Há muito que a pop identificou a Síndrome do Novo Disco dos Rolling Stones: com o melhor da obra a ficar para trás há décadas e décadas, os Stones, quando voltam a gravar originais, montam belas campanhas de marketing em que as primeiras cópias são – invariavelmente – entregues a fanáticos da banda que – invariavelmente – proclamam uma sentença que se repete há décadas:
“O melhor disco dos Stones desde 1972 [ano em que os Stones editaram Exile on Main St]”, sendo que uma semana depois da saída do novo disco ninguém – nem a banda – se lembra do nome das novas canções. Há variações, claro: alguns críticos dizem “O melhor disco dos Stones desde 1978”, data de saída de Some Girls, outros “O melhor disco dos Stones desde 1980”, que foi quando Emotional Rescue saiu, e um terceiro grupo arrisca a data de 1981, altura do parto de Tattoo You.
Qualquer uma dessas datas é válida, seja 1972, 1978 (é em Some Girls que está o estupendo disco de “Miss you”), ou em 1981 (é em Tattoo you que estão “Start me up” ou “Worried about you”), mas não é essa a questão: o que há de bizarro na Síndrome do Novo Disco dos Rolling Stones é a recorrência com Lázaro retorna à vida: sai um novo disco e é o melhor desde a boa fase, até que toda a gente esquece o mencionado novo disco, a banda entra em hibernação e anos depois volta aos originais e eis que Lázaro ressuscita novamente e o novo disco é uma prova do regresso à boa forma (o que automaticamente coloca o disco anterior na secção Provas da Má Forma dos Rolling Stones), a banda volta a hibernar anos e anos, e de novo regressa, e de novo a imprensa que FINALMENTE, EIS QUE LÁZARO ESTÁ DE NOVO EM FORMA, o que – mais uma vez – significa que afinal o último disco não era assim tão bom, e isto repete-se por décadas.
Note-se que a Síndrome do Novo Disco dos Rolling Stones não se aplica apenas aos Stones – na realidade serve para qualquer banda ou artista com uma obra longa em que, lá atrás, houve um período de intensa criatividade. Neil Young, a cada regresso, é um exemplo da Síndrome do Novo Disco dos Rolling Stones; os Radiohead — que não fazem um disco de jeito desde Amnesiac – são outro.
Agora observemos este regresso dos Strokes aos discos, ao fim de sete anos, à luz da Síndrome de Novo Disco dos Rolling Stones: claro que a imprensa está a correr The New Abnormal a 4 estrelas, e a criar aquelas teses que se criam quando se quer à viva força dizer bem de alguma coisa, que é a atividade que resta aos críticos neste era pós-crítica: uma qualquer revista escrevia que fazia sentido a banda regressar quando os EUA estão à beira de um colapso, o futuro incerto. Continuava a publicação que o nome dado ao regresso, The New Abnormal, não podia ser mais apropriado. E que, mais uma vez, eles tinham tocado em algo profundo no inconsciente coletivo.
Parece um situação clássica de Síndrome de Novo Disco dos Rolling Stones – só que o caso dos Strokes é mais complexo, antes de mais porque ainda nem sequer passaram vinte anos desde o primeiro disco, mas acima de tudo porque os Strokes andam a sofrer da Síndrome de Novo Disco dos Rolling Stones desde o segundo álbum: quando em 2003 os Strokes lançaram Room On Fire, o mundo proclamou de imediato que o álbum era a demonstração de que os Strokes estavam em grande forma – o que no fundo denunciava que ninguém esperava que houvesse mais nada depois de Is This It.
[“New York City Cops”, os Strokes ao vivo em 2002:]
Porque tudo o que podia correr bem a Is This It correu bem. Talvez não se lembrem, mas em 2001 os afortunados pelas tabelas de vendas eram os Linkin Park e Shaggy – o que para um melómano requintado é o equivalente a ganhar uma dupla lobotomia como prémio do Euromilhões. O rock decente havia desaparecido; escassos meses depois do lançamento veio o 9/11, primeiro o choque, depois a raiva e no fim o vazio – e quando se chega ao vazio precisa-se urgentemente de celebrar o simples facto de estarmos vivo, tocarmos em pessoas, termos visto o sol nascer de novo.
O mundo precisava de festa, de pinta, de alguém que entrasse na discoteca com a confiança dos eleitos, alguém para quem todas as miúdas olhassem à sua passagem – e nesse imenso vazio surgiu Is This It que, meses depois do 9/11, havia sido elevado à categoria de Salvação do Rock, uma entidade difusa que ocorre na mente de críticos musicais de tempos em tempos e, ocasionalmente, se transforma numa febre mundial. Foi o caso de Is This It, um daqueles discos acerca dos quais não se podia apontar qualquer defeito, sob pena de sermos excomungados dos restaurantes e camas que interessam.
Em 2001 eu já era um bocadinho mais velho que a geração que tomou Is This It como a salvação do rock (e já conhecia o rock todo de trás para a frente), pelo que tinha duas opiniões diferentes sobre o disco; chamemos à primeira sóbria e à segunda não-muito-sóbria: durante o dia, Is This It parecia-me um muito bem conseguido pastiche de garage rock, com a pinta dos Modern Lovers, aquelas guitarras ritmo rasgadas roubadas aos Ramones, e os ganchos de guitarra gamados aos Television – um pastiche com alguma voracidade, urgência, desejo. Mas à noite, por entre os copos, os ombros desnudos, as saias plissadas que rodavam, nas festas que DJ Kitten organizava no Triplex, no Porto (e que podem muito bem ter acontecido mais tarde, mas vai dar ao mesmo), cada canção de Is This It parecia a celebração perfeita de estarmos vivos, sermos jovens, termos corpos e – acima de tudo – estarmos disponíveis para tudo.
2001 não é 2020, de modo que os Strokes tinham um certo ar de perigo que vinha dos casacos de cabedal que usavam, dos cabelos desalinhados, das guitarras rasgadas – e que na realidade não eram propriamente ruidosas (só minimamente) e não apresentavam nada de radical – os Strokes, acima de tudo, eram uma banda de indie-pop com um talento tremendo para criar refrões em ascensão com um segundo riff diabólico por cima. Só com o tempo nos apercebemos que eram meninos privilegiados, que haviam crescido em escolas privadas – a credibilidade de rua vinha mais do rock que deles.
O que nos levou ao estranho aparato semiológico que foi a receção a Room On Fire. Segundo a tradição do rock, uma banda que surge de lado nenhum e faz um primeiro disco que explode tem, de seguida, uma montanha a subir chamada A Prova do Difícil Segundo Disco, cujo melhor exemplo é o segundo disco dos Stone Roses. Obviamente, os críticos disseram que em Room On Fire os Strokes haviam passado com a distinção A Prova do Difícil Segundo Disco; o estranho é que os termos que usaram para isso eram termos mais próximos de Síndrome do Novo Disco dos Rolling Stones. Era como se Is This It já tivesse uma década; como se os Strokes tivessem sofrido de envelhecimento prematuro. Como se já ninguém esperasse deles uma boa canção.
Room On Fire não era um grande disco nem provava coisa alguma, exceto que os Strokes eram – e são – uma banda extremamente limitada: o disco tinha quatro grandes canções (“Reptilia”, “12:51”, “You talk too much”, “I can’t win”) que, curiosamente, eram as que soavam iguaizinhas a Is This It: uma guitarra ritmo bem esgalhada, um refrão berrado a subir e um segundo riff delicioso por cima. Esse era, já agora, o grande segredo de Is This It: a conjugação da simplicidade com energia com melodia. Mas em Room On Fire já se notavam gorduras, uma produção que procurava disfarçar rugas precoces.
O que se seguiu é o que se segue sempre que uma banda ganha mais dinheiro do que o talento que tem, quando uma banda tem mais interesse na fama que na pauta: drogas, álcool, más companhias, mulheres, zangas, hiatos, maus discos recebidos com o Síndrome do Novo Disco dos Rolling Stones, sobredoses, muito marketing, mais hiatos, mais mulheres, mais zangas, mais sobredoses.
E eis-nos então em 2020 com The New Abnormal a ser recebido como um comentário sobre o estado da política mundial, isto vindo de uma banda que só teve um assunto (garotas, aqui e agora), a ser recebido como uma espécie de vórtice que capta o zeitgeist do mundo na era covid-19 (isto numa banda para quem “quarentena” significa internamento numa clínica para dependências, provavelmente pago pelos papás).
[“Bad Decisions”:]
Mas se pararmos por um instante de nos lermos uns aos outros nas redes sociais, se pararmos de comentar, se pararmos de partilhar e nos dermos ao trabalho de realmente ouvir o disco o que temos é diferente: The New Abnormal parece ter sido feito por um bando de velhos que sobreviveram a um AVC e de seguida resolveram pegar em instrumentos e fazer uma banda para resgatar a juventude; tentam fazer versões, mas como não tocam muito bem chamam àquelas imitações originais.
“The adults are talking”, com que o disco abre em tom sintético, tem um bom refrão cheio de guitarras perfeitinhas – e soa a Blondie. Tal como “Eternal summer”, um proto-funk sobre-produzido, em que Julian Casablancas canta em falsete, atividade que devia evitar – depois a canção perde-se, como se os Strokes se tivessem esquecido do que estavam a tentar criar. O refrão de “Selfless” não é tão engraçado quanto o de “Adults”, e falta-lhe um pouco mais de tragicomédia para ser uma canção mediana dos Pulp.
[“Brooklyn Bridge to Chorus”:]
Mas as coisas ficam ainda mais estranhas: ao terceiro tema, “Brooklyn bridge”, há synths por todo o lado, um tom meio glam, mas que nunca se atira de peito feito ao azeite, e que no fim soa a uma imitação melancólica dos Erasure (o que aproxima perigosamente Julian Casablancas de David Fonseca). Depois, em “At the door”, há mais sintetizadores até se tornar uma canção dos Radiohead por altura do The Bends e Casablancas cantar como Thom Yorke (como se um Thom Yorke não fosse suficiente).
O que não quer dizer que não haja boas canções: “Bad decisions”, com o seu rock de guitarras à anos 80, tipo Rain Parade, timbalões altos antes de começar a rasgar e Casablancas cantar (deprimido, como está pelo disco todo) “I’m making better decisions” é uma canção bem porreira; “Why are sundays so depressing” tem uma bela malha à Strokes do primeiro disco, e “Not the same anymore” é uma boa canção dos Walkmen.
O problema é: que banda são os Strokes, no meio destas imitações todas? É que não se trata de pegar em influências e fazer algo novo; trata-se de copiar os tiques específicos de bandas e géneros específicos.
[“At the Door”:]
Até que chegamos a “Ode to the Mets”, a grande canção de The New Abnormal: lenta, insidiosa, assente no que parece ser uma melodia de flauta sintetizada (mas será um qualquer sintetizador), cheia de tensão que nunca descamba em zanga, vai acumulando drama, entra a bateria, a “Ode” vai ficando mais cheia, a zanga começa a assomar, há uma guitarra angustiante em fundo, chegam os coros e isto sim, é uma grande, tremenda canção, pungente e adulta e feroz.
Em The New Abnormal, os Strokes ainda estão a tentar captar uma qualquer juventude que ninguém consegue ter depois dos 40, o que os levou a ser demasiada coisa, outra coisa que não os Strokes; mas por um instante, em “Ode to the Mets”, os Strokes – depois das drogas, das orgias, dos acidentes, das zangas – soam a homens adultos que já só têm uma melodia a que se agarrar.
E esses são os Strokes que precisamos de ouvir no futuro e que evitarão a Síndrome do Novo Disco dos Rolling Stones.