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"Second Version of Triptych 1944", 1988. Óleo e acrílico sobre três telas (Tate)
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"Second Version of Triptych 1944", 1988. Óleo e acrílico sobre três telas (Tate)

Prudence Cuming Associates Ltd

"Second Version of Triptych 1944", 1988. Óleo e acrílico sobre três telas (Tate)

Prudence Cuming Associates Ltd

Francis Bacon: o homem, a besta e o bestial, numa exposição sem tempo

Visitámos a longa e cuidada retrospetiva que está patente na Royal Academy of Arts em Londres, até 17 de abril. O que ainda podemos descobrir sobre a complexidade de um artista irrepetível?

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A exposição abriu há dias e está cheia, cheíssima, com crianças espalhadas pelos bancos e de iPad ao colo, gente nova e de meia-idade, um ou outro idoso, tudo de máscara ou tirando-a para a imprescindível selfie: bem-vindos à capital europeia que mais depressa se libertou das restrições pandémicas. Os sucessivos agendamentos e adiamentos de “Francis Bacon: Man and Beast” propalaram a expectativa. Bacon é um dos maiores pintores do século XX. Deixou-nos imagens perturbadoras, polémicas. Amemo-lo ou odiemo-lo ou procuremos simplesmente perceber esta coqueluche dos ingleses cujas criações transportam algo iminentemente british e um prenúncio do nosso século.

Uma arte inseparável da vida

Bacon é um londrino, a cidade onde mais tempo viveu, embora tenha nascido em Dublin, de pais ingleses, em 1909. O pai era um major reformado convertido em criador e treinador de cavalos, a mãe a herdeira de um negócio de aço e cutelaria. A vida social da família girava em torno de corridas de cavalos e caçadas. Foi o segundo de cinco irmãos e, para deceção paterna, sofria de asma e de uma alergia a cães e cavalos. Começa, assim, na coudelaria paterna, o seu fascínio por animais. De tenra idade, observa-lhes o comportamento desinibido, o modo como lutam, acasalam e morrem e julga apreender ali algo sobre a existência e o instinto humano.

A família muda frequentemente de casa, alternando entre a Irlanda e a Inglaterra, instalando-se nele uma sensação de deslocamento que o persegue pela vida. Será longa, morre aos 83 anos, assiste a duas Grandes Guerras. Se o balizarmos com o modernismo português ou francês, percebemos melhor como o ultrapassou amplamente: é na verdade um pós-modernista, um pintor para o nosso tempo, que lhe assenta como uma luva. É uma constatação que não pára de surpreender: a sua obra e figura são totalmente contemporâneas, não ecoa ali um harpejo, uma vibração de passado.

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[o trailer da exposição “Francis Bacon: Man and Beast”:]

Na observação das suas obsessões contemplamos muito do século XXI: seria Bacon um profeta, um presciente? As suas obras mostram um ser sem género, fechado numa solidão extrema (pode ser dentro de um cubo ou num paralelepípedo de vidro ou gelo, atrás de uma barra, debaixo de um guarda-chuva ou num sofá), sufocando num mundo sem sentido, desapiedado e feroz. Bacon compraz-se em mostrar-nos uma existência carnal condenada ao apetite, a atacar e sentir dor, atraída a relações de domínio e subjugação, sobretudo no quadro da sexualidade. Tem uma fixação nos jogos de poder sexual do sado-masoquismo e voyeurismo não dissociável das circunstâncias em que viveu a sua homossexualidade — que só em 1967 foi descriminalizada no Reino Unido — e das sovas que recebeu na infância do pai ou dos empregados a seu mando.

Bacon era uma criança tímida que desde cedo apreciou vestir-se de menina. O pai, enfurecido, terá ordenado ao pessoal da estrebaria que chicoteasse o filho, esperando demovê-lo das suas tendências. Aos 16 anos, foi expulso de casa, depois de o pai o ter encontrado, admirando-se ao espelho, com a roupa interior da mãe. Numa tentativa final para masculinizar o filho, o pai envia-o na primavera de 1927 para casa de um familiar materno que vive em Berlim, o guardião mais não faz do que aproveitar-se sexualmente do jovem Bacon. Não são experiências que se possam rasurar, marcaram-no.

A pintura não chega senão aos vinte e tantos anos, já depois do regresso a Inglaterra e das estadias em Berlim e Paris. Entre o final dos anos 1920 e início dos anos 1930, foi decorador de interiores, bon vivant e jogador, destas últimas ocupações nunca se chegaria a despedir (quando vendia um quadro dirigia-se ao casino).

As pinturas de Francis Bacon são tradicionalmente interpretadas como estudos da figura humana, em espaços interiores, claustrofóbicos, que lhes acentuam a vulnerabilidade. Há no entanto, um lado menos explorado da sua obra: o seu interesse por animais. “Francis Bacon: Man and Beast” propõe-se mostrar essa fascinação relativamente precoce e essencialmente antropocêntrica.

Declarou certa vez que a sua carreira artística foi adiada porque passou muito tempo à procura de um tema que pudesse sustentar seu interesse artístico. A descoberta chegou com o tríptico de 1944, “Three Studies for Figures at the Base of a Crucifixion”, pintura que causou sensação quando exibida em 1945, meses depois de o mundo ficar a saber da existência dos campos de concentração e que o estabeleceu como um dos principais pintores do pós-guerra, selando-lhe também a reputação de cronista sombrio da condição humana. Os “Trípticos” ficariam para sempre associados ao horror do Holocausto e ao medo do desenvolvimento nuclear e Bacon fazia questão que fossem vistos como o começo da sua carreira.

O Homem e a Besta

As pinturas de Francis Bacon são tradicionalmente interpretadas como estudos da figura humana, em espaços interiores, claustrofóbicos, que lhes acentuam a vulnerabilidade. Há no entanto, um lado menos explorado da sua obra: o seu interesse por animais. “Francis Bacon: Man and Beast” propõe-se mostrar essa fascinação relativamente precoce e essencialmente antropocêntrica: Bacon estava convencido que, observando a forma como os  se comportam, chegaria a uma verdade sobre a natureza humana.

Existe nele uma predileção por fundir humano e animal, que o leva a criar formas híbridas — os seus meio-humanos, meio-bestas — surgidos pela primeira vez nas pinturas da década de 40 e continuados, embora com mutações, ao longo do seu desenvolvimento artístico.

Assim se explica que o seu “Head I” (1948) seja a tela de abertura desta exposição.

Há imenso trabalho por detrás deste desenho monocromático a óleo e tempera. A cabeça do homem é discernível, mas dissolve-se para tornar o ambiente angustiante, o pescoço e ouvido são as únicas pistas que nos permitem reconhecer o humano. Da espécie de boca desenhada (feita a partir de uma fotografia de chimpanzé) desprende-se um uivo de agonia. O monstro ou a besta, atado a uma estrutura de uma cama, sublinha como uma metamorfose não contém nada de sensual, encerrando somente dor, abjecção e terror.

No mesmo ano em que pintou “Head I”, Bacon deu uma entrevista, expressando o desejo de “pintar como Velázquez, mas com a textura de pele do hipopótamo”.

“Study for Chimpanzee”, 1957

Óleo e pastel sobre tela, coleção Peggy Guggenheim
Foto: David Heald

“Figure Study II”, 1946-47

Óleo sobre tela, Galerias Nacionais da Escócia, por empréstimo da galeria Huddersfield
Foto: Prudence Cuming Associates Ltd

O esbatimento da fronteira entre o humano e o animal tem uma intenção: relembrar como os instintos estão logo abaixo da superfície, prontos a emergir. Mesmo anos mais tarde, quando optou por retratar os amigos, a vida selvagem continuaria a ser a sua pedra de toque, injetando a brutalidade do animal nas veias do humano, mostrando como é frágil o verniz de civilização que nos separa do animal.

Sentimos também aqui outra mensagem poderosa: a de que homem e animal dependem um do outro para sobreviver, numa adivinhação do futuro que é a marca dos génios.

Carne, pele e osso

A grande maioria das suas telas foram pintadas depois da Segunda Grande guerra, num tempo em que filósofos e escritores puseram a nu as forças do mal que pulsam na natureza humana e a sua capacidade para gerar violência a uma escala aterrorizante.

Bacon coleciona desde cedo uma profusão de fontes para o seu trabalho, de recortes de imprensa, a discursos de Hitler, a livros sobre patologia forense. Atraem-no imagens relacionadas com o poder, o corpo e a fronteira entre o visível e invisível.

Em 1933, produz a sua primeira pintura aclamada, aqui em exposição: “Crucifixion”. Foi pintada quando tinha 24 anos, próximo da idade em que decidiu ser pintor. Tendo crescido numa família protestante, conhecia a história da crucificação, embora não tivesse qualquer crença religiosa. Na crucificação via apenas um ato de comportamento humano, cheio de desamparo e crueldade, e nada que conduzisse à redenção. Estou em frente da tela para comprovar o muito que se disse sobre ela. Pendurado num vazio escuro, está um fantasma de corpo esquelético, uma mortalha de carne esticada, é um dos pressupostos da arte de Bacon, o de que o corpo humano, os seres são fundamentalmente animais feitos de carne, pele e osso. Nas suas palavras, somos carne e, como tal, carcaças em potência.

Bacon é um artista cheio de técnica. Não havia outro que manuseasse a tinta tão bem, com tanta força e variedade, ou que tenha trabalhado tanto para alcançar os efeitos desejados. Sabia com exatidão onde devia aplicar a tinta, engrossá-la, diluí-la, espalhá-la cuidadosa ou imprudentemente, para agarrar o espectador pelos olhos e penetrar-lhe os tendões.

Inspirado em Pablo Picasso, a partir de 1944, o trabalho de Bacon deu origem aos biomorfos, estranhas criaturas híbridas, cujos corpos prateados se esticam, agacham, ou soltam gritos primitivos (note-se a ausência de olhos). Tais biomorfos exploram o que Bacon chama de forma orgânica por ele associada à imagem humana, mas uma completa distorção da mesma, pois têm dentes caninos, longos pescoços e são quadrúpedes; apenas um ouvido humano ou pedaço de cabelo lhes empresta alguma familiaridade humana. O efeito inquietante dos biomorfos é por vezes amplificado pela inclusão de chapéus, guarda-chuvas e flores, símbolos dos costumes polidos da vida quotidiana.

Alguns desses biomorfos floridos e perturbadores mostram-se por aqui. São as “Figure Study” I e II, produzidas entre 1945-46, a “Fury” de 1944, e o “Study for a Figure” de 1945 (imagens 5, 6 e 7).

Uma técnica poderosa para desferir uma mensagem

Bacon é um artista cheio de técnica. Não havia outro que manuseasse a tinta tão bem, com tanta força e variedade, ou que tenha trabalhado tanto para alcançar os efeitos desejados. Sabia com exatidão onde devia aplicar a tinta, engrossá-la, diluí-la, espalhá-la cuidadosa ou imprudentemente, para agarrar o espectador pelos olhos e penetrar-lhe os tendões. Porque era disso que se tratava. As pinturas deviam ter um imediatismo que desencadeasse os sentidos antes da compreensão consciente: “Para destravar as válvulas do sentimento e, assim, devolver ao espectador a vida com mais violência”, explicou.

O que se sente é cruel, pesado, bruto e em cru, a existência reduzida aos atos mais orgânicos, de ingestão de comida, cópula e defecação (num tríptico que aparece mais à frente) e a um insistente ato de gritar, um grito perfurante, expelido das bocas dentadas, em rebento de dor e sofrimento. Fica clara a negação de que a vida humana tenha qualquer “propósito superior”, ou que a arte e a natureza conectem de alguma forma com Deus. Bacon é o ateu completo, antimetafísico, antitranscendente. Nascimento, cópula, morte, fim da história.

“Fragment of a Crucifixion” (1950) é mais uma pintura nihilista que alinha o tema da crucificação com o instinto animal de sobrevivência. Dependurado vemos um cão ou criatura parecida com um gato com um ferimento na cabeça em perseguição de um corpo alado, desenhado com base na fotografia de uma coruja retirada do livro Aves em Acção de 1939 (Bacon substituiu a ratazana no bico da coruja por uma boca humana). A propósito da composição, falou de “todo o horror da vida, de uma coisa viva vivendo à custa de outra”, sem que alguma vez pretendesse ser um defensor dos direitos dos animais. O que perturba não é apenas ver a criatura condenada à voragem do predador, é o seu sofrimento ser completamente ignorado.

Francis Bacon, English Painter

O pintor inglês Francis Bacon, fotografado em janeiro de 1984

Gamma-Rapho via Getty Images

Em 1982 foi produzido um documentário para assinalar o encontro entre Bacon e Burroughs, escritor da geração Beat,  É curioso perceber como a figura enérgica de Bacon contrasta com a do autor de Naked Lunch, fleumático e introvertido. Com honestidade desarmante, Burroughs revelou posteriormente que embora ambos fossem atraídos por assuntos mórbidos e fossem homossexuais, pouco mais tinham em comum. “Bacon gosta de condutores de camiões de meia-idade, eu de jovens rapazes. Ele zomba da imortalidade, eu acho que é a única coisa que vale a pena. Claro que estamos associados por causa da morbidez do nosso tema em comum”, concluiu Burroughs.

A década de 50

Na década de 50, Bacon era um artista estabelecido. Durante esses anos pintou vários animais, alguns dos cães, corujas e chimpanzés que vemos na exposição. Muitas vezes a composição é centrada num único animal e no sublinhar das suas qualidades “humanas”. O cão foi o animal que Bacon mais pintou, adaptado das fotografias de mastins, tiradas pelo famoso fotógrafo do século XIX, Edward Muybridge.

Em “Dog” (1952), o cenário foi provavelmente baseado num cartão postal dos cuidadosos jardins de Monte Carlo, onde Bacon viveu de 1946 a 1950. Com as costas curvadas e a língua ofegante, o cão parece exausto e isolado no recinto nu de um vermelho hexágono, o tráfego flui alheio ao seu sofrimento. “Study for Chimpanzee” (1957), óleo e pastel sob fundo cor de rosa, captura inquestionavelmente um ser pensante e sensível. E em “Chimpanzee” (1955) o grito do chimpanzé enjaulado regista a dor emocional, até mesmo existencial. A gaiola em cubo evoca como as pessoas estão aprisionadas em formas de sociedade e se conformam com uma série de convenções, e como o homem é cativo da sua mente atormentada.

Bacon socorre-se muito de gaiolas, provavelmente inspiradas nas de Giacometti, escultor que admirava. A ideia é sombria. Cativo de um paradoxo, apanhado entre o reino animal e cultural, a natureza e a razão, o instinto e o pensamento, o desejo selvagem e o comportamento civilizado, o homem resultou mais enjaulado e aprisionado do que liberto. Construiu uma biblioteca de livros e revistas sobre vida selvagem, e acumulou um stock de imagens de animais na selva, albergado no seu estúdio, de Cromwell Place, South Kensington. Ia também regularmente ao Jardim Zoológico de Londres.

A exposição é longa, reúne 45 telas produzidas em 60 anos de carreira, ao longo de várias salas da Royal Academy of Arts, com o impacto de telas e trípticos gigantes que atingem três metros de altura e ocupam por vezes a largura de uma parede. As salas foram propositadamente pintadas em matizes de verde escuro, encarnado temperamental e bege árido.

No início dos anos 50, fez várias viagens ao sul da África para examinar em safaris a vida selvagem. A mãe mudara-se para a Rodésia do Sul (atual Zimbabué) depois da morte do marido em 1940, e duas irmãs com os sobrinhos viviam agora na África do Sul. É por esta altura que declara estar “hipnotizado” por animais selvagens, movimentando-se sobre o capim, e pinta uma série de pinturas com humanos nus em figuras agachadas ou rastejando por pastagens. Tais paisagens estão carregadas com a adrenalina da dinâmica de poder, da perseguição e da briga final, contendo muitas vezes fortes conotações sexuais.

É o caso de “Man Kneeling in Grass” (1952), homem que rasteja como um quadrúpede, musculado, cuja pose pode parcialmente derivar da fotografia de um rinoceronte de Marius Maxwell tirada na África Equatorial. Uma presença fantasmagórica ao fundo sugere um predador à espreita ou em posição de voyeur.

A erva alta ou capim aparece também num dos seus quadros mais polémicos: “Two figures in the grass” (1954), denunciado por duas mulheres à polícia quando foi exibido pela primeira vez em 1955 (o primeiro passo para a legalização da homossexualidade no Reino Unido ocorreu apenas 12 anos mais tarde).

O tema das duas figuras é retomado em “Two Figures” (1953), sem tentativas de romantismo ou lampejo de redenção concedida pelo amor. Com uma brutal honestidade, o artista mostra como a distinção entre lutar e fazer amor é ambígua, baseando-se talvez na sua própria vida que havia tomado um rumo obsessivo e masoquista. A composição tomou como molde fotografias de homens a lutar de Muybridge.

Anos 60 entre amigos e companheiros

A exposição é longa, reúne 45 telas produzidas em 60 anos de carreira, ao longo de várias salas da Royal Academy of Arts, com o impacto de telas e trípticos gigantes que atingem três metros de altura e ocupam por vezes a largura de uma parede. As salas foram propositadamente pintadas em matizes de verde escuro, encarnado temperamental e bege árido de modo a condizer com a paleta do artista, os tons conjugados com uma iluminação subtil e teatral criam o cenário ideal para o melodrama da vida de Bacon. O curador foi o amigo íntimo e biógrafo Michael Peppiatt que fez um trabalho de qualidade.

“Head VI”, 1949

Óleo sobre tela, coleção Arts Council, Londres
Foto: Prudence Cuming Associates Ltd

“Owls”, 1956

Óleo sobre tela, coleção privada
Foto: Prudence Cuming Associates Ltd

Depois dos seus seres bimorfos e dos animais, Bacon também personificou o homem metropolitano, através do círculo de amigos íntimos e amantes com quem conviveu no coração boémio de Londres. A partir de meados da década de 1960, produziu tais retratos em painéis individuais, dípticos ou trípticos. Imortalizou Peter Lacey, o amor da sua vida, amante violento e sadomasoquista que conheceu em 1952, com quem permaneceu até 1955. Peter costumava bater-lhe com um cinto de couro cravejado, fê-lo perder vários dentes e até um olho lhe foi cosido depois de Bacon ter sido atirado de uma janela abaixo.

Aqui o vemos em Study for Portrait of P. L. No. 1 (1957).

Em contraste com o forte poder físico que Lacey exercia em Bacon, ele é apresentado nu e vulnerável, o corpo enrolado sobre um sofá como um animal doméstico, tapando com a mão o rosto, talvez em dor ou sinal de remorso. “Landscape Near Malabata, Tangier” (1963) é outra homenagem de Bacon a Peter Lacey, produzida no ano seguinte à sua morte por alcoolismo. Malabata, na costa de Marrocos, é o lugar de descanso final de Lacey. O casal passou bastante tempo junto a Tânger — cidade que atraiu muitos artistas e escritores, e Bacon soube da sua morte por telegrama, pouco antes de uma retrospectiva na Tate, em 1962, ter sido inaugurada.

O amante que se seguiu foi George Dyer. Bacon conhece este pequeno criminoso do East End, em 1963, e durante oito anos mantêm uma relação afetiva turbulenta, até que ele se suicida dias antes de outra grande retrospetiva de Bacon no Grand Palais, em Paris. Dyer foi memorializado nos “Black Triptychs” e em vários retratos póstumos. O suicídio de Dyer tornou o artista ainda mais sombrio, introspetivo e preocupado com a passagem do tempo e a morte.

Bacon era carismático, bem falante e um bom leitor. Passara a meia-idade comendo, bebendo e jogando no Soho de Londres entre amigos que pensavam como ele e entre os quais se contavam Lucian Freud e Henrietta Moraes (existem também dois retratos dela na exposição). Gozava mesmo a reputação de passar mais tempo em pubs, boates e casas de jogo do que no seu estúdio de Kensington Mews, mas estava sempre acordado às 7 da manhã para pintar. Após o suicídio de Dyer, distanciou-se do círculo, embora se conservasse socialmente ativo, e teve um relacionamento final, platónico e um tanto paternal com o seu herdeiro, John Edwards, um barman iletrado, 41 anos mais novo do que ele que, após a morte de Bacon, se tornou milionário.

Bacon não fez um, mas uma série de 50 Papas que gritam. Em exibição está apenas a "Head VI" (imagem 18), única sobrevivente da série, já que Bacon era perito em destruir o trabalho de que não gostava. Não sabemos se as restantes cabeças antecediam ou sucediam a esta, mas sabemos que a que vemos foi pintada em 1949.

Na sua busca do figurativo, Bacon foi contra a corrente, descartando quer o expressionismo abstrato, quer o minimalismo, predominantemente abstratos. Também não lhe interessava a “ilustração” realista. Os seus nus abandonaram a tradição de idealização e desejo. O género é muitas vezes ali ambíguo. E ao contrário das figuras de outros artistas da década de 1950, obscuras em vazios escurecidos, os corpos de Bacon irrompem contra fundos claros, adotando poses contorcidas ou esparramadas sobre camas.

“A Cabeça do Papa”

Outra das suas obras icónicas. Que outro artista se lembrou de fazer do Papa uma figura tão aviltante, uma figura que oscila entre a angústia, a raiva, a fúria? Bacon não fez um, mas uma série de 50 Papas que gritam. Em exibição está apenas a “Head VI”, única sobrevivente da série, já que Bacon era perito em destruir o trabalho de que não gostava. Não sabemos se as restantes cabeças antecediam ou sucediam a esta, mas sabemos que a que vemos foi pintada em 1949, e que em 1946 Bacon escreveu a um casal de amigos, incluindo o artista Graham Sutherland, dizendo que estava a trabalhar em três pinturas inspiradas no retrato do Papa Inocêncio X (1574-1655) pintado por Diego Velázquez (em 1650).

Mas porque estava Bacon tão obcecado com este quadro de Velásquez que lhe inspirou mais trabalhos? Primeiro, sabia quão bom o mestre espanhol havia sido. Depois, o Papa prestava-se a uma substituição, podia representar além de Deus, o pai ou qualquer autoridade máxima indisputável. Se o retrato de Velásquez não foi pintado em tons favoráveis ao Papa, o de Bacon projeta uma natureza imensamente mais negra e ambivalente, é simultaneamente uma autoridade sem amor (note-se o gelo do olhar) que o pintor contesta e acusa, numa acusação que não passa despercebida ao observador, e um ser que implora por ajuda.

“Portrait of George Dyer Crouching”, 1966

Óleo sobre tela, coleção privada
Foto: Prudence Cuming Associates Ltd

 

 

“Study for Bullfight No. 1”, 1969

Óleo sobre tela, coleção privada
Foto: Prudence Cuming Associates Ltd

 

 

Numa entrevista com o crítico de arte David Sylvester em 1962, Bacon explicou que o retrato de Velásquez “o perseguia, lhe provocava todos os tipos de sentimentos, lhe abria a imaginação”. Falou também da forma como o mestre espanhol manuseava a tinta, e como a utilizava para ir além da superfície e revelar o caráter do sujeito. Foi ainda nessa entrevista que Bacon disse que queria “pintar como Velázquez, mas com a textura de uma pele de hipopótamo”. Tinha que ser tão bom quanto o mestre, mas mais áspero e duro, como ele exigia do século XX.

Em “Head VI”, o que Bacon pretende é captar algo da vida interior de Inocêncio X, é nisto que pede que nos concentremos e que cabe ao público decidir. Por isso, o ser não tem qualquer relação com a sua mobilidade – as pernas não existem – e tudo o que precisamos de saber está contido na gaiola branca esboçada num traço, bastante frequente na obra de Bacon, e que transmite também a sensação de o homem estar sozinho no universo, solitário e isolado.

Trípticos

A partir da década de 1960, o tríptico em grande escala tornou-se a forma preferida de expressão, lançando-se ao desafio de pintar várias figuras numa única composição, mas evitando o “aspecto de contar histórias”. O tríptico “Studies of the Human Body” (1970) revela esse montar e agarrar de ideias sem criar uma narrativa. Aqui pela primeira vez aparece uma figura feminina, ou talvez três, movendo-se sobre um feixe branco curvo como se fossem acrobatas ou contorcionistas. O aparente ser feminino é acompanhado de um guarda-chuva, que retorna, e representa a necessidade de proteção. Bacon sugere um ciclo sem fim e sublinha a natureza interminável do apetite carnal.

O vulto mais à direita — baseado numa pintura de Narciso — carrega o perfil de Bacon, representando o narcisismo do artista.

O facto de Bacon evitar a narrativa parece estar em contradição com o seu interesse por histórias mitológicas. No entanto, elas desempenharam um papel central no estímulo da sua imaginação. A Oresteia, uma trilogia de peças do escritor grego Ésquilo, causa nele uma forte impressão. O drama explora os temas de culpa e vingança representada nas “fúrias” — deusas femininas que aparecem na sua obra repetidamente. Bacon foi assombrado pela frase da Oresteia “o cheiro do sangue humano sorri para mim” e a estética vívida do sangue é utilizada em muitos trípticos da década de 1980.

Em conversa com o fotógrafo americano Peter Beard, com quem partilhava a paixão por África e pela vida selvagem (mais de 200 fotografias de Beard foram encontradas no estúdio de Bacon após a sua morte), disse: “A morte é a única certeza absoluta. Os artistas sabem que não podem vencê-la, acho que a maioria dos artistas estão muito conscientes da sua aniquilação – persegue-os como uma sombra”.

Veja-se o sangue do “Triptych Inspired by the Oresteia of Aeschylus” (1981) — vendido por 85 milhões de dólares na Sotheby’s há dois anos — e o sangue da “Second Version of Triptych 1944” (1988) onde regressa às “fúrias” de 1944 para lhes aumentar a escala e substituir o fundo laranja por um tom vermelho vívido (imagens 20 e 21). A sombra da Segunda Grande Guerra continua a pairar sobre esta segunda versão.

Aproximamo-nos do fim com “Three Figures in a Room” (1964), ali uma plataforma vazia e circular torna-se uma “sala” metafórica para encenar o repetitivo ciclo da existência diária: ingestão, sexo e excreção. O modelo é George Dyer, o amante de Bacon, representado com pinceladas dinâmicas de tinta em contraste com a configuração estática.

Bacon explora nessa simultaneidade, um dos seus temas mais recorrentes: a mortalidade, a voragem do tempo, a futilidade da vida. Em conversa com o fotógrafo americano Peter Beard, com quem partilhava a paixão por África e pela vida selvagem (mais de 200 fotografias de Beard foram encontradas no estúdio de Bacon após a sua morte), disse: “A morte é a única certeza absoluta. Os artistas sabem que não podem vencê-la, acho que a maioria dos artistas estão muito conscientes da sua aniquilação — persegue-os como uma sombra”.

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