1972. O homem já foi à Lua, a Guerra Fria chegou ao espaço. Os Beatles já não existem, Jim Morrison, Jimi Hendrix e Janis Joplin estão mortos, as flores do flower power murcharam e os Pink Floyd estão a um passo de se tornar estrelas com o álbum The Dark Side Of The Moon. Os tempos são de tensão e distopia mas, em Inglaterra, há quem se divirta. O glam rock, a mais recente sensação musical, conquista, com brilhos e androginia, todos os que são demasiado novos para ter sido hippies. A provocação vai muito para lá do efeito imediato das canções, questiona género, sexualidade, regras de conduta e moda. Por esta altura, toda a gente está mais ou menos habituada a ver homens bonitos, com cabelo comprido e ar feminino, nas capas das revistas e ecrãs de TV. Marc Bolan, dos T Rex, já é uma estrela, e antes dele até Robert Plant, dos Led Zeppelin, já tinha confundido muita gente com longos caracóis louros e camisa aberta. Mas, aquela figura maquilhada de forma estranha, com cabelo vermelho, saltos plataforma e roupas justas… É um homem? Uma mulher? Um ser vindo do espaço?
Muita gente deve ter-se perguntado isso quando viu Ziggy Stardust pela primeira vez, em 1972. Eu questionei-me, anos depois, já em plena new wave, quando vi as primeiras fotos dele naquela época, a servir de inspiração a bandas como Duran Duran ou Visage. A resposta, obviamente, estava na pergunta: Ziggy era homem, mulher e alienígena, tudo junto, ou coisa nenhuma, uma rockstar galáctica que pretendia salvar o mundo, mas acabou vítima do ego. Hoje parece um pouco tolo criar uma personagem assim para fazer um disco com aspirações de ópera rock, mas, nos anos 70, este tipo de coisas fazia muitas vezes parte do conceito, e os conceitos eram levados bastante a sério, na altura. Bowie não foi o único, ou sequer o primeiro, a inventar um outro Eu e adotar uma narrativa sci-fi, o rock progressivo estava cheio disso. A androginia também não terá sido a arma secreta de Ziggy, o próprio Bowie já era conhecido antes disso por baralhar códigos evocando, por exemplo, Marlene Dietrich nas fotos de Hunky Dory, lançado um ano antes de nascer Ziggy Stardust. Por outro lado, havia outras estrelas pop excêntricas, a usar roupa feminina e maquilhagem, mas nem Marc Bolan ou Brian Eno (então nos Roxy Music), vestidos de tigresse e com eyeliner e purpurinas, conseguiram aproximar-se do efeito de Bowie como Ziggy Stardust.
Em 1972, Bowie criou um ícone que seduziu o mundo, tomou posse do seu mentor e sobreviveu ao decreto de morte, a 3 de julho de 1973, continuando vivo até hoje. Mais do que um alter ego, Ziggy Stardust é outro Bowie. E mesmo que Bowie não tivesse feito mais nada de relevante, Ziggy Stardust iria garantir-lhe um lugar no Olimpo.
Ziggy Stardust não foi a única entidade criada por Bowie (por alguma razão ficou conhecido como O Camaleão). Major Tom, antes, e Thin White Duke, depois, são outras personas suas bem conhecidas, mas Ziggy é a única que rivaliza com o próprio criador. Tanto assim que, às vezes, toma-se The Rise and Fall of Ziggy Stardust And The Spiders From Mars como álbum de estreia de Bowie. Isso não significa que o que está para trás é insignificante (não é), mas mostra como Ziggy Stardust catapultou Bowie para o estrelato e, por isso, vale como uma espécie de ano zero.
David Bowie, nascido David Jones, tentava ser uma estrela pop desde a adolescência. Tinha 15 anos quando formou a primeira banda, os Konrads, depois passou por vários grupos pouco memoráveis, antes de começar a gravar em nome próprio. O primeiro álbum, David Bowie, saiu em 1967, sem grande consequência, o que o levou a ficar na sombra durante algum tempo, enquanto procurava novos estímulos criativos. Regressou com “Space Oddity”, a canção que apresentou ao mundo Major Tom, lançada em julho de 1969, uma semana antes da alunagem da Apollo 11. A canção do astronauta à deriva deu-lhe um vislumbre de sucesso, mas a temática foi considerada “sensível” por alguns e o single não tocou nas rádios americanas. Apesar do impacto de Major Tom, o segundo álbum também passou despercebido. Os planos de ser uma estrela continuavam adiados. Por esta altura, 1970, Bowie decidiu arranjar uma banda nova e seguir as orientações da mulher, Angela Barnett (supostamente a Angie da canção dos Rolling Stones, embora Mick Jagger nunca tenha confirmado). Angie foi determinante na construção da imagem de David Bowie como símbolo da nova cena, o glam rock. Ela percebia os tempos e como motivar atenção, gostava de se divertir e alimentou em Bowie o gosto pela moda, pelo excesso e todas as coisas provocatórias. The Man Who Sold The World e Hunky Dory, os álbuns que se seguiram, começaram a revelar um Bowie mais excêntrico, sexualmente ambíguo e com verdadeira aura de popstar, além de mais maduro e complexo na escrita de canções.
Mas Bowie tinha há algum tempo a ideia de um personagem fictício e até fez uma primeira tentativa, em 1971, ao que parece inspirado pelo “facto” de Andy Warhol ter “inventado” os Velvet Underground. The Arnold Corns eram uma banda fictícia em que um cantor bonito, sem passado, dava a cara pelas canções de Bowie. A banda não deixou grande marca mas serviu de tubo de ensaio para Ziggy Stardust e todo o seu universo.
Tanto a banda (ainda que sem o nome The Spiders From Mars), como a as canções do álbum de Rise And Fall of Ziggy Stardust…, estavam definidas desde as gravações de Hunky Dory. Bowie só teve que mudar de imagem e apresentar o conceito. Para a personalidade de Ziggy (o nome lembra inevitavelmente Iggy Pop, que ele conhecia e iria produzir em 1973), Bowie disse ter-se inspirado em Vince Taylor, um músico de rock’n’roll britânico que, depois de tomar muito LSD, começou a acreditar que era Deus. Mas podemos ver em Ziggy uma amálgama de todos os loucos do rock’n’roll. Quando Ziggy aparece pela primeira vez na televisão, o efeito é incendiário. Afirmar, numa entrevista ao Melody Maker, que é gay e sempre foi (apesar de na altura ser casado e ter um filho, o agora realizador Duncan Jones) também ajudou na controvérsia e caminho para o estrelato. Os reflexos sentiram-se, primeiro, nas vendas de discos, depois nos bilhetes de concertos. Com roupas do japonês Kansai Yamamoto, ideias do teatro Kabuki e da performance mais vanguardista, Ziggy Stardust assume em palco o seu papel de enviado das estrelas. A banda, sobretudo o guitarrista Mick Ronson, são o suporte perfeito nesta odisseia cósmica. Os espectáculos são intensos, tornam quase real a narrativa do disco e esgotam rapidamente.
The Rise And Fall Of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars, o disco, abre com “Five Years”, uma canção que dá um prazo de cinco anos para a vida na Terra, e termina com “Rock’n’Roll Suicide”, a morte de Ziggy em palco, estendendo a mão aos fãs. Entre uma coisa e outra Ziggy descobre o amor, oferece a salvação à humanidade e torna-se numa estrela rock egomaníaca que sucumbe, vítima da fama.
Bowie explicou várias vezes que criou Ziggy Stardust porque queria montar uma encenação em pudesse usar elementos de teatro Kabuki e de mimo (que tinha aprendido com Lindsay Kemp), misturadas com o que ele chamava “New York fringe music”, referindo-se aos Velvet Underground, que tinha descoberto uns anos antes, quando visitara Nova Iorque. O plano nunca foi ficar colado a Ziggy para sempre, isso estava previsto na narrativa do disco, mas o público teve outro entendimento.
Tecnicamente, o fim de Ziggy Stardust aconteceu no último espectáculo da digressão, a 3 de julho de 1973, no Hammersmith Odeon, em Londres. Antes de tocar “Rock’n’Roll Suicide”, Ziggy anunciou que aquele era o último concerto de sempre. Não foram só os fãs a ficar confusos, os músicos ficaram perplexos por serem despedidos em directo, em palco. Talvez para atenuar os efeitos da morte súbita de Ziggy Stardust, “Aladdin Sane”, o álbum seguinte, cujas canções tinham sido escritas durante a digressão americana com os Spiders From Mars, foi apresentado como “Ziggy Goes to America”. Bowie quis terminar a existência de Ziggy Stardust em Julho de 73, mas este continuou a assombrá-lo durante muitos anos.
Com o tempo, Bowie emancipou-se da sua grande personagem, mas Ziggy continuou lá, de forma quase autónoma, a servir de referência a várias gerações de músicos, punks, blitz kids, neo românticos, até góticos (a versão dos Bauhaus para Ziggy Stardust rivaliza com a original e Peter Murphy devia muito a Bowie/Ziggy na fase inicial). Ziggy serviu, e continua a servir de inspiração e modelo, na imagem e atitude, nas questões de identidade de género e orientação sexual, na fantasia e também no som e na energia, o que não deixa de ser extraordinário, para alguém cuja existência fictícia durou apenas um ano.
Musicalmente Bowie conseguiu fazer melhor, nomeadamente na fase berlinense, mas nunca se libertou da sombra. Ziggy Stardust continua vivo 50 anos depois, e não é provável que algum dia desapareça .