Está tudo pronto para a descolagem. Os dois pilotos e os dois engenheiros de voo ocupam o espaço exíguo do cockpit e preparam-se para a viagem. O avião da Airbus, que da versão comercial só se reconhece o exterior, é comandado por militares, mas vai cheio de cientistas. Quando entrar em queda livre, não haverá pânico, todos estarão absolutamente concentrados nas experiências. Pelo menos durante 20 segundos. O mais difícil vai ser manter os pés presos ao chão.
Depois da azáfama matinal, a acertar os últimos pormenores da experiência, a colocar os sensores e a equipar a rigor, os cerca de 50 passageiros ocupam os lugares que se mantiveram depois das modificações na cabina do Airbus 300. No cockpit, pilotos e engenheiros comunicam entre si e com a torre de controlo do aeroporto de Bordéus. Ligam e desligam alguns dos botões entre as centenas que têm por cima da cabeça e tomam notas, enquanto avançam lentamente pela pista à espera da ordem de descolagem.
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“Atenção ao avião que vai aparecer do lado esquerdo”, avisam da torre de controlo. Stéphane Pichené, piloto de testes experimentais, mantém-se atento, mas sem preocupações. Tem mais de cinco mil horas de voo, das quais cerca de metade como piloto de testes e 600 no tipo de voos que agora se prepara para fazer. “Bon vol. À tout à l’heure” (“Bom voo. Até logo.”), ouve-se da torre de controlo. Ainda não são 9h30 quando o barulho ensurdecedor dos motores impede qualquer comunicação verbal entre passageiros. A velocidade aumenta e os ocupantes do avião sentem-se cada vez mais enterrados nos bancos à medida que o avião levanta voo.
Assim que o sinal luminoso dos cintos se apaga, todos os cientistas correm para as respetivas experiências espalhadas ao longo dos 20 metros de cabina acolchoada. É preciso ligar tudo antes de chegarem ao destino. A bordo do A300 Zero-G encontram-se 11 experiências escolhidas pela Agência Espacial Europeia (ESA) para a sexagésima primeira campanha de voos parabólicos promovida por esta instituição (decorrida de 8 a 12 de setembro). Além das campanhas organizadas pela ESA, a Novespace, empresa responsável pelos voos parabólicos, já realizou mais 50 voos para outras instituições, como para as agências espaciais francesa (CNES) e alemã (DLR). Este tipo de voos é promovido para realizar investigação científica ou para testar equipamentos que venham a ser usados em missões espaciais.
“5… 4… 3… 2… 1… Pull up!” O corpo é comprimido contra o chão, como se estivesse a ser esmagado. A sensação de ser empurrado contra o banco durante a descolagem não se compara à sensação de se ter o dobro do peso. “Thirty… Forty… Injection!” Primeiro os pés e as pernas, depois a cabeça, seguida pelo corpo. Tudo levita como se não tivesse peso. Ao mínimo toque o corpo é projetado contra as paredes ou contra o teto. “Twenty… Thirty… Pull out!” Quem não se pôs de pés virados para o chão teve certamente uma queda aparatosa. Aguentem-se que vêm mais uns segundos “pesados”. E, finalmente, respira-se fundo, porque antes disso o peso do corpo mal o permitia. Um minuto de descanso e começa tudo outra vez.
Andreia Reisinho Costa
As manobras de pilotagem têm lugar sobre o golfo da Biscaia, a sul da Bretanha (França). Quando o avião se encontra a uma altitude de 6.100 metros acelera até aos 825 quilómetros por hora e sobe até uma altitude máxima de 8.500 metros. A velocidade cai para 370 quilómetros por hora e volta a descer completando uma parábola – uma curva simétrica em forma de U, neste caso virado para baixo.
A primeira parábola realizada pelo avião é apenas um teste para as 30 que se seguem. Considerados voos de teste, os voos parabólicos permitem ter a sensação de ausência de peso – porque a soma das forças que atuam sobre o corpo equivale a 0G – durante 22 segundos em cada parábola, como se se estivesse em queda livre. Mas são precedidos e sucedidos por uma fase de hipergravidade (quando a soma das forças chega a 1,8G) em que a sensação é de que o corpo ou qualquer outro objeto pesa mais ou menos o dobro.
A gravidade não desaparece, mas parece
Em hipergravidade (quando a soma das forças é maior que 1G – a força a que estamos sujeitos em repouso na Terra) o corpo é comprimido contra o chão, se estiver deitado, mas caso se esteja de pé o sangue concentra-se nos pés e nas pernas e tem mais dificuldade em chegar à cabeça, apesar de o coração bater com mais força para tentar levar o sangue a todo o corpo. Acima de 2G, passageiros não treinados, correm o risco de desmaiar. Durante este período há uma recomendação chave ouvida dezenas de vezes “Don’t move your head” (“não mexa a cabeça”): a informação obtida pelo sistema vestibular, no interior do ouvido interno, responsável pelo equilíbrio, é diferente da informação obtiva pela visão e o resultado são tonturas e vómitos… e o resto da viagem sentado na companhia do médico de serviço.
Mesmo sem esquecer a regra de ouro – “Don’t move your head” – todos os passageiros podem ser medicados para os enjoos, mas há quem conviva com as alterações de gravidade sem problemas. É o caso de Vladimir Pletser, coordenador das campanhas de voos parabólicos da Agência Espacial Europeia (ESA), que já completou 6.716 parábolas e nunca se sentiu enjoado. Embora esta seja uma situação excecional, Floris Wuyts, investigador na Universidade de Antuérpia, considera que o cérebro sofre alterações durante as transições de gravidade e períodos em que existe a sensação de ausência de gravidade e usará os voos parabólicos para testar esta hipótese.
Quando a soma das forças é menor que 1G e se tem a sensação de ausência de gravidade, o sangue aflui mais facilmente à cabeça, o ritmo cardíaco diminui de frequência e quem não tiver o corpo preso flutua. Passageiros e avião não deixaram de estar sujeitos à ação da gravidade da Terra, mas ambos se encontram em queda livre em conjunto. Tal como na Estação Espacial Internacional, que se encontra em órbita à volta da Terra por causa da ação da gravidade. Também ela e os ocupantes estão em queda livre (à volta da Terra e não para o centro desta) dando a sensação de que estão sem gravidade porque sentem que não têm peso.
Para quem faz um voo parabólico pela primeira vez é impossível ficar indiferente à sensação. Ou mesmo para quem já o fez dezenas ou centenas de vezes. “A primeira parábola de cada campanha é como se fosse a primeira vez”, diz sorridente Vladimir Pletser.
As experiências são desenvolvidas nesta fase de sensação de ausência de peso, por vezes chamada de microgravidade – um termo incorrecto, porque a força da gravidade não diminui nem desaparece, mas é contrariada por outro tipo de forças, dando ao corpo a sensação de estar sujeito a uma força de OG. As medições feitas nestas condições permitem, por um lado, calibrar os aparelhos para quando estejam sujeitos a outras forças da gravidade, por outro lado, testar a usabilidade antes de serem enviados para o espaço, como o mecanismo que será usado para apanhar uma cápsula com amostras de solo marciano, coordenado por Peter Falkner, investigador na ESA.
Também o registo de dados fisiológicos permite perceber o que acontece ao organismo dos astronautas quando estão no espaço: o músculo cardíaco muda de tamanho, os centros de coordenação são afetados pela ausência de referencial, o cérebro sofre alterações. O projeto GRIP, de Jean-Louis Thonnard, investigador da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, pretende avaliar que quantidade de força é usada para agarrar os objetos e para os mover enquanto o investigador Gilles Clement, investigador na Universidade Internacional do Espaço, em França, pretende perceber de que forma a percepção de gravidade afeta o controlo de movimentos usando óculos de visão invertida.
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Enquanto isso, no cockpit, depois do pull up os corpos ajustados pelos cintos são ainda mais comprimidos nos assentos, mas no momento em que os pilotos quase desligam os motores o corpo tenta contrariar a resistência que os cintos provocam para manter pilotos e engenheiros nos respetivos lugares. Nas pequenas janelas o céu vai mudando de cor, cada vez mais escuro, até atingir a altura máxima e começar a desenhar a curva da parábola. Agora em mergulho, o céu volta a parecer mais claro e lá em baixo uma pequena embarcação viaja no oceano Atlântico. E volta-se à posição inicial.
Mais de 25 anos de voos parabólicos na Europa
O A300 Zero-G é o mais antigo Airbus 300 ainda a voar (foi construído em 1973), mas apesar de só ter realizado cerca de cinco mil horas de voo vai reformar-se em breve – a partir de abril de 2015 o A310 Zero-G estará operacional. Não é a idade que dita a pausa forçada, nem o tempo de voo, mas é o “esqueleto” que já não aguenta. Embora os motores ainda se encontrem em boas condições, a estrutura está desgastada pelos voos parabólicos. “Uma vez visitei o local onde fazem a manutenção dos motores na Alemanha. Os nossos motores comparados com os dos voos comerciais pareciam novos, estavam limpos. Os outros estavam tão sujos e erodidos que nos fazia pensar como é que ainda funcionavam”, conta ao Observador Jean-François Clervoy, presidente da Novespace, acrescentando que “provavelmente fazem manutenção em excesso”, mas a segurança está em primeiro lugar.
Enquanto um avião comercial faz um ciclo de voo por cada viagem (descolar – voar – aterrar), o A300 Zero-G faz 32 ciclos por cada voo com 31 parábolas (cada uma das parábolas conta como um ciclo, mais o ciclo normal de descolar – voar – aterrar) e são já mais de 40 mil ciclos completos. Uma contagem ainda maior no caso das asas em que cada campanha de 31 parábolas equivale a 60 ou 70 ciclos, explica o engenheiro de testes de voo.
Este Airbus 300 começou a voar pela Novespace, subsidiária da agência espacial francesa CNES (Centro Nacional de Estudos Espaciais), em 1997, quando substituiu o avião Caravelle – usado desde o final dos anos 1980 e também reformado por excesso de ciclos de voo. Ambas as aeronaves serviram para testes aeronáuticos – testar novos equipamentos para serem usados noutros aviões – antes de realizarem voos parabólicos para a Novespace. Para escolher um avião capaz de realizar voos parabólicos é preciso avaliar “o desempenho dos motores e o aerodinamismo das asas”, assim como, a “capacidade dos sistemas continuarem a realizar o respetivo trabalho”, como os sistemas hidráulicos ou de lubrificação, explica Jean-François Clervoy. Qualquer avião pode fazer uma parábola, mas nem todos têm a capacidade de fazer várias seguidas com pouco tempo de intervalo entre elas.
“Num avião existem três sistemas principais que usam fluídos: o combustível para fazer funcionar os motores, o óleo para os lubrificar e o sistema hidráulico para ativar vários controlos que fazem mover as abas do avião (flaps)”, explica o engenheiro de testes de voo. “Durante a fase de ausência de peso, esses líquidos deixam de estar no fundo no reservatório e podem flutuar, deixando de cumprir a função a que se destinam.” O comportamento de fluídos, essencial ao voo dos aviões, também motivou algumas das experiências desenvolvidas durante esta campanha de voos parabólicos da ESA.
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Os voos parabólicos só chegaram à Europa em 1988, pelas mãos de Jean-François Clervoy e do colega astronauta Jean-Pierre Haigneré, depois do primeiro ter defendido uma tese sobre os princípios físicos dos voos parabólicos. Antes disso, os cientistas europeus ou as agências espaciais da Europa tinham de alugar o avião da NASA (agência espacial norte-americana), que manteve os voos parabólicos para treino de astronautas e investigação desde os anos 1960 até ao início do século XXI. Agora os voos da NASA são realizados por uma empresa privada.
O primeiro de todos os ensaios de voo parabólico foi feito ainda antes do final dos anos 1950, mas apenas para testar se o avião tinha capacidade para realizar este tipo de voos. Agora qualquer pessoa pode embarcar num voo parabólico com a Novespace. O voo inclui uma parábola a simular a gravidade de Marte (0,4G) durante 35 segundos, duas a simular a gravidade da Lua (0,16G) durante 25 segundos cada e 12 parábolas em 0G, durante os habituais 22 segundos. Já foi realizado seis vezes, com 40 pessoas em cada voo – algumas delas a repetirem a experiência. Cada grupo de dez pessoas é acompanhada por um monitor para tirar o máximo proveito da experiência e no final do dia todos os participantes podem levar para casa o registo fotográfico do dia. Os seis mil euros pagos pela experiência cobrem todas as despesas associadas ao voo e permitem reduzir o valor cobrado às agências espaciais para fazer investigação científica.
Mais sobre as experiências realizadas durante o voo: Saiba que experiências se fazem em queda livre na atmosfera terrestre