À porta do Coliseu, meio por acaso, meto conversa com um senhor careca, de fato preto, que cedo descubro chamar-se José “Herby” Carrilho. Por vontade de gerar empatia através de gostos partilhados e de com isso lhe revelar a minha extraordinária erudição (ainda nem nove da manhã são, Deus meu), pergunto se se escreve Herbie como em Herbie Hancock. Ele diz que se escreve como no filme da Disney e ainda antes de arrancar percebo o que deveria ser evidente: estava a apontar para o universo diferente.
O Herby foi ilusionista dos dez aos dezassete anos e, graças aos seus truques que envolviam fumar mais de dois maços por espectáculo, conseguiu chegar ao canal 47 dos Estados Unidos e arranjar uma valente embolia pulmonar que ainda hoje o incomoda. Mostra-me, orgulhoso, o seu perfil de Facebook onde acumula cartazes dos seus espectáculos no início dos anos setenta e fotografias ao lado de superestrelas do mundo circense, como por exemplo a princesa Stephanie do Mónaco.
Em 1975, o Herby foi convidado para organizar o Circo do Coliseu e desde então vive em digressão eterna pelos circos europeus, onde recruta os artistas que depois traz a Lisboa todos os Natais. Diz-me que já não faz magia porque os dedos engrossados pelos anos não permitem que tal ilusão aconteça. Enquanto esperamos que as portas do Coliseu se abram, mostra-me ainda fotografias do primeiro circo que organizou, em que trouxe a companhia inteira do Circo de Moscovo (o melhor que já viu), que integrava então vinte e dois elefantes, que, como vejo no seu arquivo, vieram em procissão até aos Restauradores, desde Santa Apolónia, onde chegaram através de um comboio especial.
Mostra-me depois os bastidores do Coliseu, que, cedo percebo, na sua cabeça foram desenhados exclusivamente para o momento alto do ano em que o circo enfim chega à cidade. Enquanto passeamos, o Herby lamenta o fim do uso de animais nos espectáculos e profetiza o inevitável declínio dos palhaços, uma vez que já poucos se formam e os bons têm todos mais de cinquenta anos. Afasta de mim o olhar quando me fala no que considera o melhor artista de sempre: David Larible, que viu atuar no Mónaco e que era capaz, garante, de fazer sorrir as pedras da calçada. Isto há muito, muito tempo, quando dos dedos do Herby ainda brotavam cigarros.
Para o Herby, percebo agora, o circo é a memória mágica e melancólica de uma juventude perdida. Senta-se então num banco e chama à conversa o Fredy Castanheira, um trapezista já reformado, filho de um palhaço e de uma equilibrista, irmão de uma contorcionista e pai de trapezistas, malabaristas e de motoqueiros da roda da morte. A mulher, Trudy Nery, fazia malabarismos com bicicletas e é agora apresentadora do Circo do Coliseu. O Fredy fala-me com saudades da vida de estrada, da mania de batizar os filhos com nomes tradicionais dos sítios onde estes nasciam e até parece sentir saudades das quedas, cujas cicatrizes me mostra com orgulho. Ao vê-lo assim sorrir como se estivesse no cimo de um trapézio, ecoam na minha cabeça os versos de um poema do Philip Larkin acerca da admiração que sentimos em relação àqueles que um dia, sem grande motivo, pegam na sua trouxa e se fazem à estrada (“We all hate home/ And having to be there”) e penso se a casa do poema não será para o Fredy a sua reforma e se o ódio de que aqui se fala não será outra maneira de amar. Mas adiante.
Faltam agora cinco minutos para o espectáculo começar e na plateia começo a ouvir o frenesim entusiasmado das escolas da honesta e sempre leal junta de freguesia de Arroios. Junta-se a nós o Jocka, que, juntamente com a sua trupe de acrobatas, abrirá o espectáculo desta manhã, com o número em que, preso a um tecido que se ergue no ar, fará a cabeça rodar, segundo as minhas contas, 7200º antes de, enfim, repousar no chão. O Jocka, cujas feições e maquilhagem me fazem lembrar (não me perguntem porquê) o António Variações, nasceu em Lisboa e cresceu encantado pelo circo e em especial pelos trapezistas. Os pais perguntavam-lhe se era mesmo uma vida de caravana a que queria e eu, em termos talvez menos chorosos, pergunto-lhe o mesmo. Ele diz que ao longo de trinta anos de carreira já visitou 192 países e que gosta de viajar, mas diz que seria igualmente feliz se tivesse trabalhado a vida inteira num circo em Lisboa. Ao ouvi-lo, percebo que lhe é relativamente indiferente o que se passa aqui em baixo. A vida parece-lhe um prelúdio entediante, um intervalo para publicidade, enquanto espera o momento em que sobe ao céu redondo vermelho e amarelo da tenda do circo, arriscando-se a cair desamparado, com a certeza de quem sabe não ser esse o seu destino.
A seguir, converso dois ou três minutos com o Barry Lubin, um palhaço septuagenário mascarado de velha trapalhona. Fala-me da sua infância tímida em Nova Jersey e da revelação que sentiu no dia em que, ao passear de bicicleta com os amigos, deu um trambolhão de todo o tamanho e ouviu os amigos rirem à gargalhada, depois de perceberem que não se magoara. A partir daí, passou a procurar de todas as maneiras cair melhor. Ao vê-lo atuar, atirando pipocas para o público, caminhando aos tropeções, apertando o que só posso definir como almofadas de peidos, percebo que a presença do palhaço no circo talvez seja o momento em que, perante o maravilhoso espanto que nos causa as demonstrações de mestria dos outros artistas, nos rimos da nossa incapacidade para os imitar. Ou talvez seja da almofada de peidos, fenómeno que, de facto, tem muita piada.
Entrevisto ainda um casal chileno que percorre o mundo, acompanhado do filho de três anos, a fazer malabarismos em bicicleta. O homem tem a cara mais teatral que já vi e diz-me ser (e isto parece mais norma do que exceção) a sexta geração de uma família circense. Pergunto-lhe se já pensou em fazer outra coisa e ele diz que sim, que tentou, mas que nasceu para fazer os outros sorrirem. Quando o vejo atuar, tenho a certeza de que tem razão.
Sentado no meio do público, assisto agora à atuação do mágico Zee Zeus, da Hungria, que se entretém a perfurar a pobre da assistente, fazendo-a aparecer e desaparecer juntamente com outra rapariga, que antes tocara clarinete e cantara uma música em francês ao mesmo tempo que fazia acrobacias no cinto vertical. Atrás de mim, um homem com uns sessenta anos passou as duas atuações anteriores a rir-se a bandeiras despregadas das desventuras do palhaço e a imaginar, perante o silêncio da mulher que o acompanha, a vida regrada de artistas que vai comparando a astros do futebol. No entanto, assim que Zeus começa a fazer das suas, o homem primeiro fica em silêncio e depois desata a dizer, com a frustração evidente na voz que me chega, que tudo aquilo não passa de uma sequência de truques mecânicos. Concede que serão impressionantes visualmente para os não iniciados, mas, sabendo-se como são feitos, é tudo muito simples e até entediante, afugentando assim para longe, como tantas vezes fazemos, a possibilidade de se espantar com o incompreensível.
Regresso aos bastidores para entrevistar as Telker Sisters, a Meily e a Kimberly, duas primas antipodistas, de uma família que se orgulha de ser circense há seis gerações, netas de dois aficionados pelas curvas: uma contorcionista portuguesa e um camionista holandês. Ele parou numa terrinha no meio do nada, viu a portuguesa a meter os pés por trás da nuca, ficou de cabeça perdida e a partir desse dia começou a viajar no seu camião para onde quer que o circo fosse. Agora, são as netas que querem continuar ao longo dessa estrada infinita, aplaudidas enquanto fazem malabarismo com os pés.
O circo vai por aí afora até que acaba, para tristeza das crianças que gritam de cada vez que a luz se apaga. Uma parada de artistas passeia agora bandeiras dos seus países de origem enquanto a Trudy Nery diz adeus ao maior espectáculo do mundo. Não vejo motivos para desconfiar.
“Passeio das Virtudes” é uma rubrica sobre vidas portuguesas e portugueses nas suas vidas.