Também a vida se desenrola numa espécie de palco: em tom assertivo, é dessa forma que Peter Wächtler apresenta o seu trabalho, centrado nos últimos 15 anos de produção artística. Em simultâneo, estamos perante um diário íntimo de vivência, que nos revela uma parte da sua biografia, bem como uma crítica à criação artística contemporânea. Numa viagem ao universo singular e cartoonesco deste artista alemão, nascido em 1979, cabe um mundo de referências pop, mas também eruditas, que vão da literatura ao cinema. Um livro em aberto, por vezes disseminado, que se materializa em “A Life on Stage”, a sua primeira exposição em Portugal, que abre ao público esta sexta-feira, dia 20 de janeiro, na Culturgest, em Lisboa.
Entre a fantasia e a fábula, o conjunto de obras que ali se conjugam revelam a melancolia, a ironia e o humor como características indissociáveis do seu trabalho, que deambula por diferentes media. Da escultura ao filme, passando pela pintura e pela ilustração, entramos num espaço repleto de personagens ficcionais, humanas e não-humanas (ainda que antropomórficas), que deixam transparecer uma angústia existencial do seu próprio criador. Funciona, porventura, como crítica às sociedades capitalistas e ao declínio do industrialismo, ainda que Wächtler descarte à partida um pendor ideológico ou de análise sobre a realidade em que vivemos.
Com curadoria de Bruno Marchand, a exposição surge no seguimento de outras que a Culturgest tem vindo a produzir nos últimos anos, e por onde passaram nomes como Samson Kambalu, a dupla Daniel Dewar & Grégory Gicquel e Mattia Denisse, cujos trabalhos surgem ainda como desconhecidos para o público nacional. “Todas estas mostras têm algo em comum, isto é, a propensão para o humor e o non-sense”, explica o curador, realçando a obra de Peter Wächtler como uma experiência de comunicação que não é direta, mas que por isso mesmo conduz a uma forma de fruição crítica e imaginativa. Uma expansão de horizontes, na qual é fácil fazer ligações de referências, ainda que o artista se mostre como figura misteriosa, onde tudo parece fabricação, quiçá por força da era de convergência que mapeia a realidade atual.
Mitos e realidade
Na hora de entrar no campo artístico em que se define, importa, primeiramente, destacar o papel da literatura nas obras plásticas e visuais que se apresentam. Além do ofício como escultor, pintor e cineasta, o artista natural de Hannover, é responsável por uma obra literária, onde impera o conto e a micro-história, numa abordagem fragmentária e muitas vezes aforística. Nas temáticas abordadas predominam as “anedotas, histórias e mentiras que se formam em torno de um determinado tópico”, desencadeando rotineiramente especulações sobre o conteúdo autobiográfico da sua obra. Entre mitos criados e a realidade, são vários os dados que conferem um tom humorístico à forma como Peter Wächtler surge no panorama artístico.
Sobre o artista, que nasceu numa Alemanha dividida, ainda antes da queda do muro de Berlim, conta-se que terá tido uma primeira exposição aos 12 anos e que um dono de uma marca de bebidas terá comprado todas as obras, ainda antes da exposição abrir portas. Ficção assumida por Wächtler que foi, entre outras coisas, autor de catálogos de exposições e figurante no filme de 2008 “Valquíria”, protagonizado por Tom Cruise. Tal como outros artistas que o precedem, nomeadamente o seu compatriota Joseph Beuys, realça-se a ambiguidade nos factos biográficos que mapeiam o seu percurso, aspeto que se reflete nas suas peças, onde não importa a época ou o espaço que as definiram, mas sim a forma como sugerem um ambiente performático e inventivo.
Recorrentemente, surgem ao longo da exposição figuras antropomórficas de ratos (na sua obra existem também serpentes e diversos insetos), assim como seres fantasiosos, como um dragão e um vampiro. “As minhas referências são mainstream, não desvendam nenhum segredo que só eu possuo”, diz ao Observador, admitindo que o cinema e a televisão foram importantes na formação de uma cultura visual e literária. Nesse espectro, a obra de Wächtler suscita ecos de Franz Kafka, Lewis Carroll, John Carpenter ou David Cronenberg. É onírica, por vezes surrealista e referencial. Mesmo não sendo situável numa época fazem lembrar algumas séries de animação que marcaram diferentes gerações. Mas no caso da abordagem de Wächtler carregam um lado mais sombrio e íntimo da vida humana.
Através da repetição – outra chave para desvendar o que cria – vislumbra-se na obra “Untitled (Rat)”, de 2013, uma animação 2D onde se vê um rato, com comportamento humano, que deambula num quarto. A voz do artista alemão escuta-se ao longo do vídeo, que se repete em loop para acomodar um texto seu em que fala de primeiros amores, consumo de substâncias e da vida quotidiana. “É uma espécie de confessionário e diário íntimo”, explica o artista durante uma visita à imprensa. Uma forma de apresentação pública que se estende também às suas esculturas, em bronze e argila. Nestas vemos animais, objetos banais como um boné, ou um conjunto de aviões em gesso – um boeing, um avião militar dos anos 1920 e um zepelim. Nos espaços que estas aeronaves habitualmente reservam para insígnias, logótipos ou decoração, o artista pintou, a aguarela, figuras de feiticeiros ou escritores em pleno ato criativo.
A imortalidade num vampiro
Por entre mais um conjunto de esculturas em gesso em que se representam bustos de figuras humanas reminiscentes de diferentes períodos históricos, “A Life on Stage” apresenta “Untitled (Vampire)”, obra recente de 2019, em que o próprio artista se representa como vampiro. Como uma criatura morta-viva e imortal que vive do sangue de outros, evidencia-se um mundo de desejos e luxúrias. Paira-se num reino entre a vida e a morte e tal como a vida de um vampiro também a arte é predatória, parasitária, narcisista e mesquinha. A crítica é implícita, mesmo que aquilo que se vê seja uma espécie de filme kitsch sobre a vida de um vampiro frustrado por o ser.
Tendo em conta o conjunto de obras que ali se reúnem, Bruno Marchand salienta “a ligação com a fábula”, quase sempre presente. “Embora ele tenda a fugir dessa conceção, é um dos territórios da sua obra que aparecem nas esculturas e nos filmes e que qualquer pessoa reconhece”. Numa zona de remissão para o período da infância, a ideia de jogo e brincadeira, o curador diz, no entanto, que é difícil encontrar uma narrativa linear no que cria. “Sempre que parece existir algo de estável, ele faz uma inflexão, e uma desconstrução do discurso moralista, a favor de um relato das nuances subtis das neuroses particulares que qualquer um tem, nomeadamente de sermos bem-sucedidos na vida ou no trabalho”.
Numa das últimas salas, duas esculturas sugerem dois atores em pose de vénia, como se o final do espetáculo se tratasse. Ao Observador, o próprio artista diz tratar-se de uma extensão do que tem feito nos seus filmes. “Mesmo as esculturas podem ser performáticas, como se tivessem sido retiradas de um ecrã e ficassem estáticas”, sintetiza. Regressa-se à ideia de performance e de uma vida representada em palco. Numa época que estiliza outras épocas, da antiguidade clássica até à conceção de uma ideia futuristas, sobretudo devido ao impacto da indústria audiovisual, a obra Peter Wächtler apresenta indivíduos que se movem sem rumo aparente entre uma série de papéis desempenhados. Identidades que se revelam igualmente na última obra desta exposição, “Like a Palace”, cuja versão final conhece a sua primeira apresentação nesta mostra.
Em analogia, diz, podemos entender a sua obra como um “conjunto de incoerências”, tal qual as que podemos ver num filme de época produzido atualmente, apinhado de erros históricos. Como se dessem corpo à ansiedade coletiva e apontassem o caminho do sonho, da imaginação e da alegoria como as vias certas para uma redenção provisória, as suas obras são também inesperadas e por isso mesmo suscitam uma curiosidade quase infantil. “Acho que é inevitável que isso aconteça, quando combino estas imagens e textos não é possível entrar no binário entre high art ou low art. O que pretendo está num espaço situado a meio, fluído e adaptável, que seja capaz de pôr as pessoas a imaginar.” A vida também é performance e neste caso é máscara do artista que cai para que se revele a sua verdadeira, mas sempre ambígua, face.