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A cascata de S. João nas Fontaínhas é uma das tradições da festa que se mantém, mesmo em tempos de pandemia
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A cascata de S. João nas Fontaínhas é uma das tradições da festa que se mantém, mesmo em tempos de pandemia

Rui Oliveira/Observador

A cascata de S. João nas Fontaínhas é uma das tradições da festa que se mantém, mesmo em tempos de pandemia

Rui Oliveira/Observador

Dos manjericos às sardinhas: os portuenses preparam a noite de São João possível, já a pensar no próximo ano

No S. João não haverá fogo de artifício, música ao vivo, martelos em punho e balões no céu. Sobram as sardinhas, os manjericos e a vontade de fazer a festa na rua no próximo ano, se a pandemia deixar.

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Maria enterra as quadras nos manjericos, Isabel conta as sardinhas que ainda tem para vender, Rui limpa o fogareiro antes de o encher de carvão e Joaquina chama os clientes no passeio. Os preparativos para a noite de São João acontecem de forma tímida e sem a azáfama de outros tempos. Nas ruas da Sé, dos Guindais e das Fontaínhas são poucas as bandeiras coloridas que ligam as janelas, o cheiro a sardinha não domina as noites, a música popular e o guinchar dos martelos foram substituídos pelo silêncio — muitas vezes só cortado pelo som das gaivotas esfomeadas.

Se no ano passado “não houve nada para ninguém” e a cidade ficou mesmo deserta, na noite desta quarta-feira também não se espera qualquer festa de arromba. A pandemia impossibilitou o típico fogo de artifício, a música ao vivo nos palcos e encurtou o horário de muitos negócios, por outro lado, obrigou a mais policiamento nas ruas e a menos transportes públicos. O tempo está bom e até joga a seleção portuguesa, mas o espírito, dizem, é difícil de manter. Ainda assim, todos anseiam que em 2022 o verdadeiro São João volte às ruas do Porto.

Maria Campos: “Se Deus quiser, para o ano cá estou”

Vendedora de manjericos, 66 anos

Maria aprendeu a vender manjericos com a mãe e até quinta-feira estará na Praça da República com uma banca

Rui Oliveira/Observador

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Debaixo de um toldo azul e branco, de avental na cintura com o bolso pesado de moedas e a cantarolar uma marcha popular, Maria Campos põe os óculos na ponta do nariz para ler e distribuir as quadras de papel pelos manjericos da sua banca. Vende-os há quase 20 anos na Praça da República e o jeito para o negócio herdara-o da mãe. “Comecei a vender manjericos com a minha mãe em junho na rua dos Clérigos e junto à Estação de São Bento. Somos naturais da Maia e os vasinhos vêm de plantações de lá”, diz orgulhosa ao Observador.

Senta-se na cadeira quando o movimento acalma e recorda os tempos em que o São João era “folia e alegria”. “Festejo esta noite desde que me conheço, quando era nova gostava de sair, mas naquele tempo o meu pai era muito exigente e não me deixava ir. Aos 18 anos casei e tive o meu primeiro filho, gozei muito o São João com o meu marido: íamos à Avenida dos Aliados, descíamos as Fontaínhas para ver o fogo, às vezes os meus filhos dormiam um soninho em casa e vínhamos dar uma volta de madrugada, pela fresca. Que bom que era.”

A antiga costureira fabril festeja agora a quadra de forma mais caseira, mas nem por isso perdeu a alegria de “espalhar o espírito” e na sua banca, onde além de manjericos, dos 5€ aos 30€, vende também ramos de alfazema e alhos porros. “Este ano nem podemos vender martelos, só nos deram ordem para vender manjericos para evitar o contacto. Nem alhos porros devia ter aqui, porque anda no nariz de um e de outro, mas as pessoas não os querem para a festa ou para a brincadeira, querem é levá-los para casa para enfeitar”, explica.

Vendedora escolhe as quadras a dedo e este ano lamenta que a venda de martelos não seja permitida, mas concorda com as restrições

Rui Oliveira/Observador

Os clientes são-lhe fiéis e chegam de longe, uns estacionam o carro em segunda fila para escolherem um manjerico de perto, outros confiam no bom olho da vendedora e dão-lhe carta branca para selecionar um. “Oh minha linda, este vai durar até ao Natal, vai ver!”, promete Maria a uma cliente, enquanto abre mais um saco plástico azul. Fechado o negócio, garante que os preços são os mesmos que os do ano passado e admite que as coisas “até estão a correr bem”. “Tenho clientes que não me trocam por nada, chegam de Braga, Caminha ou Lisboa, passam por várias colegas, mas só vêm aqui. Alguns até vão de férias para o Algarve e levam o manjerico com eles, como se fosse o cão, não o deixam sozinho.”

No ano passado, devido à pandemia, Maria Campos foi autorizada a vender manjericos apenas uma semana antes do S. João e a faturação “nem deu para mandar cantar um cego”. “Foi triste, mas teve que ser. O presidente lá sabe o que faz, se ele acha melhor assim, só temos de aceitar.” Um ano depois, Maria já tomou as duas doses da vacina, mas as limitações no negócio permanecem. Montou a banca na Praça da República no início de junho e dia 24 terá de arrumar tudo. “Chego aqui todos os dias às 7h30 e só saio perto das 22h, às vezes almoço uma fruta aqui de pé. Só amanhã é que terei ajuda do meu genro, porque costuma ser o dia mais forte, mesmo assim vou ter de fechar às 18h, são as regras”, diz conformada.

Faça chuva ou faça sol, Maria Campos promete estar no mesmo sítio no próximo ano. “Mesmo com o meu problema no joelho, se Deus quiser, para o ano cá estou. Faço isto por gosto, por amor à camisola e por carinho aos meus clientes.”

Isabel Pereira: “Isto está muito fraquinho, a Sé era tão linda e agora estamos aqui abandonados”

Peixeira, 65 anos

Isabel conta pelos dedos da mãos os clientes que teve esta terça-feira e lamenta que a zona da Sé esteja "abandonada"

Rui Oliveira/Observador

Vestida de preto da cabeça aos pés e de cabelo amarrado, Isabel Pereira organiza as caixas de esferovite com sardinhas da sua banca no Mercado de São Sebastião, enquanto se queixa da falta de clientes em voz alta. “Isto está muito fraquinho, a Sé era tão linda e agora estamos aqui abandonados”, desabafa. Construído nos anos 90, o mercado está a funcionar a meio gás, apenas durante a manhã, e os sinais de degradação no espaço são evidentes. Há um plano para a sua reabilitação, mas a pandemia atrasou o processo.

Peixeira há mais de duas décadas, Isabel nasceu no bairro da Sé do Porto, casou-se com 16 anos e por lá ficou até hoje. “Durante muitos anos vendi manjericos com o meu pai nos Clérigos, depois vim ajudar a minha mãe e aqui fiquei”, conta, garantindo que a zona foi “abandonada pelo presidente Rui Moreira”.

Em época de São João aproveita para fazer o negócio possível: “Estou a vender sardinha da lota de Matosinhos a 5 euros o quilo, mas a cada ano que passa é pior para nós. Os hipermercados deram cabo do negócio, agora as pessoas querem tudo rápido, para ontem.” Arruma o balcão de alumínio sem pressa e sem esconder o desânimo na voz. “Estou só à espera de uma cliente que me disse ontem que vinha e depois vou à minha vida.”

Em plena época alta Isabel, vende um quilo de sardinhas a 5 euros e vai buscá-las a Matosinhos

Rui Oliveira/Observador

Da noite de São João, “a mais longa do ano”, guarda as melhores recordações, a sardinha partilhada com os vizinhos, os bailaricos na rua até de manhã ou até mesmo os copos a mais. “A festa era bonita quando havia mais gente, a Sé era muito povoada, agora só se veem casa devolutas. Compraram isto tudo à maluca para depois recuperarem, mas turistas nem vê-los. A Covid veio estragar os planos de toda a gente.”

Tal como no ano passado, este mês “não vai haver festa” e a portuense vai mesmo ficar em casa num programa “mais modesto”, com direito a sardinhas e a pouco mais. Ainda assim, diz concordar com todas as medidas impostas pela autarquia. “Isto está mau, não está para brincadeiras. Acho muito bem que mandem as pessoas terem juízo para que em 2022 possamos sair à rua e festejar como deve ser.

Joaquina Queirós: “Vou ficar em casa muito bem descansadinha com os meus três netos”

Empregada de mesa, 66 anos

Joaquina trabalha na noite de S. João há 33 anos e recorda as longas filas de espera no seu restaurante

Rui Oliveira/Observador

“Desinfete as mãos, por favor, e depois pode sentar-se naquela mesa ao fundo”, é a frase que Joaquina Queirós repete mais nos últimos dias à hora do almoço. Está de touca na cabeça, avental vermelho e bloco de notas na mão à porta do restaurante “Lavrador”, um dos negócios que integra a zona de diversão, criada pela autarquia, instalada na Alameda das Fontaínhas até ao fim do mês. “Sou de Guimarães e faço o S. João do Porto há 33 anos”, começa por dizer ao Observador, enquanto pressiona o marido que está na grelha a tratar de uma dose entrecosto e batatas a murro.

Neste parque de diversões improvisado, com capacidade para receber até 750 pessoas, há carrosséis, esplanadas generosas e bancas com farturas, mas o silêncio impera à hora do almoço e nas colunas de som ouve-se, ironicamente, “I Will Survive”, de Gloria Gaynor. “No ano passado não houve nada para ninguém, este ano será diferente, mas sem noitada. O negócio está a correr melhor do que eu esperava, mas os jogos de futebol não ajudam porque ninguém quer vir para aqui”, constata Joaquina, acrescentando que as regras são mesmo para cumprir e por isso esta quarta-feira terá de arrumar as mesas do restaurante até às 18h. “Espero que alguns possam vir mais cedo e que no feriado isto esteja cheio”, diz esperançosa.

Em mais um ano "anormal", a comerciante diz que a qualidade não pode faltar e garante que os clientes "estão tristes"

Rui Oliveira/Observador

Habituada a gerir filas enormes de pessoas que “esperavam duas horas para comerem uma sardinha no pão ou no prato” ou a garantir que “não faltavam bebidas até às 4h da manhã”, a comerciante concorda com as regras em vigor, mas não esconde a saudade de ver os “clientes felizes”. “Sinto que as pessoas andam tristes por não se divertirem, mas neste momento não podem andar umas em cima das outras porque tem de haver distância”, diz, recordando tempos em que a realidade era outra. “Nos outros anos não estávamos rodeados por estas grades, trabalhava-se melhor, os clientes podiam ver o fogo à vontade e andavam para aí a correr com os martelos na mão. Era muito barulho, mas também muita alegria.”

Tal como no ano passado, a noite de São João não será sinónimo de trabalho para a comerciante, que até agradece o tempo passado com os netos. “Vou ficar em casa muito bem descansadinha com os meus três netos”, adianta, garantindo que sardinha assada é coisa que não terá em cima da mesa. “Ando enjoada de sardinha, estou aqui o dia todo a cheirar a grelha. Acho que vou ter ir buscar comida fora.”

Rui Barros: “Vai estar calor e até joga a seleção, mas não será a mesma coisa”

Presidente do Guindalense Futebol Clube, 45 anos

Rui já montou duas televisões para que esta tarde se possa ver o jogo da seleção no Guindalense

Rui Oliveira/Observador

“São João, santo bonito. Bem bonito que ele é, bem bonito que ele é”. É a marcha conhecida que se ouve nas colunas do Gindalense Futebol Clube, uma das coletividades do bairro dos Guindais, a um passo do rio Douro. Junto à esplanada, testam-se as luzes, limpa-se o fogareiro de ferro e servem-se cafés aos poucos clientes que ali chegam. É terça-feira e lá fora não cheira a sardinha, não há bandeiras coloridas a unir janelas, os moradores têm as portas fechadas e não se preparam para colocar as mesas cá fora para jantar. O ambiente é calmo, bem a contrastar com a acorreria de há dois anos.

A noite de São João no Guindalense é, desde 2010, um dos pontos altos do calendário do clube de bairro, onde milhares de pessoas se juntam para fazer o típico jantar volante, ver da esplanada o fogo de artifício na ponte Luís I e dançar ao som de música ao vivo até de manhã. O evento costuma garantir o orçamento do clube para o ano inteiro, graças aos sete bares abertos e aos mil litros de cerveja vendidos.

Rui Barros nasceu do outro lado do rio, em Vila Nova de Gaia, é presidente do Guindalense há 16 anos e recorda o ano que passou como “o mais triste de sempre”. “Custou-me muito ver isto fechado, sabíamos que aquela hora estavam aqui milhares de pessoas. Foi estranho, a rua estava pálida.”

É nesta esplanada que milhares de portuenses costumam ver o fogo à meia noite, uma das coisas proibidas este ano

Rui Oliveira/Observador

O responsável tinha a expectativa de em 2021 ter a “verdadeira festa” para organizar, no entanto a pandemia trocou-lhe as voltas. “Vai estar calor e até joga a seleção, mas não será a mesma coisa”, admite. Esta quarta-feira, o clube vai abrir portas às 12h, terá mais de 90 lugares sentados disponíveis sem reserva prévia, duas televisões para ver o jogo da seleção portuguesa e o atendimento será todo feito ao balcão. “As pessoas vão poder comer a sardinha assada, o entrecosto, a alheira e o caldo verde, não haverá fogo de artifício e a música será só gravada.”

O Guindalense garante não ter recebido indicações específicas da autarquia nem da PSP relativamente ao horário de fecho a adotar, por isso irá fará o habitual no modelo de desconfinamento em vigor na cidade. “Tenho de fechar até à meia noite e as pessoas podem estar cá dentro até à uma, de qualquer forma vou estar atento às movimentações durante a tarde e se achar por bem fechar o clube mais cedo, assim o farei.”

Maria Castelo: “Em em Lisboa abusam mais do que nós, aqui temos mais cuidados”

Habitante de uma ilha com uma cascata de São João comunitária, 77 anos

Maria é uma das habitantes mais antiga da típica rua de S. Vítor e em sua casa o S. João só acabava de manhã, às 8h

Rui Oliveira/Observador

No número 90 da rua de S. Vítor, na zona do Bonfim, pode ler-se, entre enfeites coloridos e um manjerico de papel: “Cascata de São João, visite-a”. A porta aberta dá acesso a uma das mais típicas “ilhas” da cidade, um tipo de habitação operária constituída por edifícios unifamiliares, ladeada por um corredor de acesso à via pública.

Na entrada, há vasos com plantas no chão, roupa lavada a secar nas janelas e bandeiras triangulares de todas cores suspensas no teto. Uns metros mais à frente, está uma cascata alusiva ao São João, com centenas de peças de barro coloridas e um pote com moedas em frente. A iniciativa acontece há mais de 20 anos pela mão da família Castelo, uma das habitantes das 14 casas desta “ilha”.

“Nasci na casa onde ainda moro, somos seis irmãos e um deles é o responsável por este projeto que anima o nosso quintal. Com o dinheiro que as pessoas deixam, ele compra todas as peças, só as figuras de Jesus Cristo e São João Batista mandou fazer em Braga. Antigamente havia também uma figura de S. Vítor, mas alguém roubou”, conta ao Observador Maria Castelo, moradoras antiga, enquanto manda a calar a sua “cadela atrevida”.

A cascata da "ilha" era visitada por muitos turistas, vindos dos quatro cantos do mundo, mas a pandemia abrandou a curiosidade

Rui Oliveira/Observador

A cascata é sempre montada durante a semana de S. João e fica aberta ao público até o dia de S. Pedro, comemorado a 29 de junho. Graças a ela, todos podem entrar na “ilha” e sentir o verdadeiro espírito bairrista portuense. Manda a tradição que Maria cozinhe massa com os miúdos do anho às 20h da véspera, à meia noite todos lançam balões e veem o fogo de artifício no miradouro, só depois disso é que são assadas sardinhas à porta das casas. “No fim da noite, faço sempre café de saco e distribuo pão com manteiga”, partilha orgulhosa.

Não fosse a pandemia, a “ilha” de S. Vítor seria visitada na noite de S. João por cerca 500 pessoas de todas as nacionalidades. “Era o fim do mundo, chegavam brasileiros, italianos, franceses, alemães e espanhóis a noite toda. Começavam por vir ver a cascata e depois ficavam a comer e a beber connosco. Alguns apareciam outra vez no ano seguinte e quando bebiam uma pinga a mais, cá ficava eu aqui com eles.”

No ano passado, apesar das restrições, a cascata ergueu-se, mas as sardinhas foram assadas no quintal, só com a família mais próxima e com pouca música. “Este ano será igual, somos 20 pessoas e nada mais”, adianta Maria Castelo, sem disfarçar o desalento. “Fico triste, tenho muita pena que seja assim, mas paciência. Já estive infetada, passei pelos cuidados intensivos no Hospital de S. João e no próximo sábado serei vacinada. Tenho medo do vírus, mas em Lisboa abusam mais do que nós, aqui temos mais cuidados.”

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