Índice
Índice
Um negócio da China
Quando os CDs começaram a ser comercializados em massa, em meados da década de 1980, as editoras impuseram-lhes um preço – cerca de 15 a 20 euros – que era cerca do dobro do praticado nos discos de vinil. O acréscimo seria, supostamente, o preço a pagar pela alta tecnologia envolvida na sua manufactura e seria recompensado pela fidelidade e durabilidade acrescidas que o novo formato supostamente proporcionaria. Não vale a pena enveredar pela discussão das vantagens e desvantagens do vinil face ao CD (e ao SACD e Blu-ray Pure Audio), pois tal seria assunto para muitas páginas; mas, entretanto, mesmo os mais distraídos perceberam que, a partir do momento em que entrou em produção em massa, o CD sempre teve, para o fabricante, custo inferior ao de um disco de vinil – por outras palavras, o consumidor foi ludibriado.
A manganilha foi particularmente proveitosa no que toca às reedições das gravações do jazz clássico: toda a (muito módica) despesa envolvida na gravação tinha sido amortizada há décadas, pelo que tudo era lucro. Para os mega-conglomerados dos media que ficaram na posse do fabuloso acervo das pequenas editoras independentes da “Era de Ouro”, como a Blue Note (fundada em 1939 por Alfred Lion e Max Margulis), a Prestige (fundada em 1949 por Bob Weinstock), a Pacific Jazz (fundada em 1952 por Richard Bock e Roy Harte), a Riverside (fundada em 1953 por Orrin Keepnews e Bill Grauer), a Verve (fundada em 1956 por Norman Granz), ou a Impulse! (fundada em 1960 por Creed Taylor), foram anos de pingues lucros: as águas eram calmas e a pirataria estava limitada às cassettes.
A aparição do CD-R e a consequente explosão da pirataria veio perturbar o negócio da China, mas nem por isso as editoras baixaram o preço dos CDs. Quando após uma primeira vaga de reedições, os mesmos álbuns clássicos regressaram ao mercado com som restaurado e remasterizado, faixas inéditas e alternate takes e apresentação mais cuidada – notas de enquadramento histórico, fotos de época, o digipack de cartão a substituir a hedionda caixa de plástico (um dos erros capitais de quem concebeu o CD) – o preço manteve-se nos 15-20 euros. Na viragem dos séculos XX-XXI, surgiu o Napster, o pioneiro da partilha de ficheiros musicais via internet, e a indústria musical mostrou-se incapaz de perceber o que estava a acontecer e teve reacções erráticas, tardias, ineficazes ou até contraproducentes. Não tardou que mil Napsters florescessem, que a pirataria assumisse proporções avassaladoras e que as vendas de CDs caíssem a pique. Mas os prodigiosos desenvolvimentos na internet e a difusão de smartphones, iPods e outros dispositivos móveis revolucionou completamente a forma de fruição da música, de modo que para a maioria dos adolescentes e jovens adultos de hoje a ideia de pagar para adquirir música – e, mais ainda, música num suporte físico – soa tão estranha como a de usar sobrecasacas ou saias de crinolina. Foram necessárias todas estas convulsões para que as editoras passassem a comercializar os seus fundos de catálogo jazz por preços mais modestos. Mas adoptaram tardiamente esta política e, entretanto, houve pequenas editoras especializadas em reedições que apostaram a sério no mercado low cost.
A expiração dos direitos de autor
Boa parte das reedições económicas de jazz clássico provêm de editoras da Grã-Bretanha, uma vez que a lei britânica previa um prazo de 50 anos para os direitos de autor de registos sonoros, enquanto nos EUA o prazo estipulado para registos realizados entre 1923 e 1972 é de 95 anos. Em 2013, o prazo previsto na lei britânica foi alargado para 70 anos, mas a prorrogação não tem efeitos retroactivos, o que significa que as gravações anteriores a 1963 caíram no domínio público.
Uma das editoras mais activas tem sido a Enlightenment que, por cerca de 10 euros, propõe uma caixa de 4 a 6 CDs com oito a dez álbuns originais; o principal inconveniente é a quase completa ausência de informação sobre as sessões de gravação e os músicos que nelas participaram. Não se compreende esta omissão, uma vez que estes são dados relevantes para qualquer apreciador de jazz – a quem não basta ouvir um belo solo de trompete, quer também saber quem a toca – e a sua inclusão no sumário livrete que acompanha a caixa não teria custos acrescidos para a editora. Seja como for, a lacuna é remediável pelo comprador, pois hoje em dia é possível obter os detalhes sobre as sessões de gravação na internet.
A entrada das gravações históricas no domínio público tem suscitado um fervilhar de reedições por várias pequenas editoras, mas muitas ficam-se pela compilação de best offs, um produto de escasso interesse e de que o mercado já está saturado. Esta panorâmica deixará de fora os best offs e considerará apenas as reedições que restituem álbuns na íntegra.
Caixas Enlightenment: As indispensáveis
As três caixas dedicadas a Art Blakey reúnem 24 álbuns lançados pela Blue Note entre 1954 e 1962, o que corresponde a boa parte do período áureo dos Jazz Messengers liderados pelo carismático baterista. Nos Jazz Messengers, os músicos, sempre de alto nível, costumavam ter uma elevada taxa de rotação – na trompete sucederam-se Clifford Brown, Kenny Dorham, Donald Byrd, no saxofone Lou Donaldson, Hank Mobley, Jackie McLean, Benny Golson – mas em 1960-61 no quinteto estabilizou num line-up impecavelmente oleado, com Lee Morgan, Wayne Shorter (saxofone), Bobby Timmons (piano) e Jymie Merritt (contrabaixo), que gravou uma mão-cheia de grandes discos, onde se destacam os efervescentes A Night in Tunisia (1960) e The Freedom Rider (1961). A caixa inclui também os míticos concertos no Cafe Bohemia (1954) e no Birdland (1955) e o primeiro álbum a exibir o nome Jazz Messengers (1956), todos com Horace Silver no piano, que depois partiria para prolífica carreira em nome próprio (ver abaixo).
[“A Night in Tunisia”, uma composição de Dizzy Gillespie, torna-se verdadeiramente escaldante nas mãos de Art Blakey & The Jazz Messengers, no álbum A Night in Tunisia (1960)]
Uma das vedetas de At the Cafe Bohemia é o trompetista Clifford Brown, que faleceria dois anos depois, com apenas 25 anos, num acidente de viação que vitimou também o jovem e promissor Richie Powell, de forma que esta caixa com 13 álbuns, gravados em 1954-1956 (a data “1954-1960” indicada na caixa refere-se não à data de gravação – um critério mais sólido – mas de edição) representam boa parte da sua produção como líder e co-líder. Alguns dos seus melhores álbuns correspondem ao quinteto co-liderado com o baterista Max Roach e que incluía Richie Powell no piano, George Morrow no contrabaixo e Harold Land ou Sonny Rollins no saxofone.
[“I’ll remember April”, composição de Gene de Paul, pelo quinteto de Clifford Brown & Max Roach, no álbum At Basin Street (1956)]
Tal como Brown, também Eric Dolphy (saxofone alto, clarinete, clarinete baixo, flauta) morreu jovem (em 1964, com 36 anos) e quando estava a desbravar novos e excitantes caminhos para o jazz. Em vida, Dolphy lançou apenas cinco álbuns em nome próprio, pelo que esta caixa com 12 álbuns gravados em 1959-1962 contém vários discos de Dolphy sob a liderança de outros músicos – Oliver Nelson, Ron Carter, Mal Waldron, Ken McIntyre – ou como convidado do Latin Jazz Quintet.
Falta na caixa o álbum mais famoso de Dolphy, Out to Lunch! (1964, Blue Note), que não entrou no domínio público, mas Out There (1960, Prestige/New Jazz), com a invulgar formação, para a época, de saxofone/clarinete, violoncelo (um muito jovem Ron Carter), contrabaixo (George Duvivier) e bateria (Roy Haynes), evidencia quão “fora” dos caminhos mais batidos estava Dolphy já em 1960.
[“Out There”, composição de Eric Dolphy & Charles Mingus, pelo quarteto de Dolphy, em Out there (1960)]
https://www.youtube.com/watch?v=fYOxnSecjq0
Os 12 álbuns gravados por Bill Evans em 1956-1962 (todos para a Riverside, com excepção de Empathy, de 1962, na Verve) contam-se entre os melhores do pianista. Entre outros, estão cá os álbuns de estreia, New jazz conceptions (1956) e Everybody digs Bill Evans (1958), que deram logo a entender que havia algo de novo no piano jazz – uma delicadeza e um intimismo inauditos, requintadas harmonias de influência impressionista –, e os álbuns do prodigioso trio com Scott LaFaro e Paul Motian: Portrait in jazz (1959), Explorations (1961), Sunday at the Village Vanguard e Waltz for Debby, documentando os dois últimos o derradeiro concerto do trio, a 25 de Junho de 1961, no clube Village Vanguard. LaFaro faleceria num acidente de viação dez dias depois, e Evans, muito abalado, só meses depois regressaria ao estúdio, para sessões em trio com Motian e Chuck Israels no lugar de LaFaro (Moon beams e How my heart sings!), e para um duo com o guitarrista Jim Hall (Undercurrent).
[“Gloria’s step”, de Scott LaFaro, pelo trio de Bill Evans, ao vivo no Village Vanguard]
O saxofonista tenor Dexter Gordon emergiu nas décadas de 1940 e 1950 e manteve uma elevada visibilidade pela década de 1980 dentro, o que se explica em parte pelo seu natural talento de comunicador em palco e pelo envolvimento, como actor e compositor da banda sonora, no filme “Round midnight” (1986), de Bertrand Tavernier, que lhe valeu uma nomeação para Oscar de melhor actor principal, pelo papel de Dale Turner, uma personagem compósita onde se fundem traços de dois jazzmen de vidas trágicas: Lester Young e Bud Powell.
Nos anos 40, Gordon passou pelas bandas de Lionel Hampton e Billy Eckstine, tocou com todos os grandes músicos que lançaram os alicerces do bebop e gravou como líder para a Savoy na viragem dos anos 40-50 (estreou-se em 1947 com Dexter rides again), mas, a partir de 1952, a sua dependência da heroína levou-o a sucessivas estadias na prisão, pelo que a sua produção no resto da década se resume, na prática, a Daddy plays the horn (Bethlehem) e Dexter blows hot & cool (Dooto), gravados em 1955, num interregno entre penas de prisão.
O regresso fez-se em 1960, com o apropriadamente intitulado The resurgence of Dexter Gordon (Jazzland), a que se seguiu uma estupenda série de álbuns para a Blue Note, que demonstram que as vicissitudes por que o saxofonista passara em nada tinham diminuído as suas capacidades: Doin’ allright (1961), Dexter calling (1961), Go! (1962) e A swingin’ affair (1962). Os álbuns mencionados estão incluídos na caixa Enlightenment com 12 álbuns gravados em 1947-1962.
[“Cheese cake”, composição de Dexter Gordon, por Dexter Gordon, Sonny Clark (piano), Butch Warren (contrabaixo) e Billy Higgins (bateria), em Go!]
O pianista Ahmad Jamal é um dos mais extraordinários casos de longevidade musical de todos os tempos. Nasceu em 1930, gravou o primeiro álbum como líder em 1951 (Ahmad´s blues , na Okeh) e, com o século XXI já avançado, não só mantém actividade regular, como exibe uma frescura e uma inventividade capazes de fazer inveja a músicos com idade para serem seus bisnetos, como pode atestar-se em Live in Marciac: August 5th 2014 (CD + DVD Jazz Village).
O seu estilo sereno e económico, nos antípodas da excitação e das torrentes de notas típicas do bebop, exerceu grande influência sobre muitos jazzmen, entre os quais Miles Davis, que, na década de 1950 costumava instruir os pianistas com quem tocava para “tocar como Jamal”.
As duas caixas reúnem 16 álbuns gravados em 1951-1962, quase sempre em trio com os fiéis Israel Crosby (contrabaixo) e Vernel Fournier (bateria). Entre os momentos altos estão os concertos nos clubes Pershing (1958), Spotlite (1958), Alhambra (1961) e Blackhawk (1961).
[Elegância e depuração: “Poinciana”, de Ahmad Jamal, pelo trio de Jamal, no álbum At the Pershing]
Roland Kirk será, provavelmente, nome desconhecido dos não-iniciados, mas merece estar entre os Grandes do Jazz. Quem contacte com este fenomenal multi-instrumentista a partir de fotos ou filmes, poderá sentir-se tentado a reduzi-lo à categoria de fenómeno bizarro, mas sob a aparente excentricidade estava um músico notável.
Kirk perdeu a visão aos dois anos mas tal não constitui obstáculo a que se tornasse rapidamente num proficiente saxofonista, iniciando carreira profissional aos 15 anos. O seu dom natural levou-o a expandir progressivamente o seu instrumentário para incluir, além do saxofone tenor, clarinete, flauta, manzello e stritch (duas raras variantes de saxofones soprano e alto, respectivamente) e cor anglais (uma variedade de oboé). Se o domínio de tal panóplia é digno de admiração, o facto de ele tocar dois ou três destes instrumentos em simultâneo e de ser capaz de usar todo o arsenal de sopros ao longo de uma peça, sem qualquer embaraço ou quebra de continuidade, é do domínio do miraculoso.
[Roland Kirk ao vivo em Baden-Baden, em Abril de 1961, acompanhado por um “trio europeu” com René Urtreger (piano), Pierre Michelot (contrabaixo) e o expatriado norte-americano Kenny Clarke]
Mas, ao contrário do que poderá parecer, nada na mirabolante prestação em palco de Kirk visava o show off, tudo estava ao serviço da música, como pode atestar-se nos oito álbuns gravados em 1956-1962 disponíveis na caixa Enlightenment. Ainda que alguns dos álbuns mais relevantes de Kirk tenham surgido depois de 1963, nem por isso pode dispensar-se esta caixa com os seus primeiros cinco álbuns como líder e as suas participações em Bossa Nova, de Quincy Jones, Out of the afternoon, de Roy Haynes, e Tubby’s back in town, de Tubby Hayes.
[“Three for the festival”, de Roland Kirk, pelo próprio (em todos os sopros), Hank Jones (piano), Wendell Marshall (contrabaixo) e Charlie Persip (bateria), no álbum We free kings (1961, Mercury)]
Thelonious Monk teve que ouvir muitos vilipêndios – nomeadamente o de não saber tocar ou de ser um lunático –, mas o tempo veio dar-lhe razão e é hoje reconhecido como um dos pianistas mais originais e influentes de sempre. Alguns dos seus contemporâneos com ouvidos mais apurados logo se aperceberam de que a suposta inépcia ou excentricidade era antes um completo desrespeito por convenções e limites – entre eles estava Alfred Lion, o boss da Blue Note, que não receou baptizar os dois álbuns de estreia do pianista (o vol. 1 de 1947, o vol. 2 de 1951-52) com o assertivo título The genius of modern music.
Quando, em 1955, após três álbuns na Prestige, Monk se mudou para a Riverside, onde permaneceria até 1961, a editora achou mais prudente que Monk, cujo repertório costumava assentar nas suas composições angulosas e bizarras, começasse por gravar um disco de composições consagradas de Duke Ellington, de forma a desfazer a maledicência sobre a sua (alegada) incompetência como pianista. Monk acedeu, mas não deixou de imprimir o seu cunho pessoal a Plays the music of Duke Ellington.
As duas caixas com 18 álbuns gravados em 1954-1961 incluem marcos da história do jazz como Brilliant corners (1956), com Clark Terry e Sonny Rollins, Monk’s music (1957), com John Coltrane e Coleman Hawkins, Mulligan meets Monk (1957), em colaboração com Gerry Mulligan, e a solitária incursão em grande formato The Thelonious Monk Orchestra at Town Hall (1959), bem como os discos de piano solo, em que a absoluta originalidade de Monk se torna mais evidente: Thelonious himself (1957) e Alone in San Francisco (1959).
[“Well, you needn’t”, pelo septeto de Thelonious Monk, em Monk’s music]
https://www.youtube.com/watch?v=lt_JIFmsJZc
Max Roach reinventou a forma de tocar bateria, foi, com Kenny Clarke e Art Blakey, um dos bateristas seminais do bebop e nunca se deixou tentar por ficar a dormir à sombra dos louros – a inovação e o risco guiaram toda a sua carreira, não temendo envolver-se em projectos com a Orquestra Sinfónica de Boston, coros gospel ou músicos de hip hop.
Os 18 álbuns nas duas caixas Enlightenment dizem respeito a 1953-1962 e incluem, entre outros, os registos EmArcy de 1954-56 do quinteto com Clifford Brown e Richie Powell (mencionado acima na entrada referente a Brown), os registos EmArcy de 1958-59 do quinteto Max Roach Plus 4, com Booker Little e George Coleman, o “duelo de baterias” com Buddy Rich (Rich vs. Roach, 1959, Mercury), o incontornável We insist: Freedom now suite (1960, Candid), um dos primeiros álbuns de jazz a assumir como assunto central a luta pelos direitos cívicos dos afro-americanos, e o não menos “comprometido” e fogoso Percussion bitter sweet (1961, Impulse!), com um septeto-maravilha de que faziam parte Booker Little, Eric Dolphy e Mal Waldron.
[“Man from South Africa”, composição de Max Roach, em Percussion bitter sweet]
Sonny Rollins (n. 1930) tem uma longuíssima carreira – ainda está no activo – mas entre os mais de 60 álbuns que registou como líder poucas vezes atingiu o nível dos nove que gravou para a Prestige em 1953-1956. Merecem destaque Tenor madness (1956), em que é acompanhado pela secção rítmica do quinteto de Miles Davis e que, na faixa de abertura, “Tenor madness”, se envolve um electrizante “duelo” com John Coltrane, a outra grande promessa do saxofone tenor daquele tempo, e Saxophone colossus (1956), com Tommy Flanagan, Doug Watkins e Max Roach, que veio cimentar o seu prestígio como um dos jovens “colossos” do saxofone.
[Duelo de jovens colossos: Sonny Rollins e John Coltrane em “Tenor madness”, do álbum homónimo de Rollins (com Red Garland, Paul Chambers e Philly Joe Jones)]
O pianista e compositor George Russell podia ter entrado na história do jazz em 1944, aos 22 anos, como baterista do grupo de Charlie Parker, mas a tuberculose atirou-a para uma cama de hospital durante 16 meses. O seu contributo para a evolução do jazz acabaria por ser bem diverso: trouxe-lhe composições sofisticadas e meticulosamente arranjadas, diferentes de tudo o que se ouvira até então e baseadas em conceitos harmónicos de sua invenção, explanados no livro Lydian chromatic concept of tonal organization (1953). Esta caixa Enlightenment contém os 10 primeiros álbuns da sua discografia, registados entre 1956 e 1962 e que contaram com a participação de alguns dos músicos mais originais e “progressistas” daquela época, como Bill Evans, John Coltrane, Max Roach, Steve Swallow ou Eric Dolphy. Entre eles contam-se importantes marcos da história do jazz, como Jazz in the space age (1960) ou Ezz-thetics (1961).
[“Ezz-thetics”, composição de George Russell no álbum homónimo. Com Don Ellis (trompete), Dave Baker (trombone), Eric Dolphy (saxofone), George Russell (piano), Steve Swallow (contrabaixo) e Joe Hunt (bateria)]
Horace Silver, um pianista de ascendência cabo-verdiana (“Silver” foi uma americanização de “Silva”), esteve com Art Blakey na génese dos Jazz Messengers, em 1954-55, e acabou por estabelecer o seu próprio quinteto em moldes afins dos Messengers: tal como estes, era constituído por trompete, saxofone tenor, piano, contrabaixo e bateria, foi uma das formações de proa do hard bop e gravou copiosamente para a Blue Note. O quinteto de Silver teve menos mudanças de formação do que os Jazz Messengers e entre 1959 e 1962 manteve os nomes de Blue Mitchell (trompete), Junior Cook (saxofone), Gene Taylor (contrabaixo) e Louis Hayes (bateria) – são eles os intervenientes mais assíduos da caixa com 12 álbuns gravados sob o nome de Silver em 1953-1962. Além de clássicos do quinteto de Silver como Further explorations (1958) ou Horace-scope (1960), a caixa inclui a sua estreia como líder, Introducing the Horace Silver Trio (1952), e o clássico Horace Silver & The Jazz Messengers (1954), com Kenny Dorham, Hank Mobley, Doug Watkins e Art Blakey.
[“Room 608”, composição de Horace Silver, em Horace Silver & The Jazz Messengers]
https://www.youtube.com/watch?v=5hjWcEPyHhk
Cecil Taylor é, como Thelonious Monk, um dos mais importantes pianistas da história do jazz, embora o facto de ter cultivado uma música sem qualquer concessão aos gostos mais mainstream leve a que seja muito menos conhecido do que qualquer dos nomes tratados até agora neste texto. Taylor esteve activo até 2013, apesar de então já ter 84 anos e de o seu estilo tumultuoso, denso e percussivo requerer tanta energia e endurance como a que se pede ao baterista de uma banda de punk hardcore.
Nos nove álbuns gravados em 1956-1962, Taylor ainda não evoluíra para esse pianismo tempestuoso, mas abundam os indícios de que o músico estava disposto a encontrar um caminho muito próprio – intenção que é expressa desde logo no título dos dois primeiros álbuns, Jazz advance (1956, Transition) e Looking ahead! (1958, Contemporary). O seu terceiro álbum, Stereo drive (1958, United Artists), que regista o seu único encontro com John Coltrane, é sintomático da dificuldade do meio jazzístico em acolher alguém tão original e heterodoxo como Taylor. A editora impôs ao pianista músicos de inclinações conservadoras – Kenny Dorham, Chuck Israels e Louis Hayes – e o resultado foi a completa ausência de comunicação e empatia, pelo que o disco resultou num fiasco (mais tarde a Blue Note reeditá-lo-ia sob o nome de John Coltrane – chamariz bem mais apetitoso do que Cecil Taylor – com o título de Coltrane time).
Felizmente, as companhias que surgem nos restantes álbuns são, além da recorrente secção rítmica formada por Buell Neidlinger e Dennis Charles, as de actores principais na revolução que o jazz sofreria na década de 60 – Archie Shepp, Roswell Rudd, Steve Lacy – pelo que o desacerto de Stereo drive não se repetiria.
[“This nearly was mine”, de Cecil Taylor, pelo trio de Taylor, Neidlinger e Charles, em The world of Cecil Taylor (1960)]
Num pólo estético oposto ao de Taylor está o saxofonista tenor Ben Webster, que formou o seu estilo nos anos do swing e que se notabilizou pela sensualidade e doçura que punha na interpretação de baladas. Foi um dos esteios da orquestra de Duke Ellington na década de 1930, mas foi no período coberto pelas duas caixas Enlightenment – 1952-1962 – que fez os registos mais relevantes em nome próprio, maioritariamente para a Verve. Entre os 16 álbuns contam-se pérolas como Soulville (1957), os álbuns de liderança partilhada com Coleman Hawkins (1957), Gerry Mulligan (1959), Oscar Peterson (1959) e Harry “Sweets” Edison (1962, Columbia) e Ben Webster & associates (1959), na afortunada companhia de Roy Elridge, Coleman Hawkins e Budd Johnson.
[“It never entered my mind”, de Richard Rodgers & Lorenz Hart, de Coleman Hawkins encounters Ben Webster, com Oscar Peterson (piano), Herb Ellis (guitarra), Ray Brown (contrabaixo) e Alvin Stoller (bateria)]
Caixas Enlightenment: O hard bop da Blue Note
Além dos gigantes acima listados, as caixas Enlightenment contemplam também os músicos que, tendo menor estatura, deixaram também marca no jazz.
Os apreciadores do hard bop dos “anos de ouro” da Blue Note estão muito bem servidos: o trompetista Donald Byrd está representado por uma caixa com os 10 álbuns que gravou para a editora de Alfred Lion entre 1958 e 1961. De Byrd está também disponível uma caixa Early years, com 11 álbuns gravados para outras editoras em 1955-1958.
[“Fuego”, composição de Donald Byrd no álbum homónimo de 1959 liderado pelo trompetista, com Jackie McLean, Duke Pearson, Doug Watkins e Lex Humphries]
https://www.youtube.com/watch?v=ktAPvHQmHIc
Duas caixas disponibilizam 16 álbuns Blue Note gravados em 1953-1963 pelo saxofonista alto Lou Donaldson, outra oferece nove álbuns gravados em 1960-1962 pelo trompetista Freddie Hubbard, outra contém nove álbuns gravados em 1951-1961 pelo pianista Wynton Kelly, outra ainda 10 álbuns gravados em 1955-1961 pelo saxofonista tenor Hank Mobley.
[“Remember”, de Irving Berlin, por Hank Mobley, Wynton Kelly (piano), Paul Chambers (contrabaixo) e Art Blakey (bateria), no álbum Soul station (1960). Atente-se na extraordinária economia das intervenções do piano na exposição do tema: o máximo de swing com o mínimo de notas]
O trompetista Lee Morgan foi outro grande jazzmen a desaparecer precocemente – foi alvejado pela cara-metade num intervalo entre sets quando actuava num clube nova-iorquino, em 1972. Mas como começou a gravar com apenas 18 anos, o seu registo discográfico – dominantemente na Blue Note – é extenso. Nas duas caixas Enlightenment podem ouvir-se 12 álbuns gravados em 1956-1962.
[Uma típica sessão de “cozinha a altas temperaturas” da Blue Note na viragem das décadas de 1950-60: “Heavy dipper”, composição de Lee Morgan, tocada por Morgan, Pepper Adams, Bobby Timmons, Paul Chambers e Philly Joe Jones, do álbum The cooker (1957), de Lee Morgan]
O pianista Sonny Clark sucumbiu a uma overdose de heroína em 1963, com apenas 31 anos, pelo que esta caixa com os oito álbuns gravados em 1957-1962 para a Blue Note contém quase toda a sua produção (ficam de fora apenas dois discos com sessões inéditas lançados postumamente).
[Mais um clássico do hard bop da Blue Note: “Cool struttin’”, a composição de Sonny Clark que abre o álbum homónimo de 1958, com Art Farmer, Jackie McLean, Paul Chambers e Philly Joe Jones]
https://www.youtube.com/watch?v=llPQnwDAIVU
Caixas Enlightenment: Outras recomendações
Wes Montgomery, para muitos a maior referência da guitarra jazz das décadas de 1950-60, está representado por duas caixas com 16 álbuns gravados para a Riverside em 1958-1962 (gravaria mais uma dezena para a Verve e para a A&M, antes da sua morte aos 45 anos, em 1968).
As duas caixas do original pianista Mal Waldron, que foi cúmplice de Charles Mingus e Eric Dolphy, com 16 álbuns gravados em 1956-1961 (maioritariamente para a Prestige ou para a sua subsidiária New Jazz, de vocação mais avant-garde), são particularmente recomendadas por a maioria dos álbuns individuais estarem descatalogados e se terem convertido em raridades.
[“Status seeking”, composição de Mal Waldron, do álbum The quest (1961, New Jazz), por Eric Dolphy (saxofone alto), Booker Ervin (saxofone tenor), Mal Waldron, Ron Carter (violoncelo), Joe Benjamin (contrabaixo) e Charlie Persip (bateria)]
https://www.youtube.com/watch?v=CjPTG3tykpA
O pianista Red Garland é mais conhecido como membro do lendário quinteto de Miles Davis com John Coltrane no período 1955-58 e como um dos músicos mais requisitados para sessões de gravação na segunda metade da década de 1950 (nomeadamente nos álbuns de Coltrane como líder). Esta intensa actividade como sideman faz esquecer que Garland também gravou abundantemente na qualidade de líder, como atestam os 24 álbuns referentes ao período 1956-1962, que a Enlightenment reuniu em três caixas.
O saxofonista Zoot Sims foi ainda mais ubíquo do que Red Garland e desdobrou-se por colaborações com outros grandes sopradores, como Al Cohn, Bob Brookmeyer, Phil Woods ou Serge Chaloff. Ao mesmo tempo, o seu nome surge tão frequentemente nas listas de músicos das big bands e das orquestras que acompanhavam cantores nas décadas de 1950-60 que podemos ser levados a crer que se trataria de um pseudónimo partilhado por vários músicos. A caixa Enlightenment propõe 12 álbuns gravados em 1956-1962, onde se incluem o clássico The modern art of jazz (1956, Dawn), que conta com o trombonista Bob Brookmeyer, e dois álbuns pioneiros da fusão entre jazz e música brasileira – os dois volumes de New beat bossa nova (1962, Colpix).
[“September in the rain”, composição de Harry Warren & Al Dubin, pelo quinteto de Zoot Sims com Bob Brookmeyer, John Williams, Milt Hinton e Gus Johnson, do álbum The modern art of jazz]
O pianista Randy Weston é mais um extraordinário caso de longevidade: gravou o primeiro álbum – Cole Porter in a modern mood (Riverside) – em 1954 e ainda permanece activo – o álbum mais recente é The roots of the blues (Sunnyside), de 2013. As duas caixas Enlightenment restituem 16 álbuns do período 1955-1960, começando em Cole Porter in a modern mood e terminando com Uhuru Afrika (1960, Roulette), um álbum histórico a vários títulos: é um dos primeiros casos de incorporação de elementos da música tradicional africana no jazz e é um dos primeiros manifestos musicais em prol da luta pelos direitos cívicos – o álbum, cujo título significa “Liberdade África”, e conta com textos, lidos e cantados, da autoria do poeta Langston Hughes (um dos pioneiros da jazz poetry), cujo teor levou a que o disco fosse banido na África do Sul. A partir de 1960, a música de Weston passaria a dar ênfase às raízes africanas, e, em particular, à música de Marrocos.
[“Hi-fly”, composição de Randy Weston, interpretada pelo próprio, com Kenny Dorham, Coleman Hawkins, Wilbur Little e Roy Haynes, no álbum Live at the Five Spot, de 1959]
Atendendo à extensão da sua carreira – mais de 70 anos –, ao seu virtuosismo na trompete, à quantidade de discos em que participou – mais de 900 – e ao facto de ter sido uma das estrelas das orquestras de Count Basie (em 1948-51) e Duke Ellington (1951-59), é inexplicável que o nome de Clark Terry não seja mais conhecido. Os oito álbuns gravados em 1954-1963 e reunidos pela Enlightenment ajudam a corrigir tal omissão: entre eles destacam-se Duke with a difference (1957, Riverside), em que toca composições de Duke Ellington na companhia de alguns dos seus colegas na orquestra “ducal”– Paul Gonsalves, Johnny Hodges e Billy Strayhorn – e In orbit (1958, Riverside), uma parceria com Thelonious Monk.
O baterista Chico Hamilton é outro nome injustamente negligenciado, apesar da discografia extensa e da sua persistente busca de novos caminhos. O seu quinteto, formado em 1955, afirmava a originalidade desde logo na formação: flauta, violoncelo, guitarra, contrabaixo e bateria. Em 1958-59, a flauta esteve confiada a Eric Dolphy, que também se desdobrava pelo saxofone alto e clarinete. Em 1960, Hamilton assinou contrato com a Columbia e renovou o quinteto, primeiro com a entrada para o lugar de Dolphy do (então) jovem e desconhecido Charles Lloyd, depois com a troca do violoncelo pelo trombone e com a entrada de Gábor Szabó para a guitarra. Seria este New Amazing Chico Hamilton Quintet que gravaria vários excelentes álbuns para a Impulse!, começando com Passin’ thru (1962), que marca o limite temporal das duas caixas com 18 álbuns gravados por Hamilton em 1953-1962.
[Uma ousada abordagem a “More than you know”, um clássico de Vincent Youmans, pelo quinteto de Chico Hamilton com Eric Dolphy (saxofone alto), Nathan Gershman (violoncelo), Dennis Budimir (contrabaixo) e Wyatt Ruther (bateria), no álbum The three faces of Chico (1959, Warner Bros.)]
Há ainda caixas dedicadas ao baterista e líder de big band Buddy Rich (18 álbuns gravados em 1946-1962), ao arranjador e líder de big band Quincy Jones (18 álbuns gravados em 1955-1962), ao saxofonista e flautista Yusef Lateef (16 álbuns gravados em 1957-1962), ao flautista Herbie Mann (24 álbuns gravados em 1955-1962), ao contrabaixista e pioneiro do violoncelo no jazz Oscar Pettiford (9 álbuns gravados em 1959-1962) e aos pianistas Earl Hines (8 álbuns gravados em 1951-1961), Ramsey Lewis (18 álbuns gravados em 1957-1962) e Phineas Newborn Jr. (9 álbuns gravados em 1956-1962).
Em resumo: as caixas Enlightenment saídas até à data, embora não cubram (ainda) todas as referências incontornáveis do jazz clássico, oferecem blocos essenciais para construir uma discoteca de jazz. Uma vez que o preço é irrisório, o factor limitativo para desfrutar destes tesouros com a atenção que eles merecem será provavelmente o tempo.