Reportagem em Barcelona do nosso enviado a Espanha
“O Partido Popular? Nunca mais! Fora das nossas vidas!”
Não é preciso mais para se perceber ao que vem o Podemos nas eleições legislativas que se realizam no próximo domingo em Espanha. E também não é preciso mais para que uma praça com centenas de pessoas comece imediatamente a aplaudir, a cantar e a gritar. “Sí, se puede!” e “Remontada! Remontada!” são expressões que se intercalam na boca daqueles que, nos últimos dias, ganharam novo sopro de esperança num bom resultado eleitoral do partido de Pablo Iglesias, que depois de andar pelas ruas da amargura nas sondagens, começou a cavalgar e agora está em condições de poder ser a segunda força política do país.
O cenário é a Plaça Major de Nou Barris, uma zona de Barcelona habitada tradicionalmente por obreros, operários fabris, mecânicos, caixeiros — gente trabalhadora, em suma. Este bairro, de prédios altos e de paisagem bem diferente do que se encontra no centro da cidade catalã, foi o único em Barcelona onde, nas eleições autonómicas de 27 de setembro, ganhou o Ciudadanos. Foi também aquele que, nas autárquicas de maio, deu à lista da atual presidente da câmara (apoiada pelo Podemos) a segunda maior votação do município. Um aparente paradoxo que não faz confusão a quem cá mora.
Em pé, junto de um repuxo, de olhos postos no palco montado à frente de um edifício que já foi um hospital psiquiátrico, Josep e Nùria assistem ao comício de encerramento do En Comú Podem, a coligação de partidos de esquerda que o Podemos uniu para se apresentar a votos na Catalunha (não é caso único, também na Galiza e em Valência o partido optou por não aparecer sozinho). “Fazem uma política mais coerente, falam mais ao povo”, explica Josep quando lhe perguntamos porque estão ali. Este casal de meia-idade está relativamente longe da plateia do comício e não irrompe em aplausos entusiásticos sempre que há uma frase que fica no ouvido. Limita-se a ouvir. “O Podemos é o partido que defende mais os trabalhadores”, acrescenta Nùria. Os trabalhadores como eles e como os muitos milhares de migrantes que vieram de outras regiões de Espanha para a Catalunha em busca de melhores condições de vida. É fácil encontrar aqui pessoas da Galiza, da Andaluzia e das Astúrias.
Juan Gutiérrez, por exemplo, é andaluz de Huelva, mas vive em Nou Barris desde os 13 anos. Sentado num local onde nem sequer se veem os protagonistas do comício a discursar, ouve tudo com muita atenção. Apresenta-se como um homem de esquerda, mas apressa-se a dizer que acredita “mais nos atos do que nas palavras”. Por isso, a cada frase de entusiasmo para com o que o Podemos defende, acrescenta outra de contraponto. “Encontrei pessoas que tinham uns bons ideais e depois mudaram porque se venderam”. Mecânico reformado, desde cedo esteve ligado ao movimento sindical e sempre se considerou um socialista. Mas os socialistas que hoje se apresentam como tal (o PSOE) não o convencem. “Entre a população operária há muita desilusão com os políticos, que nunca cumprem. O PSOE não cumpre com os seus ideais porque há muitos interesses ocultos”.
No bairro onde nasceu o Ciudadanos
Sem ser preciso dizer-lhe nada, Josep começa a avaliar cada um dos partidos que disputam as eleições no domingo. O primeiro que ataca é o Ciudadanos. “É uma cópia ao Partido Popular!” Há menos de três meses, quando foram as autonómicas, a maioria dos vizinhos não pensou assim. A justificação para isso sai da boca de Nùria: em Nou Barris, a maioria da população fala castelhano e não catalão, a língua que o Podemos escolheu para fazer ali campanha. Além disso, acrescenta Josep, nenhum partido soube puxar os “freaks e as tribos urbanas” para a sua causa como o Ciudadanos. “Eles sabem mentir”, deixa no ar, enquanto acena significativamente com a cabeça. Se os freaks mudaram de ideias partidárias é difícil perceber (a coisa mais fora do comum que aqui se vê são dezenas — dezenas — de pessoas com cães ao lado na plateia), mas a candidatura parece ter aprendido a lição linguística: houve discursos em castelhano, catalão, galego e até inglês.
A animosidade de Josep para o Ciudadanos não é rara entre os apoiantes do Podemos, que desconfiam que aquele partido não representa uma mudança verdadeira do sistema político espanhol. Mesmo que, logo à partida, o Ciudadanos tenha uma particularidade quase exclusiva: nasceu, cresceu e cimentou-se em Barcelona. Foi noutro bairro obrero da cidade, a Barceloneta, que veio ao mundo há 34 anos o líder do partido naranja, Albert Rivera. Por lá, contudo, grande parte das pessoas encolhe os ombros ao ouvir falar do homem cuja cara está agora espalhada por milhares de cartazes em todo o lado. “Ele nasceu numa casa ali naquela esquina, mas foi-se embora com poucos anos”, despacha Isa de las xuxes, como pede para ser identificada. Xuxes são gomas e Isa vende-as na Barceloneta.
É um bairro pobre, antigamente ocupado por pescadores e ainda hoje pelas classes mais desfavorecidas da cidade. Aqui, as casas são geralmente pequenas e antigas, a precisar de muitas obras. Uma Barcelona que não vem nos guias turísticos e que, por isso, se tornou atração para os novos turistas, os que procuram the real thing. Problema? Para alojar turistas, os proprietários começaram a expulsar os moradores. “Eu tinha uma casa arrendada por 300 euros e a senhoria subiu o preço para 800. Depois, quis aumentar para 1.200”, diz Isa, que foi viver para o apartamento que era da mãe e que, por cima, tem uma casa arrendada à semana. “Fazem festas a toda a hora, descem as escadas como se fossem doidos, aos berros, com garrafas, dão pontapés nas janelas…”
Por aqui, se a política faz encolher ombros, este assunto nem por isso. Não há praticamente nenhuma varanda do bairro que não tenha uma bandeira da Barceloneta, do FC Barcelona, da Catalunha e/ou da campanha lançada pela associação de moradores local: Cap Pis Turìstic. Que é como quem diz, em tradução livre, “Fim aos apartamentos para turistas”.
O valente barcelonês
É uma ideia que não passa pela cabeça de Carina Mejías, líder do grupo municipal do Ciudadanos na câmara de Barcelona. Mas passa pela de Ada Colau, a presidente da autarquia, cujo percurso cívico e político se fez nos protestos contra os despejos — que, até à sua eleição, se realizavam com estonteante frequência na cidade. “O principal problema que a cidade tem são as desigualdades entre diferentes bairros”, começa por dizer Mejías ao Observador, explicando que o Ciudadanos defende que se devem “equilibrar essas desigualdades” através da criação de “emprego de qualidade”. Tal como com a premissa “fora o Partido Popular”, aqui também parece haver pontos de contacto entre os dois partidos emergentes. Só que… “Se os diagnósticos são parecidos, as soluções são muito, muito diferentes. Ada Colau está obcecada com parar o turismo e limitar a atividade económica que está associada ao turismo, como sejam os alojamentos hoteleiros, os cruzeiros… E isso, para nós, é absolutamente intocável porque é uma atividade importantíssima, que gera muito emprego e que põe Barcelona no mapa mundial”, diz Carina Mejías.
A agora máxima representante do partido de Rivera na câmara de Barcelona pertenceu ao PP durante uns anos e foi mesmo deputada regional. Depois, quando um conjunto de intelectuais se juntou para fundar uma associação não-política que tinha como objetivo defender que a Catalunha devia continuar a ser Espanha, Carina ficou atenta. Mais tarde, a associação abriu uma brecha e dela saiu um partido, a que Carina se uniu logo nos primeiros momentos. A história do Ciudadanos é assim: nasceu entre a Barceloneta, uma rua perto da Praça de Espanha onde se encontra a associação de intelectuais e a rua Balmes, no norte da cidade, onde é a sede nacional do partido que agora quer conquistar o país.
E Rivera, qué tal? Tem uma “oratória brilhante” e “ideias muito claras”. Mas, acima de tudo, “é uma pessoa valente, é um jovem que defendeu ideias que outras pessoas não se atreveram a defender”, nomeadamente contra o independentismo catalão e a corrupção, que é um dos temas prementes da campanha eleitoral.
“Ficámos nus”
Percorrendo as ruas de Barcelona, as pessoas mais distraídas talvez não se apercebam que estamos em período pré-eleitoral. Ao contrário do que se vê nas cidades portuguesas, aqui não há grandes cartazes espalhados pelas ruas. Onde se veem mais apelos ao voto até é no metro, cujos expositores estão dedicados quase em exclusivo às eleições. Breve análise semiótica: todos os partidos optaram por imagens muito simples, só com a cara do candidato e uma mensagem; Pedro Sánchez é o único que olha nos olhos de quem passa; Rajoy aparece a fingir que está a falar com alguém, a fingir que está concentrado, a fingir que está a rir, mas nunca a olhar para as pessoas; Albert Rivera surge a olhar para cima, talvez para o céu, porque a sua mensagem é Vota con Ilusión (que não é bem o mesmo que ilusão, traduz-se melhor por “esperança”).
Se o Ciudadanos pede aos eleitores que depositem a esperança em Rivera, o Podemos nem sequer coloca caras nos cartazes, apenas a mensagem En Comú Podem. Juntos Podemos. Porque o partido não é só Iglesias ou Colau. “Somos ninguém e somos toda a gente”, dizia um dos oradores do comício de Nou Barris. Esta visão é partilhada por Josep, que desce do repuxo porque tem de ir dar de jantar aos netos. “Se os deixarem trabalhar e a banca não se meter, farão grandes coisas”, vaticina. Pior não fica, na sua opinião. “A única coisa que o PP fez foi cortar. Ficámos nus”.
Com ilusión ou en comú, numa coisa o Ciudadanos e o Podemos dizem que concordam: “O Partido Popular? Nunca mais! Fora das nossas vidas!” Domingo se verá em quem os obreros de Nou Barris vão confiar.