Texto lido na sessão de atribuição do Prémio Internacional Fernando Gil em Filosofia da Ciência, Fundação Calouste Gulbenkian, 9 de Abril de 2018
Foi com grande emoção que acompanhei a doença e o falecimento de Fernando Gil (1937-2006) fez há pouco doze anos. Se é certo que ele viveu a vida plenamente e se deixa a marca indelével da sua obra, a verdade é que a sua energia intelectual e a sua personalidade intensa tinham ainda tudo a dar à cultura e à filosofia, e bem entendido à família e aos amigos. Por isso, se o legado é imenso, nem por isso deixou de ser uma perda enorme para o pensamento e para a sociedade portuguesa, para cuja actualização, racionalização e modernização ele contribuiu sem descanso.
Conheci Fernando Gil no final dos anos Sessenta em Paris, onde ambos vivíamos e onde ele acabaria por fixar a sua residência principal, sem nunca deixar de trabalhar em Portugal depois do fim da ditadura. O seu expatriamento, a seguir à publicação do primeiro livro (Aproximação antropológica, 1961), tinha tudo a ver com a situação política portuguesa e com a guerra colonial, que acabara de começar e o tocava de muito perto, tendo nascido e vivido em Moçambique até vir para Lisboa fazer Direito. Ao mesmo tempo, porém, o expatriamento correspondia também à busca de um percurso que já então se pusera em movimento dentro dele.
Ficámos amigos praticamente desde o primeiro encontro até à memória permanente que hoje tenho dele. Entretanto, em Paris o Fernando terminava a tese de doutoramento (La logique du nom, 1971) e iniciava uma sucessão ininterrupta de projectos que a sua inesgotável criatividade alimentaria até ao fim. Um dos poucos projectos que nunca teve oportunidade de terminar e permanecia até há pouco desconhecido da maioria dos seus leitores foi o de um Cahier de l’Herne dedicado a Fernando Pessoa, que constituiu a nossa primeira colaboração no início dos anos ’70. Esse projecto foi agora recordado pelo seu antigo colega do curso de Direito, o jurista e filósofo João Lopes Alves, num artigo publicado em sua memória com as longas e reflexivas cartas que Fernando Gil então lhe enviou sobre o seu projecto pessoano, onde chega a escrever: “Estou desde há uma semana numa sobre-excitação fernandina (aí umas 10h por dia)! Tenho de romper o «charme» pois há outras coisas para fazer!” Em Setembro de ’72, ele escrevia a última carta sobre o projecto Pessoa, onde dizia: “Não sei se chegará a fim. Não sei bem porquê…”. E eu também nunca soube.
Em contrapartida, bem mais tarde, o seu interesse pelos regimes de relação entre “crença” e “convicção”, “ideologia e verdade”, para citar o estudo precioso que o seu orientando – hoje filósofo – Paulo Tunhas lhe dedicou, levaram Fernando Gil de novo à literatura e ao estudo – este publicado – sobre “o efeito-Lusíadas” (As Viagens do Olhar, com Helder Macedo, 1998). Interesses simultaneamente estéticos e filosóficos que se estenderam também à música (A quatro mãos, com Mário Vieira de Carvalho, 2005) e à pintura com vários textos sobre a obra de artistas portugueses (in Modos da Evidência, 1998)!
Com o fim da ditadura, o 25 de Abril abriu-lhe, como aos outros exilados e expatriados, a chance de trabalhar em liberdade com aquele mínimo de condições que a universidade portuguesa em reconstrução nos concedeu. Entre Lisboa e Paris, dedicou então parte da sua energia criadora a essas novas enciclopédias “problemáticas e críticas”, como lhes chamou, que são a Encyclopédie Universalis (Paris, 1968-1975) e a Enciclopedia Einaudi (Turim, 1977-1984; traduzida em português pela Imprensa Nacional de Lisboa), nas quais também me deu oportunidade de colaborar.
Ao mesmo tempo, introduzia perspectivas inéditas no ensino da filosofia em Portugal; lançava a primeira das suas revistas, Filosofia e Epistemologia (Lisboa, 1978-), e reunia boa parte dos textos então produzidos em Mimésis e Negação (1984), o que lhe trouxe o reconhecimento geral como o mais original e actualizado pensador português, nomeadamente no campo da epistemologia e da filosofia das ciências, que desde sempre o atraiu pelo lugar central que esse campo ocupa nos sistemas de pensamento e conhecimento modernos.
Mais tarde, foi o lançamento da revista Análise (1984-2005) e a fundação do Gabinete de Filosofia do Conhecimento, com sede na Biblioteca Nacional, quando eu era director (1985-1990), sendo-me então possível apoiar logisticamente esse grupo cujos motores eram a heterogeneidade e a vontade sabiamente orientadas pelo Fernando; e depois a publicação das suas Provas em 1986 (traduzidas em Francês em 1988), que constituíram, ao mesmo tempo, a sua prova de agregação universitária e o estudo das práticas da prova e da controvérsia.
Entretanto, Fernando Gil havia, precisamente, coordenado um grande colóquio internacional em Évora sobre as Controvérsias científicas e filosóficas (1985), ao qual se seguiu aquele que organizou em Paris em 1988 sobre Wiittgenstein (Acta publicada pelo Collège International de Philosophie em 1990); outro colóquio, desta vez não publicado, foi o organizado por ele, Vasco Graça Moura, então director da Imprensa Nacional, e eu próprio, sobre as “Enciclopédias e Bibliotecas” enquanto lugares de organização e produção do conhecimento. Por fim, a conquista do seu lugar no campo filosófico internacional, com a escolha de Fernando Gil pelos seus pares para “Directeur d’études” da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris. Foi, talvez, a época mais fértil da nossa colaboração e o cimento inquebrável da nossa amizade.
Em 1993, o Prémio Pessoa assinalou o reconhecimento público e a plenitude pessoal de Fernando Gil. Com a publicação das obras de maturidade (Le Traité de l’Évidence, 1992, e La conviction, 2000), ele acercou-se enfim à possibilidade de uma síntese, onde fica unida a sua dupla capacidade para a abrangência temática e para a profundidade analítica. Entretanto, em Português ou em Francês, frequentemente em ambas as línguas, Fernando Gil havia de publicar um conjunto vastíssimo de tratados, livros, colectâneas, artigos, colaborações, textos para enciclopédias e para catálogos de arte, etc.
De modo tal que, apesar dos meus esforços, não logrei localizar uma bibliografia completa dos seus títulos desde 1961 a 2006 – 45 anos de expressão da sua enorme criatividade e da sua inesgotável energia – que importa fazer título a título, edição a edição. Enfim, “mors certa hora incerta”, como ele próprio recordou filosoficamente no último capítulo daquele que viria a ser o seu derradeiro livro (Acentos, 2006); a sua morte, porém, chegou cedo de mais; hoje, é Fernando Gil quem dá o nome, merecidamente, ao Prémio Internacional de Filosofia das Ciências atribuído pelo Estado português e pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Resta-me evocar algo de, simultaneamente, mais pessoal e mais teórico. Na primeira reunião em casa do Fernando, há quase 50 anos, o tópico geral era a política depois de Maio de ’68, e a minha presença – sugerida pelo irmão dele, o também filósofo José Gil, igualmente presente nessa reunião depois de haver colaborado com o grupo dos Cadernos de Circunstância (Paris, 1967-1970) – devia-se à minha condição de animador daquele grupo e de “militante” político. O Fernando estava, creio eu, a fazer o seu ajuste de contas com o “militantismo”, que nunca terá sido a sua primeira escolha, apesar de haver participado no importante grupo de exilados anti-fascistas contra a guerra colonial – o MAR, Movimento de Acção Revolucionária – juntamente com o meu futuro colega há pouco falecido, o seu amigo e grande intérprete do regime salazarista Manuel de Lucena, que esteve connosco no funeral do Fernando nos Pirinéus!
O motivo imediato do encontro do “loft” da Bastilha onde Fernando Gil vivia era discutir um ensaio que ele estava a escrever sobre a hipotética renovação do marxismo então proposta por Louis Althusser. O ensaio foi publicado na revista Ruedo Ibérico e a sua resposta à pergunta sobre a eventual renovação althusseriana do marxismo era negativa. E apenas uma vez terá conferido, alguns anos depois, um enquadramento político à sua reflexão filosófica num extenso texto publicado no Brasil em 1974, por um cientista português igualmente exilado, o físico teórico Jorge Dias de Deus, onde se pode reconhecer uma influência mais metafórica do que ideológica do obreirismo neo-marxista italiano de então: “O Plano da Ciência”.
Só muito mais tarde, já no século XXI, Fernando Gil voltaria à política do dia. Dito isto, a presença do político – diversamente da política – atravessa de forma latente todo o pensamento de Fernando Gil, como afirma Paulo Tunhas. É que ele pensava o político e o científico, assim como o estético e o religioso, implicados uns nos outros e não se deixando reduzir ao exclusivo funcionamento interno de cada campo, em especial o da política. Na realidade, todos esses campos autónomos nas suas manifestações fenomenológicas passariam por pré-construções cognitivas e intelectuais – em suma, na linguagem de Fernando Gil, por evidências e convicções – através das quais mergulhariam num solo comum.
Como para Leibniz, que usou para escrever um texto luminoso intitulado “O Lugar do Outro” (Passé Présent, 1984; publicado em português na revista Risco publicada pelo Clube da Esquerda Liberal (1984-1987), também para Fernando Gil “não existe o político puro”. Um exemplo precoce de exploração desse grund comum entre o político e o científico é o referido “Plano da Ciência”, que voltou a publicar nas Mediações em 2001. Em Fernando Gil, o político – mais do que nas ideologias e os seus agentes, que até ao 11 de Setembro de 2001 não lhe tinham despertado particular interesse – circula antes entre o direito e a ética, acerca dos quais dialogou não só com os clássicos, desde Hobbes e Spinoza a Rousseau e Kant, mas também com os contemporâneos, ora com Karl Schmitt e Kelsen, ora ainda com Habermas e Rawls. Foi em discussão com os dois últimos que produziu um belo artigo sobre deveres e direitos que ilumina os fundamentos do welfare state, tema ao qual regressou no último texto que publicou, onde evoca comovido a ética de serviço público reinante no hospital público de Paris onde viria a falecer.
Porém, a contribuição filosófica mais decisiva de Fernando Gil para o entendimento do político e do seu princípio de razão encontra-se em La Conviction (2000), nomeadamente na 2.ª parte do livro, dedicada ao “pensamento soberano”, onde fornece ainda uma passagem para o conhecimento local da política, através do “duplo estatuto do cidadão, sujeito individual e soberano”. O mais importante a reter, na leitura da soberania feita por ele, é que “a revolução operada por Jean Bodin [século XII] consiste em extrair o fundamento do poder do próprio político”, transformando este último numa “transcendência na imanência”, em suma, numa vontade ilimitada, conflitual e violenta, cuja “liberdade selvagem coloca permanentemente em perigo a ordem jurídica”. É este risco, que Karl Schmitt exaltava mas que, pelo contrário, “o Estado de direito moderno e democrático pretende controlar, definindo antecipadamente as situações que autorizam a derrogação da ordem jurídica normal”, domesticando, por assim dizer, tanto a “tirania” como o “poder constituinte”.
As implicações extraídas por Fernando Gil deste encadeado de “convicções” passam pela crítica das ficções constitucionalistas, mas também pela admissão kantiana de que todo o pensamento tem a vocação de tomar a intuição por finalidade, a fim de chegar aos “princípios da ciência” e à sua “causalidade autárcica” homóloga da soberania política, através da qual Gil tece o fio de uma comunalidade geral da convicção em torno de todo o espaço mundano, do político ao científico.
Quanto à política – enquanto segmento da vida mundana – vê-se assim reduzida à sua mecânica interna. E como tal, com a excepção relevante dos Impasses (2004), que escreveu com Danièle Cohn e Paulo Tunhas, e da secção final – significativamente intitulada “Medos” – da última recolha de ensaios que ainda pôde editar (Acentos, 2005), Fernando Gil acabou por ocupar-se talvez menos da política como filósofo do que como cidadão, enquanto jovem militante anti-colonialista que foi em Moçambique onde nasceu e viveu até aos 18 anos, o que chegou a valer-lhe a prisão; enquanto adversário permanente da ditadura e, finalmente, enquanto adversário da deriva esquerdizante de 1974-75 em Portugal.
E foi mesmo político, no melhor sentido da palavra, enquanto pensador de “os saberes e a cidade” (Acentos, pp. 181-251), em prol da política científica promovida pelo precocemente falecido José Mariano Gago, nosso companheiro do Gabinete de Filosofia do Conhecimento e ministro socialista da Ciência durante 12 anos; ou ainda enquanto impulsionador do programa de investigação do Gabinete de Filosofia do Conhecimento que culminou no número da revista Análise sobre “O Interesse Público” (1994). E, claro, enquanto organizador de conferências e colóquios da importância do Balanço do Século (1990) e A ciência como cultura (1992), realizados durante a presidência de Mário Soares.
Já com a publicação de Impasses (2003), Fernando Gil demonstra como foi profundamente interpelado pela violência inaudita do 11 de Setembro de 2001 e pela fractura que o terrorismo e o fundamentalismo islâmicos abriram nas próprias sociedades demoliberais. São conhecidos os conteúdos da controvérsia que se seguiu comigo e outros interlocutores, reunida em Acentos (2005), pelo que será suficiente reconhecer que as preocupações que então o mobilizaram não só tinham toda a razão de ser como estão muito longe de haver desaparecido. Nesse sentido, consola-nos que Fernando Gil tenha sido poupado à posterior «cavalgada do terror», mas isso não diminui a perda sentida pela sua família e pelos seus amigos e admiradores.