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HUGO AMARAL/OBSERVADOR

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Escola de calceteiros: fazer magia com pedrinhas

A Câmara Municipal de Lisboa tem uma escola de calceteiros há 30 anos. Ali se cruzam pessoas em busca de uma nova vida, um saber com quase dois séculos e as dúvidas sobre o futuro da arte.

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Bem cedo comecei

Co martelinho na mão

Mas logo m’apaixonei

P’las pedrinhas no chão

Tony Calceteiro nunca teve a notoriedade de outros ‘Tonis’ da sociedade portuguesa, mas nem por isso deixou de ser tão artista como eles. Munido do martelinho que eternizou nos muitos versos que escreveu, António Mateus Marques andou quase meio século debruçado pelas ruas de Lisboa a deixar pedrinhas no caminho de quem passava. Brancas, pretas, rosa. Em cubo, em hexágono, em triângulo, como calhava. O chão que os lisboetas pisam diariamente tem, quase de certeza, o dedo de Tony Calceteiro, que além de mestre com as pedras ainda mostrou que era mestre com o lápis. À portuguesíssima arte da calçada dedicou Tony muitos poemas.

Das noites que eu perdi

Estão à vista belos florões

Em pedras que eu parti

Só dinheiro eram milhões

Sou um ourives do chão

Tony já andava metido nesta vida há quase trinta anos quando a Câmara Municipal de Lisboa, por iniciativa do então presidente Krus Abecassis, decidiu criar uma Escola de Calceteiros. Foi em novembro de 1986. Foi também nessa altura que, mesmo sem os lisboetas e quem anda na cidade se terem apercebido, Jorge Duarte entrou na vida deles. Ele fazia parte do lote de quase trinta alunos que estrearam a escola e que ficaram a trabalhar para a autarquia, cuidando do chão da capital.

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Quase trinta anos depois desse curso inaugural e com 28 de casa, Jorge Duarte é o mestre calceteiro responsável por ensinar aos atuais alunos a nobre arte de assentar pedrinhas com sentido. Quem o ouvir falar hoje quase não acredita que tenha vindo parar à profissão por acaso. “Eu pedras só quando era miúdo, a atirarmos uns aos outros”, diz, no estilo gingão que o caracteriza, enquanto ostenta o mais acabado “sorriso Colgate”. As circunstâncias da vida, no entanto, acabaram por empurrá-lo para aqui. No início e durante anos, um curso da escola de calceteiros dava direito a emprego na câmara lisboeta. Hoje em dia já não é assim, mas Jorge e muitos outros vieram aliciados com essa perspetiva.

Jorge Duarte passou grande parte da vida debruçado sobre o chão de Lisboa (Fotografia: HUGO AMARAL/OBSERVADOR)

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Quem por estes dias frequenta a escola de calceteiros, na Quinta Conde dos Arcos, nos Olivais, sabe que empregos para a vida são miragem que aqui não se alcança. O profissional da calçada continua a ser muito requisitado por particulares (em trabalhos sobretudo pontuais), mas as entidades públicas, como a Câmara Municipal de Lisboa, preferem fazer outsourcing a privados do que ter uma equipa de efetivos.

Os calceteiros da Câmara Municipal de Lisboa

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Segundo os dados da própria autarquia, a brigada de calceteiros a trabalhar diretamente para o município tem descido drasticamente.

193oMais de 400

1980Menos de 30

1986 Fundação da Escola de Calceteiros

2006 – Número de calceteiros formados na escola atinge os 112

2014 – Número de calceteiros formados na escola atinge os 148

2016 – Número de calceteiros formados na escola atinge os 190

2016 – Câmara Municipal de Lisboa tem brigada de 18 calceteiros

O curso, que está atualmente a decorrer na escola, começou em abril do ano passado e só vai acabar em novembro. No início, chegaram 20 pessoas à Quinta Conde dos Arcos — cujos nove hectares são partilhados também com a Escola de Jardinagem da câmara. Hoje em dia, só já há seis formandos. “Isto é duro, é preciso ter gosto”, diz Vítor Graça. Apesar de ser apontado pelo formador Jorge Duarte e pelos outros responsáveis da escola como um dos alunos mais interessados e entusiasmados do curso, o calmíssimo tom de voz não o deixa adivinhar. A maioria dos colegas chegou através do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), que diz aos desempregados para fazerem o curso ou perdem o subsídio. Ele não. “Eu dei-me como voluntário para aprender a arte. Porque acho engraçado e vejo muito trabalho para fazer.”

Mesmo agora que a câmara de Lisboa decidiu substituir a calçada por outro tipo de pavimentos em muitas zonas da cidade? “Em termos de acessibilidades estamos a léguas da Europa”, admite Vítor, que ainda assim não vê qualquer incompatibilidade entre o uso da calçada e a fruição dos passeios por pessoas com mobilidade reduzida. “Então não é compatível? Nós aprendemos a fazer isto aqui na escola.” Para ele e para Jorge, é tudo uma questão de qualidade. “Há os calceteiros e os tapa-buracos”, afirma Vítor com firmeza. Hoje em dia, grande parte do que se faz nos passeios da capital é obra de operários não qualificados, geralmente contratados por empreiteiros, que de calçada percebem pouco ou nada. Como quando se repara ou substitui um tubo de gás, eletricidade ou água.

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Fala-se tanto em preservar,/ Mas disso não vej’eu nada!

Apesar de ter entrado rapidamente para a lista das tipicidades nacionais, a calçada portuguesa é uma invenção relativamente recente. Deve-se este tipo de pavimentos a Eusébio Cândido Furtado, o governador de armas do Castelo de São Jorge, que em 1842 mandou calcetar a parada do quartel que ali existia. A opção do tenente-general recaiu sobre pedras brancas e pretas mais ou menos iguais, com as quais desenhou um padrão de ondas. Esse padrão era semelhante ao que hoje se encontra no Rossio, por exemplo.

Eusébio sonhou, mas a obra nasceu do esforço dos reclusos do Castelo (onde, à data, existia uma prisão). Os “grilhetas”, como ficaram conhecidos por terem de trabalhar agrilhoados, foram os primeiros calceteiros daquilo que mais tarde se tornaria a calçada portuguesa. Seriam também reclusos os responsáveis pelo calcetamento do Rossio, poucos anos depois, com o tal padrão ondulado que o caracteriza. No fim do século XIX, já vários locais do Chiado tinham este novo pavimento, que depois se alargou a toda a cidade por despacho camarário.

Em 2013, a autarquia começou a reverter este processo. O Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa definiu um conjunto de medidas para tornar a cidade mais acessível, entre as quais constam mexidas no tipo de pavimento usado. Segundo os técnicos camarários que elaboraram o documento (aprovado por todas as forças políticas), “defender a ‘calçada portuguesa, mas bem executada’ no âmbito de projetos de criação ou reconstrução de pavimentos é uma pretensão que, sendo simpática em teoria, é pouco ou nada viável na prática”. A equipa critica a generalização da calçada pela cidade, alegando que “esta não é de todo adequada” em “ruas inclinadas” e que a grande procura de pedra levou à “utilização de materiais de menor qualidade”.

Outra coisa que os técnicos salientam, e que diz respeito diretamente aos calceteiros, é que o uso generalizado das pequenas pedrinhas “aumentou os volumes de trabalho e reduziu os tempos de execução e os preços de mercado, desencorajando o uso de mão-de-obra especializada”. É a tal diferença entre os calceteiros e os tapa-buracos de que Vítor falava.

Como é possível esperar que pedra de cada vez menor qualidade e mais mal cortada, nas
mãos de operários cada vez menos qualificados, se transforme, como que por magia, na
calçada artística de antigamente?
Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa

Atualmente, por ser um trabalho fisicamente exigente e usar uma matéria-prima relativamente cara, assentar calçada não é barato. Num pavimento de pedra branca — a maior parte dos passeios de Lisboa e de outras cidades portuguesas –, um calceteiro consegue assentar cerca de dez metros quadrados por dia. Cada metro quadrado de pedra (calcário) fica à volta dos 2o euros, pelo que um dia de trabalho ronda os 200 euros. A isto acresce a mão-de-obra, perto de 75 euros por calceteiro. Os pavimentos em mosaico — a calçada artística — são significativamente mais caros, pelo trabalho que envolvem. Um calceteiro só consegue fazer dois a três metros quadrados por dia e a pedra preta é mais cara do que a branca. Os preços oscilam entre os 90 e os 140 euros por metro quadrado.

Perante uma cidade de passeios esburacados e escorregadios, onde os obstáculos se multiplicam e os idosos caem com relativa facilidade, a câmara optou por trocar a calçada de calcário por lioz e blocos de cimento branco. Em ruas como a de Alcântara, da Vitória ou a Abade Faria, isso já aconteceu, aparentemente com a satisfação generalizada de moradores e comerciantes. Mas essa é uma solução à qual estes alunos também torcem o nariz.

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Trabalho o preto e o branco

Vítor ri-se. “Caso raro, hã?” Sim, parece que sim. Antes de se vir meter a aprender a fazer calçada, Vítor “estava emigrado” e “tinha emprego na serralharia”, mas alguma coisa o chamou para aqui. “Estava com a coisa da calçada, bateu-me, pim, foi carolice.”

Ao contrário de Vítor, Pedro Pinela, outro dos formandos, não veio por gosto. Aos quarenta e muitos anos, “só tinha a quarta classe” e por isso decidiu que estava na hora de “aprender uma nova profissão”. Os dezoito meses de curso de calceteiro, nesta escola dão equivalência ao sexto ou ao nono ano de escolaridade. Além de aprenderem as técnicas de calçada propriamente ditas, os alunos têm também formação teórica sobre o assunto e ainda disciplinas de âmbito mais vasto: Português, Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC), Inglês, Matemática para a Vida, Cidadania e História, entre outras.

Pelas surpresas que a vida vai pregando aos homens, Pedro viu-se obrigado a trabalhar quando ainda era muito novo. “Meti-me nisto da construção, era ladrilhador, pintor…” Depois de já ter feito o 6º ano nesta escola, voltou para fazer o 9º. Tal como os outros, recebe pouco mais de 200 euros de ajudas de custo por mês na esperança de que, no fim, o esforço compense. “Dá-me para a prestação da casa, a mulher tem de trabalhar para o resto”, diz, com um sorriso amarelo. “Espero bem que haja uma luz ao fundo do túnel. Às vezes estamos aqui presos, aparece um trabalho e não podemos ir.” Os colegas que Vítor e Pedro tinham no início do curso desistiram por isso mesmo. Em biscates de dois ou três meses conseguiam ganhar o que aqui ganhariam em dezoito, pelo que preferiram abalar.

Quando vejo o vil cimento,/ Nos passeios da capital

“Gostava que amanhã estes homens fossem para uma junta ou para a câmara e eu passasse na rua e reconhecesse o trabalho deles”, diz Jorge Duarte. Há um truque para identificar o trabalho de um calceteiro específico, quando eles optam por isso. Tal como num quadro, um mosaico de calçada pode ter a assinatura de quem o fez. Trata-se de uma pedra com um formato específico, escolhido pelo artesão. A assinatura de Jorge Duarte é um coração, que ele faz quase num abrir e fechar de olhos.

Vítor também tem uma assinatura, que estreou num painel com a cara de Fernando Pessoa de que já só há fotografia — o original desfez-se quando estava a ser mudado de lugar. Entretanto, o aluno já teve oportunidade de deixar o seu “V” numa outra obra: um painel onde está escrito “bem-vindo” em japonês. Feito para uma exposição em Tóquio, demorou dez dias a executar.

fernandopessoacalcada

A assinatura de Vítor é aquele “V” branco ao canto esquerdo da imagem

Trabalho no estrangeiro é coisa que não faltou nunca a Jorge Duarte nos últimos 28 anos. Já esteve na Venezuela, na Colômbia, no Brasil, na Bélgica, na Catalunha… Uma das histórias mais curiosas que recorda passou-se na Holanda. “Há aí uma holandesa que quer falar contigo”, disseram-lhe certo dia. Falaram e Jorge ficou espantado quando ela lhe propôs ir passar uma semana a Poortugaal, no sul de Roterdão, para construir duas campas. Num dos chãos da quinta dos Olivais está uma versão em miniatura desses monumentos funerários, unidos entre si por uma flor-de-lis de calcário preto.

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Urbanistas do futuro,/ Sejam a nossa salvação

Quando Jorge se iniciou na profissão, os mestres que o ensinaram apostavam entre eles que não cabia uma mortalha de cigarro entre duas pedras, tal era a perfeição que tentavam imprimir a cada trabalho.

É esse mesmo rigor que o formador tenta passar aos alunos. “Gosto daquilo que faço. Sou rigoroso. Sou vaidoso. Não sei trabalhar depressa, gosto de fazer as coisas como deve ser”, diz, enquanto, com uma facilidade de mestre, lasca uma pedra exatamente no sítio que quer. Os formandos nem sempre pensam ou executam da mesma forma. “Fico revoltado comigo mesmo”, admite.

A mesma revolta parecia sentir Tony Calceteiro, que nos seus poemas (aos quais fomos roubar os subtítulos deste trabalho) algumas vezes lamentou aquilo a que chamava a má sorte da calçada, à mercê de políticos e de modas. Para já, a atual câmara promete proteger a calçada artística e só remover a outra. Que isso não seja o princípio do fim, é o que na Quinta Conde dos Arcos se deseja.

Lembrai-vos desta arte,

Penso que tem defesa!

Aparece em toda a parte,

Pois ela é bem portuguesa.

Fala-se tanto em preservar

Mas disso não vej’eu nada!

Pois a arte de calcetar

É das mais desamparadas.

Tenho fé! Não fico duro!

Ponho em vós meu coração.

Urbanistas do futuro,

Sejam a nossa salvação!

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