Liliana Fonseca é enfermeira há dez anos. Há poucos meses, antes do verão, participou num programa de intervenção e promoção da saúde mental positiva dirigido aos funcionários da Unidade Local de Saúde (ULS) de Matosinhos. Foram quatro sessões da iniciativa “Mais Por Ti”, duas horas às terças-feiras à tarde, durante um mês. Reconhece que está menos impulsiva desde então. “Temos de desmistificar o que um doente está a sentir quando nos fala mal. Já não reajo em defesa, tento percebê-lo.” O sentido de escuta está mais apurado para várias direções. “Por vezes, reagimos com impulsividade, com ideias que temos dos colegas, com as próprias expetativas.”
O contexto de trabalho é agitado, é a saúde, é a vida, dias e noites num hospital, entradas e saídas de doentes, turnos de 12 horas, as relações com os colegas e com as chefias. É um dia a dia intenso. “Temos uma sociedade muito exigente, o ambiente também, pessoas mais informadas, e é preciso gerir emoções.” E fatores de stress. Liliana aprendeu estratégias nas sessões do programa que aplica com frequência. Uma delas é parar e desfocar o pensamento quando ideias negativas se instalam na sua cabeça. Respira fundo e faz contas de multiplicar. “Fico mais tranquila e mais serena.”
Federico Sabio frequentou o programa no ano passado. A autoanálise depois de cada sessão foi e tem sido essencial para a vida profissional e pessoal do diretor do Serviço de Imunohemoterapia da ULS de Matosinhos. “Saber ouvir, saber calar, não falar por falar. São ferramentas de comunicação que têm um impacto muito grande com a equipa de trabalho.” Como responsável por um serviço e com uma equipa para gerir, as dinâmicas que aprendeu durante o programa ajudam-no a estar mais atento a certos pormenores. Se sente que algum colega não está bem, tenta logo saber o que se passa.
Foi a primeira vez que participou numa intervenção deste tipo, em que a saúde mental é abordada desta forma, em grupo, com colegas do mesmo local de trabalho de vários serviços e hierarquias. Há momentos de contacto em que dão as mãos e partilham experiências. “Identificámos o que desencadeia as nossas reações, os gatilhos das emoções, desenvolvemos a capacidade de dizer não. Trabalhamos o autoconhecimento, como somos, como reagimos perante determinados estímulos, a ler comportamentos e a linguagem corporal nos outros.”
Na primeira sessão do “Mais Por Ti, aparecem projetados num ecrã, colocado na parede, os objetivos individuais e gerais do programa. Promover o autoconhecimento e o autocuidado. Aumentar a satisfação com a vida e diminuir a vulnerabilidade psicológica. Aumentar o bem-estar, a capacidade para lidar com o stress e a resistência à doença. Melhorar a comunicação entre profissionais e capacitá-los para prestarem uma primeira ajuda em saúde mental. A equipa de enfermagem de saúde mental positiva, que promove o programa, junta grupos com um mínimo de seis e um máximo de dez participantes, depois das inscrições recebidas pela ordem de chegada. Sérgio Cunha, Sónia Rocha e Mariana Lima são os enfermeiros que coordenam as sessões. Estão ali para ouvir e para falar. O que ali é dito e partilhado não sai da pequena sala no rés-do-chão do Departamento de Saúde Mental da ULS de Matosinhos. O aviso é feito no início.
“Não é uma formação, é uma intervenção”, explica Sérgio Cunha, especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica, coordenador do “Mais Por Ti”. É um programa focado no autoconhecimento, no autocuidado, na resiliência individual, na gestão de conflitos, na capacidade de entender e comunicar emoções. “Promover os pontos fortes, aumentar a satisfação com a vida, perceber quais são as nossas vulnerabilidades, cuidar de nós”, sublinha o responsável.
“Sou a mesma pessoa. Não dá para desligar o botão”
Liliana Silva é enfermeira há 17 anos, dedica-se neste momento à investigação, foi mais um desafio profissional. Ouviu falar do programa, inscreveu-se logo que teve oportunidade, frequentou-o durante o mês de abril deste ano. “Aprendemos a dar nomes às coisas, há imensos nomes para as emoções que podemos sentir.” A encontrar as melhores palavras para definir o que se sente, a alargar o vocabulário emocional. No trabalho e na vida. É difícil separar a Liliana profissional, da Liliana pessoa, da Liliana mulher. “Sou a mesma pessoa, não dá para desligar o botão.”
O dia a dia de um profissional de saúde é habitualmente incerto e pode ser puxado em termos emocionais. No “Mais Por Ti” dão-se estratégias para enfrentar o que acontece. “Ferramentas para lidar com o stress e promover a saúde mental, aprendemos a respeitar o nosso espaço, a ter momentos de lazer, e que isso é importante.” Liliana Silva ficou satisfeita com as aprendizagens. “É um programa muito interessante, a partilha de experiências do grupo, percebemos que não somos só nós a lidar com desafios e conflitos, ajuda-nos a desconstruir preconceitos, a ter mais empatia quando estamos em relações profissionais, a tentar compreender os vários pontos de vista, a tratarmos de nós e da nossa saúde mental.” “Também é importante para mantermos a harmonia numa instituição”, acrescenta.
Nuno Mendes também é enfermeiro, tem 22 anos de profissão, tem abraçado novos desafios nos últimos anos, de coordenação e gestão de equipas. Em 2022 fez parte de um dos grupos. “Às vezes, pouco sabemos neste campo da saúde mental e do domínio das emoções, identificar o que sentimos. E andamos perdidos porque não sabemos fazer o diagnóstico das emoções”, refere. Lembra-se bem das sessões, das técnicas de relaxamento, do diagrama das emoções com a variabilidade do que se está a sentir. “Não é preto e branco, há várias escalas de emoções, ter isso presente, ajuda-nos a situar.”
“Qual foi a última vez que pensou em si e tirou uma tarde para cuidar de si?” Cândida Santos, técnica auxiliar de saúde do bloco operatório da ULS de Matosinhos, não esquece a pergunta feita numa das sessões. Pensou bastante na questão e na resposta. No ano passado, fez parte de um grupo do programa, uma colega de trabalho tinha frequentado, falou-lhe do bem que fazia sem entrar em grandes pormenores. Cândida ficou curiosa, achou que era o momento adequado, inscreveu-se. Aprendeu a olhar para si, a valorizar os tempos livres, os momentos em família. “Focava-me muito no trabalho, era a coisa mais importante, era o meu refúgio”, afirms. São 28 anos de trabalho na saúde. “As sessões ajudaram-me a perceber que temos de ter tempo para nós.” A perceber a importância do autocuidado.
Esse é um dos pontos do programa. Nas sessões, os enfermeiros Sérgio Cunha, Sónia Castro e Mariana Lima falam de várias questões: fatores de risco, fatores de proteção de saúde mental, inteligência emocional, gestão de expectativas e conflitos, autocontrolo. “O que é que as coisas significam? O que é isso da saúde mental? Em todos os momentos, és tu versus, por isso, faz mais por ti”, observa o coordenador do programa. É necessária muita atenção aos sinais de mal-estar, sublinha, à desregulação do sono, à irritação, às alterações de memória, à desmotivação, ao cansaço. E pedir ajuda.
O programa usa várias dinâmicas. A teia é uma delas e serve como apresentação de cada participante, como um quebra-gelo. Numa roda, os profissionais de saúde desenrolam um novelo de lã que vai passando de uns para os outros. Com o novelo na mão, cada um diz o seu nome e algo que gosta fazer. Depois disso, o novelo volta a circular e quem o recebe tem de repetir o que disse a pessoa que o passou. Conhece-se quem ali está, gostos em comum, caso os haja, desbloqueiam-se conversas. Outro exercício é nomear cinco pessoas para levar para uma ilha deserta e cinco que nunca seriam escolhidas. Tudo isso é trabalhado pela equipa de enfermeiros especialistas em saúde mental. Também há uma música. A canção “Happy”, de Pharrell Williams, ouve-se em todas as sessões para escutar a melodia alegre e o ritmo que dispõe bem e que dá vontade de dançar. A canção é apenas para ouvir. “A música desperta emoções, obriga a parar”, adianta Sérgio Cunha.
Um caderno, um plano de desenvolvimento, trabalhos para casa
No início do programa, os participantes recebem um caderno que os acompanha em todas as sessões e que fica como recordação para levarem para casa. Liliana Fonseca ainda hoje o usa. “Escrevo o que me causou desconforto, situações que se passaram para perceber o que realmente aconteceu, o que está bem, o que está mal, o que posso melhorar.” Prefere escrever, preencher linhas no papel. “A escrita é mais lenta do que o nosso pensamento.” É uma maneira de estruturar o que lhe sai de dentro de uma forma mais racional.
Depois do “Mais Por Ti”, começou a fazer caminhadas, regula melhor o sono, e já faz pausas nas jornadas de 12 horas de trabalho. “Deram-nos ferramentas, se não as trabalharmos, não vamos melhorar.” “A saúde mental é muito importante no nosso contexto, tal como em qualquer geração e em qualquer idade. Há fatores protetores de saúde mental e trabalhar isso com a nossa família, com os nossos amigos, com os nossos colegas, teremos menor propensão de sofrer de uma doença mental”, conclui a enfermeira.
Os momentos e as dinâmicas proporcionam períodos de introspeção, de olhar para dentro e tentar perceber o que lá se passa. Foi assim com o enfermeiro Nuno Mendes que ficou mais consciente do seu bem-estar emocional. “Tenho mais presente de quando não estou bem e faço uma análise. Isto é um processo constante de aprendizagens e que ajudam a melhorar a saúde mental”, comenta.
A área da saúde é um contexto particular. Nuno Mendes sabe bem o que isso é, o que implica, as repercussões. “Vamos criando algumas estratégias, enquanto prestadores de cuidados de saúde, num ambiente que é desafiante para gerir emoções e conflitos nas equipas com diferentes profissionais de saúde. Gerir as nossas próprias emoções e expetativas com as de outros profissionais é um desafio imenso. Por vezes, andamos tão absorvidos que descuidamos a saúde mental, não paramos e pensamos para termos consciência da situação”, diz o enfermeiro.
Sérgio Cunha, coordenador do programa, realça que é essencial olhar para dentro e olhar para o lado, para ajudar e ser ajudado. Na saúde, dar tudo e, mesmo assim, sentir culpa por algo que não correu bem, é uma sensação frequente. “Trabalhamos a satisfação pessoal, a perspetiva otimista. Atitudes psicossociais, a empatia, a compaixão. O autocontrolo, a gestão das emoções, a tolerância à frustração, aceitar que não controlamos tudo. A autonomia, a autorregulação, a autoconfiança. A resolução de problemas, a capacidade de análise, a flexibilidade, a adaptação. E habilidades de relações interpessoais.”
É um programa cirúrgico que funciona em articulação com o Serviço de Risco, com o Gabinete de Saúde Ocupacional, em colaboração com o Departamento de Saúde Mental. Há um ano, ganhou o “SNS Awards” na categoria de Cultura Organizacional, destacando-se entre os projetos candidatos, por promover a saúde mental dos colaboradores de uma instituição de saúde, através de, salientou-se, “uma jornada orientada de autoconhecimento e automotivação, que se tem revelado um catalisador para o aumento da felicidade organizacional.” O público-alvo é numeroso: são mais de 2800 funcionários numa ULS que integra um hospital central, o Pedro Hispano, e mais 12 unidades de saúde familiares, duas unidades de cuidados de saúde personalizados e quatro unidades de cuidados na comunidade.
O programa começou em outubro de 2018, esteve suspenso durante a pandemia, de março de 2020 a abril de 2021. Até ao momento, recebeu 456 inscrições, feitas internamente na plataforma do programa, participaram 289 funcionários distribuídos por 34 grupos, maioritariamente do sexo feminino: 271 mulheres e 18 homens. Mais de metade dos participantes são enfermeiros, 156 do total, 41 assistentes operacionais, 30 assistentes técnicos, 22 médicos, 15 auxiliares de ação médica, 12 técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, sete técnicas auxiliares de saúde, dois gestores hospitalares, duas nutricionistas, uma assistente social, uma assessora de imprensa.
Grande parte dos participantes tem 40 ou mais anos. Quase metade, 45%, está na faixa etária dos 40 aos 49 anos, 31% dos 50 aos 59 anos, 14% dos 30 aos 39. Nos extremos, estão as percentagens mais pequenas, 4% têm mais de 60 anos, um por cento menos de 21. Em relação à experiência profissional, 32% dos participantes têm entre 21 e 30 anos de serviço e 26% de 11 a 20. Seguem-se os profissionais de saúde que estão a começar, 11% com menos de um ano de trabalho, 11% entre um e cinco anos de serviço. Com 8% estão dois grupos, os que têm entre 31 e 40 anos de serviço e os dos seis aos 10 anos de trabalho.
Sérgio Cunha garante que os ganhos são surpreendentes, mais conhecimento, mais consciência de si e dos outros. “É quase um grito de revolta, em muitos momentos do SNS, temos de fazer alguma coisa por nós e ver se quem está ao nosso lado precisa de ajuda. As pessoas são levadas a pensar que não é possível dividir as várias dimensões da vida.” É importante perceber quais são os gatilhos emocionais e aprender com isso. “As pessoas não foram ensinadas a traçar limites”, observa o enfermeiro.
Federico Sabio, médico há 24 anos, refere que as sessões criam “um certo grau de empatia e proximidade” ao longo das semanas. “O programa é muito enriquecedor, há uma mistura de diferentes realidades, pontos de vista, experiências, de diferentes responsáveis da mesma instituição.” Em seu entender, a diversidade do grupo é uma mais-valia e o trabalho à volta da capacidade de entender e comunicar emoções essencial para encarar dias e noites exigentes em termos profissionais. “Essas dinâmicas puxam muito pela fibra de cada um”, adianta. “Num ambiente hospitalar, médico, há coisas que não correm bem, más notícias que temos de dar, e trazemos a mochila de casa.”
Cândida Santos, técnica auxiliar de saúde do bloco operatório, gostou da interação da equipa de enfermeiros, das dinâmicas, dos assuntos abordados, do caderno dado no início em que ia fazendo os trabalhos de casa, relatando situações, o que fazia nos tempos livres, o que lhe dava tranquilidade. “Temos uma imagem nossa, o reflexo do espelho, e é importante perceber que não somos tão maus como às vezes pensamos, que o autoconhecimento é fundamental, que a empatia também.” Também ficou agradada com a diversidade do grupo. “Ali não é o médico, não é o enfermeiro, é a Cândida, é a Teresa, é o João.” Nessas oito horas, parou para pensar. “O programa fez-me crescer um bocadinho, a entender algumas coisas, deu-me ferramentas para utilizar.” Aprendizagens que não esquece.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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