Anda nisto desde que nasceu. Até o levaram ao mar quando tinha apenas 15 dias de vida. Já bateu o seu próprio recorde e hoje, com 34 anos, feitos no início de agosto, ambiciona mais: Francisco Lufinha quer ligar os Açores ao continente em kitesurf. Vai ser uma travessia de mais de 1.500 quilómetros no oceano Atlântico, viagem que pode demorar mais de uma semana em alto mar, e que pode valer um novo recorde mundial.
A iniciativa – Portugal é Mar – surgiu quase como uma “aposta entre amigos”, quando pensou em ligar toda a costa do continente, de norte a sul. Lufinha arriscou e, em 2013, conseguiu ligar Porto a Lagos (564 quilómetros) em 29 horas. Isso valeu-lhe o título de recordista mundial masculino. “Correu bastante bem e deu um gozo enorme. Os patrocinadores gostaram e as pessoas também aderiram bastante. Então pensámos: porque não tentar ligar todo o mar português?”, sempre sem esquecer a necessidade de chamar a atenção para a sustentabilidade dos oceanos. Um ano mais tarde, em 2014, repete o desafio, desta vez entre as Ilhas Selvagens e a ilha do Funchal: foram 306 quilómetros em 12 horas. Em 2015, bate o próprio recorde e em 48 horas percorreu 874 quilómetros, ao ligar Lisboa à ilha da Madeira.
Lufinha, no entanto, não “vive do mar” – ou depende apenas dele. Formou-se em Engenharia e Gestão Industrial no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, mas rapidamente percebeu que “queria fazer coisas diferentes”. Trabalhou em consultoria e auditoria, mas achou “repetitivo”. Montou o seu próprio negócio e tem hoje uma empresa de gestão de eventos náuticos, onde aluga barcos a estrangeiros. Tal decisão surgiu, confessa, porque fazia mais sentido “um negócio ligado ao mar para poder estar mais tempo no mar do que antes”.
Kitesurf é...
↓ Mostrar
↑ Esconder
… um desporto aquático que consiste em deslocar-se com os pés apoiados sobre uma prancha e preso pela cintura a uma estrutura semelhante a um parapente. A deslocação é impulsionada pelo vento, o que permite mover-se a grande velocidade e fazer grandes saltos sobre a água.
Este ano o desafio tem algumas novidades. A travessia — cuja partida está agendada para segunda-feira, dia 4, às 13 horas (14h no continente) — vai ser feita em dupla com a atleta alemã e também recordista de kitesurf Anke Brandt, que ligou 491 quilómetros (de Bahrain a Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos), em 30 horas. Uma prova (e uma viagem até aos Açores) que a kitesurfer também fez questão de promover através da sua conta de Instagram.
https://www.instagram.com/p/BYdK3fQFQ9R/?hl=en&taken-by=ankeinbrandt
O desafio é arriscado e pode pôr em risco a sua vida, mas também a da equipa que o acompanha – mas Francisco Lufinha tem estado a preparar-se nos últimos meses. Uma preparação rigorosa que envolve cuidados com o físico, mas também com a alimentação. Não é por isso de estranhar que peça um pão de sementes com uma fatia de queijo no pequeno-almoço que toma enquanto explica ao Observador a sua próxima grande aventura. Uma conversa na véspera da partida para os Açores, marcada na zona ribeirinha de Lisboa. Junto à água. Onde mais poderia ser?
Vai fazer uma prova rigorosa. De que condições é que depende uma prova com esta dimensão?
O que se quer é vento forte. O mar o mais baixo possível, sobretudo por causa do barco de apoio, porque eu, de kitesurf, consigo desviar-me das ondas. E também haver lua cheia, para podermos ver à noite.
Como se inicia a prova? É só entrar no mar e começar a contar?
Sim. Saímos num catamarã à vela desde a Marina de Ponta Delgada e, mal tenha um sítio com vento, levantamos o kite do próprio barco de apoio e metemo-lo no mar.
E o ponto de chegada?
Vai sempre depender do vento. Poderá ser no norte, no centro ou no sul. Se o vento nos empurrar mais para sul, vamos para sul. É para onde o vento nos levar, mas vamos sempre apontar o rumo para o centro.
O que pode correr mal numa prova destas?
O vento pode falhar completamente e isso é uma ameaça. Nessa situação ficamos à espera, no meio do oceano, seja dia ou noite. É bastante perigoso e não é saudável, porque o corpo começa a arrefecer e não é nada bom para recuperar outra vez. Também temos o outro oposto que é uma grande tempestade com ondas e vento muito fortes que põem em risco não só a minha vida como a da minha equipa. O que faço pode ser perigoso e às vezes tem alturas menos tranquilas. Tem outras em que até é tranquilo demais, mas são alturas perigosas por não haver vento e eu não andar.
O que é que se sente quando se está em alto mar tantas horas? No que é que se pensa?
Costumo dizer que há quem vá para Fátima fazer retiros. Eu faço estes retiros no mar. Estás completamente na tua. Estás tu, o vento, os peixes, o mar, o teu kite e a tua equipa e vais falando. Mas tens muitos momentos em que a coisa está a fluir bem e em que não há nada para fazer, tens de ‘fazer kitesurf‘. É gerir o esforço e seguir em frente e é aí que consegues refletir muito sobre o que é que fizeste o ano passado, o que é que tens por melhorar, o que é que ainda gostavas de fazer. Isto é um retiro para mim, é um refúgio onde me meto no mar e estes desafios são muito especiais por causa disso. Regra geral, saio sempre dos desafios com novas ideias, porque precisamente durante esse tempo vou magicando novas coisas.
Mas chegas a ter dores, a sentir cansaço…?
Há sempre uma dor. Em qualquer desporto é assim, na primeira meia hora está a doer tudo e parece que não vai dar.
Nunca te faltaram as forças?
Já! E quando começam as cãibras então é muito chato. Nessas situações, temos uns exercícios de alongamentos com os quais nos defendemos. Vou fazendo kitesurf, mas a alongar. Vou um bocado torto, estou a alongar uma perna e a trabalhar a outra.
Mas nunca pensas em parar…
Pensas. Pensas várias vezes em desistir, mas tens que te aguentar. Olhas para o barco e é uma sensação muito boa, vês a tua equipa ali, os olhos deles e não desistes. Até porque tens muitos parceiros à priori e então isso acaba por ser um compromisso que estabeleces com “aquela pessoa” que te arranjou um fato ou uma prancha. Depois não tens lata para voltar atrás e dizer ‘epá, afinal não vou fazer isto porque me estão a doer os joelhos’. Quanto menos parares, melhor. Podes parar no barco mas estás a perder tempo e, regra geral, só não paro porque um minuto que estejas parado é um minuto de prova que depois ainda vais ter de fazer.
Como chegaste a esses parceiros? Foi fácil?
O primeiro foi o mais difícil. A partir do momento em que dás uma prova de que a coisa funciona, torna-se mais fácil, mas não passa a ser facílimo nunca.
E quanto é que custa um projeto destes? Quem é que financia?
[Risos] Isso não se pode dizer por causa dos patrocinadores.
Como comunicas com a equipa?
Temos todos os equipamentos de segurança necessários e ainda temos mais extras que não são obrigatórios. Eu e o barco estamos sempre ligados, via bluetooth e via VHF (Frequência Muito Alta), e o barco tem as comunicações satélite, que são os telefones e as antenas. Todas essas medidas são reforçadas nestes desafios.
Quanto tempo demorou a preparação da prova?
Já estou a preparar esta há um ano e meio, desde o início de 2016. Foi a que durou mais tempo a preparar.
És tu que marcas esse deadline, que diz “olha, vamos começar hoje os treinos, quero ver se em agosto começamos esta etapa”?
Sim. Por exemplo, eu queria ter feito isto em 2016, mas não consegui reunir os apoios suficientes, por isso passou para 2017. Tem de ser sempre no verão porque as condições são mais fáceis.
Quais as expetativas que têm para esta prova?
Nós acreditamos que deve durar entre cinco e dez dias. Gostávamos de ter vento norte, tudo menos leste porque é contra. Não precisamos de vento fortíssimo, porque temos pranchas que andam fora de água com menos vento mesmo por causa disso. Só que a distância é tão grande que não conseguimos prever mais do que dois ou três dias de condições de vento.
Mas não conseguem “manipular” o percurso, tendo em conta os ventos que recebem?
Sim, mas a escala é tão grande que, se fores mais para cima para ir buscar um vento, só esse desvio, se calhar, custa mais dois dias. Mais vale ires em frente e parares a boiar à espera que venha vento. Nós não vamos conseguir dizer ‘ok, vai estar vento a viagem inteira, por isso vamos arrancar amanhã’, isso é impossível. Não há esse alcance, porque a distância é muito grande. O que vamos fazer é arrancar quando houver vento para arrancar. É um bocado por aí. Depois, nos três dias seguintes, logo vemos e é até chegar.
Como é que um atleta se prepara para um desafio destes?
A nível físico acaba por ser um pouco o “costume”. Eu treino resistência, não treino sprints, por isso não consigo estar muito tempo ‘a abrir’. O que eu e o meu fisioterapeuta fazemos é programar treinos de longa duração. Estamos uma hora a correr, outra a fazer bicicleta, outra a nadar, para que o corpo se habitue a estar a gastar pouco, mas aguentando muito tempo. É muito um treino de resistência muscular, que é o que acaba por ser este desafio.
E a nível alimentar?
Basicamente tens de moderar os hidratos conforme o treino que fizeste. Os dias não são todos iguais, portanto se eu tiver X horas de treino num dia posso comer mais hidratos ou mais proteína para recuperar a perda muscular.
Não fazes excedente de hidratos para ter mais energia, por exemplo?
Antes de fazer a prova sim, podes comer os hidratos. A gordura tira-se toda, exceto nestes últimos dias antes do arranque, onde já podes comer um pouco mais. Mas a base é leguminosas, muita salada, muita fruta.
E sai-se à noite ou não?
Esquece, essa parte da vida social à noite não. Há vida social, mas é durante o dia. À noite não. Mas posso beber uma cerveja sem álcool, é uma maneira de dar a volta se estiver com amigos.
E durante a prova, como é a alimentação?
Este ano vai ser diferente porque vou em estafeta, então já vou ao barco de vez em quando trocar para dormir e para comer qualquer coisa quente, que nunca existiu até hoje. Antes não acontecia, antes era barras energéticas, wraps com frango e legumes cozidos a vapor para manter as propriedades, gaspacho, por aí.
Como é que a comida chega até ti?
A comida é carregada no barco de apoio e depois sou eu que vou até barco enquanto estou em andamento com a mão esticada e pego.
E na questão da casa de banho? Como se contorna essa necessidade?
Tenho um fato com uma abertura à frente. Bebo um litro e meio de água, que está na mochila, a cada duras horas. Essa água tem de sair e a abertura permite fazer tudo para fora. O resto faço no barco. Nos outros desafios fazíamos uma previsão de alimentação sem fibras e eu não ia à casa de banho. Desta vez já vou poder ir, porque vou ao barco de vez em quando.
O fato tem algum reforço especial?
A parte de baixo é um fato de surf normal com essa abertura. Depois tenho um colete por cima e um revestimento corta-vento. Como estás sempre molhado e o que faz frio é o vento a bater no teu corpo, essa camada evita que o vento passe.
Como surgiu a ideia de fazer esta travessia agora em dupla?
Surgiu no último desafio que fiz, em 2015, quando liguei Lisboa à Madeira. Nas últimas 48 horas comecei a alucinar. Depois de tanto tempo sem dormir começas a ver coisas que não existem, começas a sonhar acordado.
O que é que vias?
Via uma falésia no meio do mar, mal nasceu a lua no segundo dia. Lembro-me de estar com outros kitesurfistas numa regata durante uma prova e de estar a falar com eles. Lembro-me de ter a minha equipa ‘real’ a chamar-me através do rádio e de eu lhes dizer: ‘epá, estes gajos estão a chatear-me, tenho de ir para ali testar um kite‘.
Isso ao fim de quantas horas no mar?
Isto foi passadas umas 36 horas sem dormir. Juntas isso ao esforço físico, ao sal e ao sol e é muito cansativo e desgastante. Era uma série de alucinações. Eram baleias, bichos, espumas a rebentar com uns olhos de fora… Era surreal.
E isso acabou por promover a formação desta dupla…
Isso levou-me a pensar que, se em 48 horas eu já alucinava, cinco dias então não ia dar. Há que ter alguma cabeça, então pensei ‘o meu objetivo é ligar o território todo, já bati o meu recorde, então vamos convidar um estrangeiro para, não só permitir isso mesmo, como também projetar o nosso mar lá fora’. Fui investigar e encontrei a Anke que tem o recorde equivalente ao meu, mas no feminino. Lancei-lhe o desafio e ela aceitou.
O que é que a dupla vai trazer de diferente?
Vai trazer as trocas, as estafetas. Há um testemunho em contínuo que é o mapa que faz a travessia toda e pronto, é perceber como corre. Acabamos por nos complementar, porque ela está mais habituada a andar com pouco vento e eu estou mais à vontade a andar com muito vento, o que é ótimo. Podemos jogar com situações de pouco vento ou de uma grande tempestade.
Como é o apoio dos teus seguidores e dos teus fãs? O que é que já te disseram que mais te marcou?
Por vezes sou convidado para ir a escolas ou empresas contar as minhas experiências e para servir de inspiração a essas pessoas. Nos eventos de team building tenho pessoas que me dizem que lhes dei muita força ou que as ajudei a ultrapassar certas situações e é muito bom ouvir isso.
De todas as travessias que já fizeste, que momento é que destacas? Qual foi o episódio que mais te marcou até hoje?
Foi na ida para a Madeira, na primeira noite. Ainda estava muito lúcido e íamos muito rápido, mas já eram umas 11 horas da noite e a lua ainda não tinha nascido. Tropecei numa onda, a prancha prendeu e, para não me magoar, saltei para a água e acabei por ficar longe da prancha. Estava escuro e não a conseguia ver. O barco não me viu nessa altura e continuaram. Bastava que tivessem olhado no segundo antes, mas seguiram. Eles iam muito rápido, portanto ficaram longe imediatamente. Fiquei sozinho ali no mar e às escuras. Tinha o comunicador, mas com a velocidade a que eles iam perdeu o contacto e o rádio avariou com a água. À medida que via o barco a afastar-se começava a entrar em pânico.
O que é que te passou pela cabeça nessa altura?
Pensei que ia ficar ali, foi muito mau. Estares no meio do oceano e não veres nada. Pensas em tudo. Pensas em bichos que ficam por baixo e de repente és um foco. Sabes que tens a tua equipa ali e sabes que te vão encontrar, mas ficas nervoso. Foi um momento muito mau.
E o que fizeste nessa situação?
Tive que ativar um foguete luminoso que tenho sempre na mochila. Aquilo fica um minuto a arder e não vês nada, ficas completamente encadeado e eles lá me viram. Tudo isto durou uns 20 minutos até eu voltar a estar com eles novamente. Depois deram-me uma prancha nova e seguimos.
Como se concilia esta atividade com a vida familiar?
Acabas por perder alguns eventos. Regra geral faço estes desafios no verão e, nesta altura, em que tenho de estar mais em forma acabo por abdicar de muitas festas e muitas noitadas. Aí peco um bocado e sofro com isso, mas dão-me um apoio enorme e consegue-se conciliar. Na família somos todos desportistas, a minha namorada costuma vir comigo e treinamos.
Depois desta prova, já são mais de 3.000 quilómetros somados em competição. Qual é o próximo passo? Já se pensa nisso?
Há-de haver outros, sim. Gostava de coisas ligadas ao Brasil, talvez. E gostava de fazer travessias maiores. Mas tudo depende, há um certo limite. Primeiro ainda vamos ver se este modelo com a Anke vai correr bem. Mas também há outras formas de se fazer kitesurf. Tem-se de pensar e inventar, mas cada coisa a seu tempo.