O alerta é urgente e nenhum setor escapa: caso as emissões de gases com efeito de estufa não sejam fortemente reduzidas, estará fora do nosso alcance limitar o aquecimento global a 1,5ºC. Entre 2010 e 2019, as emissões de gases com efeito de estufa atingiram os níveis mais altos de que há registo, ainda que o ritmo de crescimento tenha vindo a diminuir — o que é uma boa notícia. As conclusões do último relatório do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), esclarecem que, para limitar o aquecimento a 1,5ºC, é necessário que as emissões alcancem o seu ponto máximo antes de 2025, o que significa que temos menos de três anos para o fazer. Se o objetivo for este, de cumprir a meta de 1,5ºC, as emissões devem cair 43% até 2030 e 84% em 2050. Caso o objetivo seja o de não ultrapassar os 2ºC, então as emissões devem ser reduzidas em 27% até 2030 e 63% até 2050.
Neste documento sobre “Mitigação das Alterações Climáticas”, aprovado esta segunda-feira, o organismo científico da ONU alerta para a necessidade de “reduzir, pelo menos, para metade as emissões até 2030”, o que implicará transições urgentes no setor energético. É necessário reduzir fortemente o uso de combustíveis fósseis, melhorar a eficiência energética e utilizar combustíveis alternativos, como o hidrogénio.
Jim Skea, vice-presidente do IPCC e um dos coordenadores deste grupo de trabalho, referiu mesmo que “se queremos limitar o aquecimento global a 1,5ºC, este é o momento, é agora ou nunca”. “Sem uma redução imediata e profunda das emissões em todos os setores, será impossível” atingir este objetivo, acrescentou. Aliás, a redução das emissões de carbono terá de ser prolongada até, pelo menos, 2050.
Além de avaliar o progresso atingido no contexto das emissões, o documento aprovado avança com alguns cenários para provar que ainda é possível cumprir o Acordo de Paris — o documento que estabeleceu a meta de 1,5ºC em 2015. Esta é a terceira e última parte daquele que é o sexto relatório de avaliação científica das alterações climáticas do IPCC. A primeira parte foi entregue em agosto do ano passado, focou-se nas causas desta crise ambiental e concluiu que a ação humana é, de facto, a grande responsável pela situação atual e está a causar danos irreversíveis desde 1850. Já a segunda parte, entregue no final de fevereiro deste ano, analisou as consequências das alterações climáticas, cuja dimensão é muito maior do que o que tinha sido previsto. Em outubro, espera-se que seja publicado o relatório final que englobará todas as partes que representam quase 200 países.
Tecnologia, transportes e cidades para controlar as emissões de carbono
Há dados interessantes avançados pelos especialistas do IPCC, que reforçam a tese dos benefícios das energias alternativas. Entre 2010 e 2019, o custo da energia solar e das baterias de lítio caiu 85% e o custo da energia eólica diminuiu 55%. Esta diminuição de custos faz com que possa ser acelerada a produção de tecnologia em todo o mundo.
Associado à tecnologia, “que pode contribuir para a mitigação das alterações climáticas”, o relatório do organismo científico da ONU prevê também que aumente o uso de veículos elétricos, caracterizados pelas baixas emissões de gases com efeito de estufa, em detrimento dos veículos movidos a gasóleo ou gasolina. O setor dos transportes é fundamental para mudar o rumo do cenário climático a nível mundial e para cumprir o acordo estabelecido em Paris.
Ainda sobre tecnologia, o IPCC dá outros exemplos que podem ser utilizados em vários setores, desde a agricultura à construção: sensores, robótica e inteligência artificial. Aqui, o objetivo é que a tecnologia ajude “a melhorar a gestão de energia em todos os setores, a aumentar a eficácia energética e a promover a adoção de tecnologias de baixa emissão”.
O desenho das cidades pode traduzir-se também numa diminuição na emissão de gases com efeito estufa se, por exemplo, permitirem deslocações a pé, se tiverem uma boa rede de transportes públicos elétricos e se forem implementados espaços verdes.
No setor da agricultura, a maioria das medidas de mitigação estão prontas a implementar
Ao longo de 17 capítulos, e em mais de 3600 páginas, o organismo científico da ONU focou a sua análise em diversos setores, onde a implementação de medidas de mitigação é fundamental. A agricultura, florestas e solo fazem parte do sétimo capítulo deste dossier, sendo este um setor descrito como um dos mais importantes no contexto de redução de gases com efeito de estufa, em que o dióxido de carbono é o principal gás. A agricultura é, aliás, “a segunda maior fatia do potencial de mitigação”, lê-se no relatório. Ainda assim, a terra só pode ser parte da solução se a redução de emissões se verificar também noutros setores.
Neste contexto, a taxa de desflorestação corresponde a 45% do total de emissões, numa tendência decrescente. Ao contrário, os níveis de crescimento florestal estão, “provavelmente, a aumentar”. Para a agricultura, florestas e solo, o IPCC considera que a maioria das medidas de mitigação estão definidas e prontas a implementar. Falta, no entanto, dar esse passo.
Além da reflorestação, reduzir o desperdício alimentar, aproveitar a energia solar e eólica e o uso de resíduos orgânicos devem ser aspetos a ter em conta.
Quase metade do mundo em situação “muito vulnerável” por alterações climáticas
Olhando para os terrenos agrícolas, é também de esperar que o solo venha a diminuir ao longo dos próximos anos, já que é expectável a expansão urbana continue. E aqui, “a expansão do solo urbano é que vai determinar os padrões de consumo de energia durante décadas”, com a certeza de que a construção e modernização vão aumentar as emissões até 2030.
“Dietas ricas em vegetais e pobres em carne e laticínios estão associadas a menores emissões de gases com efeito de estufa”, alerta o IPCC, acrescentando que, neste caso, os benefícios de uma dieta baseada sobretudo em vegetais reduz a ocupação do solo e das perdas de nutrientes.
A barreira do financiamento
No total, 278 autores de 65 países e mais de 59 mil especialistas contribuíram para a realização deste documento, que centrou a sua atenção na questão do investimento financeiro, quer feito pelo setor público, quer pela iniciativa privada.
O relatório refere então que o financiamento é insuficiente para implementar medidas de mitigação, sendo o setor da agricultura o mais afetado. São os países desenvolvidos que têm mais poder para mitigar as consequências do impacto climático que o mundo já está a atravessar, tendo capital disponível. Já no caso dos países em desenvolvimento é necessário que sejam aumentadas as doações.
Sobre o investimento para bloquear possíveis catástrofes climáticas, o IPCC alerta para o seguinte: “O benefício económico mundial de limitar o aquecimento global a 2ºC é superior ao custo de mitigação na maioria das propostas”.
Ainda em relação ao financiamento, importa referir os apoios dados em relação aos combustíveis fósseis, com os especialistas a alertar para a necessidade de eliminar estes incentivos. Um decisão neste sentido “reduziria as emissões, melhoraria os transportes públicos e produziria outros benefícios ambientais”.
“Uma longa lista de promessas climáticas não cumpridas”
Durante a conferência de imprensa do IPCC, que aconteceu depois da aprovação do relatório, António Guterres, secretário-geral da ONU, fez questão de apontar as falhas repetidas nos últimos anos e criticou a inércia dos vários países em relação às alterações climáticas. Defendendo o investimento em energias renováveis, Guterres sublinhou a necessidade de “cortar, nesta década, as emissões globais em 45%” para alcançar os objetivos estabelecidos no Acordo de Paris.
Alguns líderes e empresários estão a dizer uma coisa e a fazer outra. Simplificando, estão a mentir. E os resultados serão catastróficos.”
O secretário-geral da ONU referiu ainda que as conclusões do relatório aprovado esta segunda-feira são “uma longa lista de promessas climáticas não cumpridas”. E deu exemplos sobre o que poderá acontecer se os países não colocarem as alterações climáticas como prioridade: cidades submersas, ondas de calor extremo, falta de água e a extinção de um milhão de espécies de plantas e animais.
The latest @IPCC_CH report is a litany of broken climate promises.
Some government & business leaders are saying one thing, but doing another.
They are lying.
It is time to stop burning our planet. https://t.co/xzccxqwvhE
— António Guterres (@antonioguterres) April 4, 2022
Em Portugal, os planos climáticos “não representam ainda cenários compatíveis com o Acordo de Paris”
Na sequência da publicação do relatório do IPCC, a associação ambientalista Zero falou sobre o contexto português, referindo que, ainda que o caminho seja difícil, existe esperança. Apesar de os planos nacionais definidos, como o Plano Nacional de Energia e Clima e o Roteiro para a Neutralidade Carbónica, “serem já bastante ambiciosos, não representam ainda cenários compatíveis com o Acordo de Paris”. A Zero explica, em comunicado, que estes dois planos “não permitem ainda que se atinja um aumento máximo de 1,5ºC”.
Olhando especificamente para Portugal, é então necessário “aumentar ainda mais as metas de redução nacionais” e é urgente implementar “os diversos objetivos da Lei do Clima portuguesa que recentemente entrou em vigor”, incluindo os planos regionais e municipais sobre ação climática.
Será também importante perceber que as emissões totais nacionais, sublinha a Zero, estão a diminuir. No entanto, “esse decréscimo precisa de ser mais rápido”. E aqui surgem os transportes como um dos setores que deve ser alvo de uma “atenção particular”, já que aqui a tendência é precisamente de aumento de emissões.
E Francisco Ferreira, presidente da ZERO, reforçou que “nunca houve um momento mais exigente para apostar numa forte descarbonização da economia“. “A necessidade de segurança energética junta-se à necessidade de combate urgente às alterações climáticas e é claro para os Estados o caminho a seguir com a maior urgência.”