranja, Joshua vira costas ao pôr-do-sol, Carlos larga o chocolate com sabor a morango e toda a gente começa a gritar: “Uma! Duas! Três! Quatro!”. As 32 argolas vão sendo enroladas por cordas verdes e acinzentadas, visivelmente desgastadas pela água salgada e as bóias amarelas em redor da rede vão abrindo um grande perímetro a bombordo do “Companheiro de Deus”. Os clamores dos pescadores, de mangas arregaçadas e debruçados para o mar, são repentinamente interrompidos pelo assalto das gaivotas: grasnam insistentemente em redor do barco, mergulham de cabeça para a água e abafam as asneiras que as embarcações vizinhas do “Companheiro de Deus” vão soltando pelos intercomunicadores enquanto se debatem com o peso bruto que as redes assumem quando capturam toneladas de peixe. Joaquim Zarro ainda não sabe se tem o dia ganho: lançou as redes ao mar fiando-se na voz da experiência e esperando que o azar do dia anterior não se repetisse. Tem medo, admite. Dois dias seguidos a apanhar peixe proibido é alimentar ainda mais a ansiedade de quem acorda sem saber se regressará a casa vivo, quanto mais com os bolsos recheados de dinheiro: “Não é só o facto de termos necessidade de comer. É termos de dar aos nossos filhos aquilo que nós não tivemos. Nunca tive falta de comer, mas nunca tive muita fartura”.
Enquanto o sotaque nazareno volta a tomar conta da atmosfera do “Companheiro de Deus”, confundindo-se com o barulho das gaivotas que fazem voos rasantes às cabeças dos pescadores, Joaquim Zarro lembra-se daquela vez em que achou uma nota de Santo António de 20 escudos: “Encontrei-os na estrada perto de onde vivia e comecei a correr rua abaixo: Ei, achei 20 merréis! Foram dizer à minha mãe que eu andava com uma fortuna na mão. Ainda me lembro do primeiro presente de Natal — se calhar dos poucos! — que recebi. Era um barquinho assim deste tamanho feito de plástico e com formato de iate que trazia na parte de trás um saco com meia dúzia de rebuçados. Aquilo para mim parecia uma alegria tremenda. Hoje em dia, se eu der uma PlayStation ao meu filho, ainda me pergunta onde é que estão os jogos”.
As memórias são interrompidas pelo silêncio. De um momento para o outro, os únicos ruídos que pairam no barco são os da agitação das ondas do mar a rebentar junto à costa, do estampido das bóias a regressar à popa do “Companheiro de Deus”, do piar das gaivotas esfomeadas que se atrasaram a roubar peixe ao mar e das argolas metálicas a serem soltas da meia-ré do barco. Estão todos em suspenso. Os braços musculados dos pescadores são auxiliados por um pequeno motor que puxa as redes do mar para dentro do barco. De dentro do mar começam por só vir algas, pequenos caranguejos agarrados à malha das redes, alguns peixes mortos pelos bicos certeiros dos pássaros e uma meia de vidro que, de alguma maneira, foi parar a umas quantas milhas da praia. O barco estava tão inclinado para bombordo que a água começou a invadir o chão e os pés dos homens ficaram completamente cobertos de água. Mas peixe nem vê-lo e enquanto ele não aparecesse, o sucesso daquele dia continuaria a ser uma incerteza. Joaquim Zarro regressou brevemente ao leme, confiante de que as águas frias e limpas da Nazaré não lhe voltariam a falhar. Tinha razão. Joshua apareceu sorridente à porta da cabine e disse: “Há peixe. E não é sardinha! É carapau!”. O dia estava ganho. Desta vez o mar tinha sido generoso para os homens do “Companheiro de Deus”. Podiam vender o peixe e não atirar oura vez ao mar um bem tão precioso, só porque os limites já tinham sido ultrapassados. Muitas vezes é preciso atirar tudo borda fora, com muitos dos peixes já mortos. Hoje, o peixe que tinha vindo à superfície dava aos pescadores alguns motivos para sorrir. Mas nem sempre é assim. Nem sempre foi assim para mestre Joaquim.
Terça-feira, 17 horas e 00 minutos — Dissabores do Mar
Eram três e meia da manhã de “um dia qualquer” em 2005. Andreia e Joaquim Zarro tinham bebido uns copos e decidiram dar um passeio pela beira-mar, algo que ela gostava muito de fazer, para sentir a maresia da água. Nas recordações do mestre do barco, o mar estava ainda mais calmo do que está hoje, mas de repente ficou “pior do que há 20 anos”: “De um momento para o outro, ela foi levada. Tentei salvá-la. Atirei-me ao mar e acho que perdi os sentidos: lembro-me de estar lá, de ter uma visão mas não me recordo do que foi. Bebi muita água, comi muita areia e, quando acordei, estava fora de água. Ninguém me foi lá buscar, não nadei até à costa. Não sei explicar, mas quando acordei estava deitado na areia. Simplesmente estava lá. Por isso é que às vezes digo que já estive morto”. O corpo de Andreia veio a aparecer semanas depois, levada pelo mar para o Baleal, a norte de Peniche. Joshua tinha cinco anos e só soube que a mãe tinha morrido porque um colega de escola lhe disse.
Na primeira noite depois de o corpo de Andreia ter dado à costa, Joaquim lembra-se de se ter deitado na cama e ter olhado para o teto, “sozinho e sem norte”, à procura de respostas: “Já andava a falar em comprar um barco de pesca, porque está no sangue. Mas depois ela morreu. Cheguei a casa um dia e perguntei para o ar: ‘Alguém me diga o que hei de fazer. Alguém que me diga alguma coisa’“. E adormeceu. No dia seguinte levantou-se da cama, perguntou ao dono do “Companheiro de Deus” quanto custava o barco e comprou-o. Passados 12 anos, acredita que a resposta “veio do além”. Já teve quatro mulheres, tem quatro filhos — dois gémeos de 31 anos, Joshua de 18 e um rapaz de 8 anos, que leva todos os dias à escola independentemente da hora a que chegue a casa. Diz que tem muito amor para dar. “E tenho muita vida. Tenho 52 anos e não me sinto velho, não me sinto cansado e nem os problemas de coração, que são uma coisa de família, me vão fazer parar. Até poder, continuo sempre a trabalhar. Trabalho sete dias por semana — e não trabalho oito porque o oitavo não existe. Há quem seja alcoólico de bebida. Eu sou alcoólico do trabalho”.
Terça-feira, 17 horas e 30 minutos — A Venda
Joshua David Roberts encaixou placas de madeira em redor de todo o barco para poder transportar todo o peixe que vai chegando da rede. De pernas abertas em cima da caixa onde está guardado o material de socorro, Joshua vai recebendo dos colegas cestos cilíndricos cheios de carapaus prateados que se contorcem assim que lhes falta a água. O cesto tomba no chão, Joshua segura nele e despeja o peixe para as laterais: está feliz por não ser sardinha, mas desiludido porque, com apenas 18 anos, já perdeu a conta às vezes em que regressou à lota com o barco completamente recheado de peixe bem mais valioso. Desta vez, a pesca rendeu uns 60 cabazes de carapau — cerca de 1.320 quilos de peixe. Com uma chamada, Joaquim Zarro consegue vender todo o pescado a um comprador dos hipermercados Modelo a cinco euros por cada 20 quilos. Contas feitas, lançar a rede ao mar rendeu aos pescadores do “Companheiro de Deus” uns meros 300 euros. Mas isso é o que as grandes superfícies ganham a cada 60 quilos que vendem na manhã seguinte.
Já com as luzes do barco ligadas — o Sol já se pôs e o farol é a única companhia a esta distância do porto de abrigo –, Joaquim Zarro diz que as quotas da sardinha que lhe limitam o negócio são “injustas: “Quando é proibido pescar na Península Ibérica, outros barcos de outros países costumam vir cá apanhar a nossa sardinha. É com isto que nós ficamos revoltados. Com isto e com o facto de o cálculo das quotas não ter em conta que a sardinha aparece aqui sempre muito mais tarde do que nos outros lados: a altura de se apanhar sardinha na costa oeste era agora, porque essa espécie faz um percurso de sul para norte, mas a quota já fechou”. Tendo isto em conta, Joaquim Zarro só tem duas hipóteses em cima da mesa: ou tenta a sorte com outras espécies ou então pára o barco e não ganha nada: “Dão-nos um subsídio quando temos o barco completamente parado, mas só dura um mês. E o regresso à sardinha é só em junho — ela abre mais cedo, mas nós começamos mais tarde para tentar poupar a quota”.
E o que vai Joaquim Zarro fazer até lá? Parar está fora de questão. De uma maneira ou de outra, “um barco tem despesas todos os dias”: mesmo se estiver encostado ao cais sem pescar, há a obrigação de pagar à doca por estar lá atracado; e se estiver a ser utilizado, há os seguros para pagar. Despedir pessoal também não é hipótese: “A mão de obra é muito pouca. A malta jovem não quer e compreende-se, porque é um trabalho duro com um futuro difícil e com poucas perspetivas de progresso. Se não forem os mais velhos nós não vamos a lado nenhum. O problema é que nem todas as capitanias deixam os reformados trabalharem: para nós eles são como professores, porque têm a experiência e têm uma força de vontade completamente diferente. Devia ser louvado que eles se queiram manter no ativo: o futuro deste país depende da pesca e da agricultura, mas nenhum dos nossos Governos percebe isso”. Mas Joaquim Zarro não tem receio de apontar dedos: se está a vender 20 quilos de carapau a cinco euros, a culpa é de Cavaco Silva: “Foi ele quem desmoronou o nosso setor primário quando era primeiro-ministro”.
Mas agora é hora para tranquilizar o espírito. O barco tem mais de uma tonelada de peixe a bordo e Joaquim Zarro pode dormir descansado. “Agora é o meu momento”, declara. Tira um maço de cigarros do bolso e acende um deles. Está na hora de regressar a casa.
Terça-feira, 18 horas e 15 minutos — O Regresso ao Porto
“Estão enjoados? Tirem os gorros: não convém ter coisas a apertar aqui a cabeça quando estamos enjoados”, aconselha Joaquim Zarro enquanto dá meia volta ao barco para nos levar de regresso à lota. Um dos pescadores tem peixe até aos joelhos e outro preenche as arcas de carapau com água para o manter o mais fresco possível. O regresso a casa é sempre mais calmo aqui na Nazaré do que em Peniche ou na Figueira da Foz, para onde o “Companheiro de Deus” deve partir para tentar encontrar um mercado de compradores 20 vezes maior do que na lota nazarena: “O preço do peixe lá é muito mais valorizado. É preciso ter mais cuidado, porque a barra é muito mais perigosa e as condições não são tão boas. O porto da Nazaré poderia ter sido um dos maiores portos comerciais do nosso país, até porque é o único de norte a sul que não fecha à noite. Lá, quando o tempo está mau e o mar está agitado só temos uma fração de segundos para poder atracar. Na Figueira da Foz leva-se muita porrada, mas tem uns 100 compradores, enquanto cá há quatro ou cinco”.
Quando chegamos à lota, a irmã de Joaquim, Anabela, está à nossa espera. A noite já se abateu no porto de abrigo, mas a lota está mais acordada do que nunca: Anabela envia cestas de peixe para dentro do “Companheiro de Deus”, onde Joshua as vai enchendo com peixe e atirando-as de volta ao cais. Este carapau já tem destino, mas lá dentro ainda há caixas de cavala, robalos e douradas à espera de um comprador. À medida que os expositores de Joaquim Zarro vão sendo preenchidos, uma máquina leva-os para dentro da lota a fim de serem bem conservados e contabilizados, garantindo que o “Companheiro de Deus” cumpriu todas as regras a que está obrigado. Anabela ajuda os colegas do irmão a separar o carapau dos pequenos caranguejos, das algas e de peixes de outras espécies que vieram por engano dentro da rede do barco. O dia aqui no porto de abrigo da Nazaré ainda está longe de terminar, mas pelo menos valeu a pena ter seguido a intuição de Joaquim.
De costas voltadas para o porto de abrigo, onde Joaquim Zarro ficou a livrar as redes dos caranguejos — cujo óleo da carapaça, se não for bem limpo da malha, pode contaminar o peixe de amanhã e danificar a sua qualidade — doem-nos os braços, os pés estão gelados e o chão ainda parece assumir o baloiçar das ondas. O mestre despede-se de nós com um convite para regressar assim que houver sardinha, Joshua continua compenetrado no trabalho dentro de um barco que pode vir a ser seu e os outros pescadores vão arrastando cestas de peixe de um lado para outro, ofegantes de cansaço e ensimesmados nas tarefas que conhecem há décadas. Amanhã de manhã, o peixe que Joaquim Zarro pescou na nossa companhia vai estar à venda no Modelo. A essa hora, já Joaquim terá levado o filho mais novo à escola. E estará de regresso ao porto de abrigo para mais um dia de uma incerteza “que corre no sangue”. “É uma vida que não conseguimos largar.”