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Três atores, Crista Alfaiate, Carloto Cotta e João Nunes Monteiro, um casal de realizadores (Maureen estava grávida durante a rodagem) e uma equipa técnica compõem “Diários de Otsoga”.
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Três atores, Crista Alfaiate, Carloto Cotta e João Nunes Monteiro, um casal de realizadores (Maureen estava grávida durante a rodagem) e uma equipa técnica compõem “Diários de Otsoga”.

Três atores, Crista Alfaiate, Carloto Cotta e João Nunes Monteiro, um casal de realizadores (Maureen estava grávida durante a rodagem) e uma equipa técnica compõem “Diários de Otsoga”.

“Diários de Otsoga”: "Se não fosse a pandemia, nunca teríamos conseguido fazer um filme em poucos meses"

O filme de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes conta a história de três actores e uma equipa de rodagem numa quinta. “Diários de Otsoga” fala da convivência nestes tempos estranhos e chega esta semana.

É um filme inventado. Mas o cinema não é todo inventado? Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes, em maio do ano passado, tiveram a ideia de filmar. Esse é o princípio, mas também conta como ideia. Assim nasceu “Diários de Otsoga”, que estreia esta semana nas salas portuguesas, outro filme em agosto de Miguel Gomes (depois de “Aquele Querido Mês de Agosto”), um agosto invertido, porque não foi como os outros. É um otsoga, onde o tempo volta para trás, seguindo um diário de rodagem no sentido inverso.

Uma mecânica que funciona a vários níveis e, além das visões temporais que o espectador possa encontrar ao longo do filme, é uma que trata com carinho esta ideia de as pessoas poderem voltar a estar juntos. Até porque o agosto do ano passado ainda é um pouco do agosto deste ano: há um ano talvez estivéssemos mais convencidos do regresso rápido à normalidade.

Três atores, Crista Alfaiate, Carloto Cotta e João Nunes Monteiro, um casal de realizadores (Maureen estava grávida durante a rodagem) e uma equipa técnica compõem “Diários de Otsoga”. A história faz-se vendo o filme, da mesma forma que os atores viveram o tempo naquela quinta, em Sintra, onde estiveram isolados durante semanas com a equipa técnica. O título diz tudo, é um diário, um diário de rodagem, mas também um diário sobre esta coisa de voltarmos a poder estar juntos e de se criar as experiências que se viviam no passado. Às tantas, o filme não é só dos atores, a equipa técnica entra e a experiência muda radicalmente para o espectador. Não é só o tempo que nos troca as voltas.

Estivemos à conversa com os realizadores, Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes, via zoom, há umas semanas. Também presente, primeiro em off e depois em frente da câmara, estava a filha de ambos. A gravidez de Maureen em “Diários de Otsoga” traz toda uma outra luz ao filme e ao tempo que vivemos. A esta coisa de podermos voltar a estar juntos. Um agosto ao contrário foi a forma de voltar a tornar isso possível. Maravilha.

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O tempo invertido do filme/diário surgiu antes ou durante as filmagens?
Miguel Gomes: Era uma das poucas ideias que tínhamos de princípio. Havia muito poucas. Outra delas era de que o filme teria de incluir uma cena de beijo. A meio de 2020 falava-se muito dessa questão, de como fazer cenas íntimas nas rodagens, porque estavam na lista de coisas altamente proibidas, porque não se iria cumprir o distanciamento social.

Como deram a volta a isso?
MG: Seguimos um modelo. Vamos para aquela casa, fizemos testes PCR, fechámo-nos lá dentro, não saímos a não ser por questões de saúde, como o caso da gravidez da Maureen, que tinha de ser acompanhada e tinha de sair – mas tirando essas situações, ficámos todos lá. Quando filmássemos essa cena do beijo no último dia de rodagem, já estaríamos fechados naquela casa há tanto tempo, por isso haveria um risco de contágio baixo por Covid. Mas queríamos que essa cena fosse a primeira cena do filme, queríamos começar com o beijo. Além disso, queríamos fazer um diário em que cada dia de rodagem correspondesse mais ou menos ao que surge no filme. Ao filmar essa cena no último dia, onde existe um risco de contágio baixo, e invertermos o diário, aquilo passaria a ser o primeiro dia, porque as páginas do diário passam sucessivamente para o dia anterior, em termos de rodagem. Poderíamos tranquilamente cumprir a premissa de ir filmando diariamente, fazendo um diário, e começar o diário com a cena do beijo, a última página desse diário, ser a primeira, porque as páginas iriam ser mostradas em ordem inversa.

São boas razões.
MG: O cinema também se faz com coisas estúpidas. As coisas estúpidas também desencadeiam coisas menos estúpidas e mais interessantes. Outra das coisas em que pensámos, foi que queríamos pensar um retrato deste tempo, tanto eu como a Maureen, pensamos que uma das funções dos realizadores é lidar com o presente. Um tempo que era o nosso, da pandemia, mas também o tempo coletivo dos espectadores deste filme. O tempo da Covid, da pandemia, dos confinamentos. E queríamos filmar esse tempo e tivemos a sensação, como muita gente, de que houve uma alteração na perceção do tempo. Queríamos tentar inventar um mecanismo muito simples, da alteração da perceção do tempo.

No final do filme, ou seja, com o que se passa no primeiro dia de rodagem, fiquei com a sensação de que os atores vos expulsaram do filme durante a rodagem. Era essa a vossa intenção?
MG: O filme acompanha um processo de criação coletivo: fazer um filme. Quando se faz um filme, as pessoas juntam-se, discutem ideias, fazem ensaios e há uma série de coisas que passam para o lado de cá da câmara, o lado não visível. Todo esse trabalho se oculta e o que fica na tela é o resultado desse trabalho. Ao invertermos os dias, vamos terminar com esse momento inicial. Não sei se são os atores que nos expulsam do filme, mas começamos com eles no princípio do filme, num casulo, com as personagens do filme – que não sei se são diferentes dos próprios atores ou das personagens que eles inventaram para eles próprios – e o filme vai abrindo, vai incluindo…

Maureen Fazendeiro: Também podemos dizer que nós é que invadimos o espaço dos atores.

MG: Fomos nós que irrompemos pelo espaço deles, equiparámo-nos a eles, também tivemos de fazer as nossas próprias personagens, como eles. Mas houve um momento que ocuparam o nosso espaço. Há uma cena que é da exclusiva responsabilidade dos atores. Foi um dia que eu e a Maureen tivemos de sair – isto está no filme – e deixámos-lhes à disposição a equipa técnica. Eles decidiram entrar na nossa casa de banho, do quarto onde estávamos a viver, e filmaram uma cena com eles. Houve momentos neste filme em que se confundiam, em que nós éramos tão atores como os atores e, pelo menos num dia, foram tão realizadores, bons ou maus — isso é uma coisa que não vou discutir –, como nós: inventaram a cena e trabalharam com os técnicos.

Não consigo ver o filme só com a ordem inversa. Junto o tempo real com o tempo da ficção. Para mim ficou mesmo a ideia de que os atores tomaram conta do filme.
MG: Essa questão das duas leituras do tempo, como vemos no filme, o tempo invertido, como o tempo da própria rodagem, o tempo que o espectador mentalmente recompõe ao ver o filme, há quase dois movimentos, há o filme a andar para a frente e para trás. Isso foi uma preocupação nossa.

MF: Pensámos nos dois filmes, no filme que o espectador vê e o que vai recompor depois. Não havia argumento, mas não foi completamente improvisado a cada dia, havia um movimento. Na primeira semana que chegámos a casa, chegámos nós, o assistente de realização e a argumentista [Mariana Ricardo]. O trabalho da primeira semana foi escrever o movimento do filme, o filme vai andar para a frente e para trás. Sabendo que havia uma primeira parte só com os atores e uma segunda com a equipa toda a entrar. Trabalhámos sempre esse movimento, a escrever o filme.

O que aconteceu quando os atores chegaram?
MF: Chegaram na segunda semana, ainda antes da rodagem. Trabalhámos com eles improvisações de situações. Como na primeira semana explorámos a casa, pensámos em situações e, quando os atores chegaram, trabalhámos improvisações com eles. A partir dessas improvisações, as poucas cenas escritas do filme, foram escritas de coisas que eles disseram nas improvisações. Depois dessa semana de improvisação, foram quatro semanas de rodagem, onde a cada dia íamos reatualizar o movimento que tínhamos pensado. Tínhamos o quadro branco – que se vê no filme -, que tinha na parte de cima ideias, muitas ideias, e na parte debaixo tinha colunas que dava para ler nos dois sentidos e cada coluna correspondia a um dia. À medida que íamos filmando, íamos revendo o que tínhamos feito para ver se tínhamos tudo. Íamos integrando o que ia acontecendo diariamente na casa ao filme. Porque, por vezes, tínhamos ideias abstratas, por exemplo, os três atores na piscina, mas não sabíamos o que ia acontecer nessa cena. Dependia do humor dos atores naquele dia, do estado de espírito da equipa, se era preciso dar banho aos cães.

MG: Havia atores com humor muito variável. Era sempre uma surpresa o que vinha aí.

O quadro tem mais dias do que o filme. Porquê?
MG: São as folgas, não contámos com as folgas. 90% do que se vê corresponde ao que filmámos naquele dia de rodagem.

A casa/quinta é um elemento ativo ao longo do filme. Como surge a limpeza da piscina?MG: Queríamos pôr os atores a fazer um trabalho físico, manual. A piscina não era utilizada há anos, informámos os atores que eles iriam ter de limpar a piscina.

MF: A regra era aproveitar o que havia na casa e não mandar vir nada de fora. A única coisa que veio de fora, foram as borboletas, mandámos vir borboletas e nasceram no borboletário que foi construído pelos atores. Tudo o resto era aproveitar o que há na casa e usar isso…

MG: De fora vieram connosco alguns cães, vieram as coisas que as pessoas queriam trazer para dentro da casa. Já havia lá dois cães, apareceram mais três. E levámos a prancha de surf do Carloto. Quando informámos o Carloto quais eram as regras desta rodagem, que as pessoas teriam de ficar lá fechadas, mesmo no dia de folga, e ele perguntou se não dava para surfar na folga. Nós explicámos que não dá, a regra é que não se pode sair.

E trouxe a prancha na mesma?
MG: Eu disse-lhe: já que estás com essa ideia do surf, traz, e logo vemos o que se pode fazer isso. Mas não vais surfar.

E assim surge aquela cena.
MG: Inventámos essa cena porque percebemos que se não fizéssemos nada, o Carloto teria feito exatamente aquilo que surge no filme: não aconteceu, mas poderia ter acontecido.

É uma cena com grande impacto. Aparecem todos, exceto a Maureen, a representar. Queriam que a mudança no filme se desse com essa reunião informal?
MG: Havia duas coisas que nos interessavam. Os atores, em quase 90% das cenas estão a improvisar, ou seja, não tinham texto escrito, sabiam mais ou menos o que dizer, mas estão a improvisar. O que nivela um bocado [entre atores e não-atores]. Seria diferente se nós, os não-atores, tivéssemos texto para dizer, obviamente que se sentiria uma diferença maior de registo entre os atores e nós. Como era para improvisar, achámos interessante ter atores a improvisar e não-atores a não improvisar e ver como esse confronto resultava: ver como ambos funcionavam a ter a mesma ação. Essa cena é importante, porque é o momento em que fica explícito o que se está ali a fazer. Creio que é a única cena onde há uma grande revelação. Queríamos que o filme fosse mudando. Entre a cena inicial e a final muda imensa coisa, a perceção do filme, do espaço, da relação das pessoas, queríamos que essas mudanças fossem acontecendo muito lentamente. Tal como o marmelo que surge ao longo do filme, que vai apodrecendo, aliás, desaprodecendo ao longo do tempo, lento. O filme é feito de mudanças pequenas, essa cena com o Carloto é a exceção, onde tudo muda de uma forma mais violenta e visível.

Esta ideia surgiu-vos em maio. Como é fazer um filme em tão pouco tempo, sobretudo nesta altura e em Portugal. E pergunto já, também, se “Diários de Otsoga” é uma reação a terem deixado todos os vossos outros projetos em pausa?
MG: É mais uma consequência…

MF: E uma reação ao que todos atravessamos. Fizemos este filme de uma maneira muito diferente de como fazemos os outros, não havia tempo para escrever, costumamos viver com os projetos durante muitos anos, antes de os podermos concretizar, ou porque precisamos de tempo para escrever, ou porque o sistema, o financiamento, é demorado. Poder fazer um filme desta maneira, quase imediata, foi um luxo. Se não fosse a pandemia, nunca teríamos conseguido fazer um filme em poucos meses. Deu-nos uma grande liberdade para improvisar e, em cada dia, inventar o que poderia ser o filme.

MG: Fazer um filme tão rápido é uma novidade e devemos isso aos produtores. Não recorremos aos canais habituais de financiamento, não havia tempo para isso. Havia uma razão para tentarmos ser o mais rápido possíveis, que era a questão do bebé, teríamos de filmar rapidamente. Os produtores aceitaram a ideia e arriscaram investir dinheiro deles sem termos de ir ao ICA e aquelas coisas habituais no cinema. Não havia outra maneira de o fazer.

Filmaram o que queriam e como queriam?
MF: Como não sabíamos o que queríamos filmar, podemos dizer que sim. Queríamos filmar, não sabíamos era o quê. O nosso desejo mesmo era filmar.

Essa parte do não saberem o que queriam era um desafio para vocês?
MG: Era um desafio altamente aliciante, entrarmos ali sem saber o que poderíamos fazer, com duas ou três ideias, mas sem saber bem o que queríamos fazer. E tentar descobrir isso com a experiência de viver com aquelas pessoas que iam fazer o filme connosco. E às tantas percebemos que o filme era sobre esta coisa de voltar a estar juntos. O filme é uma reação ao confinamento real, onde cada um de nós estava isolado. O que nos dava gozo, o que queríamos mesmo filmar, era esta comunidade que se forma sempre que se faz um filme, mas aqui era potenciada pelo facto de estarmos todos ali fechados. Aquilo seria a nossa vida. Quisemos fazer uma espécie de retrato da nossa vida naquele momento, um retrato ficcionado, mas a partir do momento de estarmos todos juntos. Que era o que não poderíamos fazer durante o confinamento real. Se me perguntares sobre o que é o filme, eu diria que é sobre essa reconexão, sobre essa anulação do distanciamento social, que foi a experiência de vivermos juntos para fazer um filme. É quase um diário de confinamento, anti-diário de confinamento, com todos aqueles ingredientes. Que eram impossíveis no confinamento, de voltar a estar com pessoas, filmar em película e não com um telemóvel, em exteriores. Um filme sobre o tempo presente mas também sobre um outro tempo coletivo em que podemos estar todos juntos uns com os outros.

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