“Muita gente passa e não faz a mínima ideia do que está aqui dentro”, diz Jorge Gramaxo, num passeio pela Quinta da Boa-Vista, que está nas mãos da sua família desde o século XVII e mantém a face rural, embora se encontre no coração de uma cidade: a Maia. O portão principal, no número 601 da rua Conselheiro Costa Aroso, é imponente e ostenta, gravado na pedra, o brasão familiar. Há também muros a toda a volta, o que pode desencorajar potenciais avanços, mesmo estando o parque de lazer, com a sua mancha verde e mesas de piquenique, aberto ao público há anos. Apesar de ser “grátis o acesso à natureza, à calmaria”, Jorge reconhece que o lugar ainda é pouco conhecido. Daí haver faixas a reforçar o convite para entrar naquele espaço da Fundação Gramaxo, que tem novo projeto artístico e intenção de chegar aos mais variados públicos, assume o agora diretor geral.
“O facto de ser um espaço murado, com uma entrada mais austera, mais senhorial, cria um distanciamento; queremos que ele seja quebrado, que mais pessoas desfrutem da natureza no meio da cidade”, explica Jorge Gramaxo. Depois de anos a trabalhar lá fora, regressou a casa, e hoje aqui está, apostado em dar visibilidade a um projeto familiar de abertura à comunidade assente na arte, na arquitetura e nas atividades de lazer ao ar livre. Afinal, a quinta teve um passado ligado à agricultura, do qual subsistem algumas construções originais. O mesmo responsável lembra que havia ali vacas e outros animais, cuja alimentação provinha dos próprios campos; cultivava-se milho, batatas, couves, frutas de todos os tipos; já eram fortes os laços com a comunidade maiata, algo que se pretende intensificar.
Visitar, cultivar e regar são palavras-chave nesta nova etapa da vida da Fundação, criada há uma década e presidida por Maria de Fátima Gramaxo, mãe de Jorge, proprietária da quinta e colecionadora. Parte do seu acervo está patente no museu visível logo à entrada, um edifício de tons claros e linhas retas, com desenho de Álvaro Siza Vieira, que também funciona como sede. Junto a ele, destaca-se um extenso tanque de rega, com uma peça da autoria do mesmo arquiteto, o primeiro português a receber um prémio Pritzker. Ora, o museu, concluído em 2021, ressurge, por estes dias, com outro fôlego. Lá continua parte da coleção Gramaxo, com curadoria do próprio Siza, englobando obras de pintura, joalharia, objetos em prata e mobiliário, tudo carregado de história.
A título de exemplo, o diretor geral da Fundação aponta um prato trabalhado, com relevos, que remonta ao século XV, ou um móvel que esconde desde etiquetas com notas escritas à mão, em inglês, até chapéus que pertenceram ao avô, Samuel Gramaxo, e têm por dentro as suas iniciais. Algumas obras de artistas portugueses são especialmente valiosas e raras — como os quadros de Henrique Medina, Columbano Bordalo Pinheiro ou Vieira Lusitano, pintor régio cujos trabalhos desapareceram, em grande parte, com o terramoto que arrasou Lisboa, em 1755.
Do antigo ao contemporâneo
Aquelas peças antigas surgem de mãos dadas com outras, contemporâneas, no arranque deste novo capítulo do museu-sede, marcado pela estreia, já nesta quinta-feira, de uma exposição temporária. “Cores vistas de dentro para fora” é o nome dessa mostra coletiva, com curadoria de Maria de Fátima Lambert e patente pelo menos até 12 de maio. Ao todo, abarca obras de 15 artistas contemporâneos de diferentes gerações (13 portugueses, um brasileiro e uma espanhola). São eles Beatriz Horta Correia, Cristina Ataíde, Fátima Carvalho, Fernando Marques de Oliveira, Filipe Romão, Francisco Laranjo, Graça Pereira Coutinho, Graça Sarsfield, Lucia Vallejo, Luís Silveirinha, Martinha Maia, Martinho Costa, Susana Piteira, Wanderson Alves e Zulmiro de Carvalho.
As obras são feitas em diferentes suportes, do papel à ráfia, passando pelo vidro soprado. E todas comunicam, de certo modo, com o edifício, o traço de Siza e a “envolvente belíssima”, no dizer de Maria de Fátima Lambert. Ou seja, cria-se “uma ligação entre o dentro e o fora”, sendo claras as referências a certos aspetos da natureza e às paisagens, refere, enquanto se ultima os preparativos para a reabertura do museu e o arranque do novo projeto artístico da Fundação.
A inauguração oficial decorre, pois, no primeiro dia de fevereiro, a partir das 18 horas, com a presença de personalidades como o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva; o presidente da Câmara Municipal da Maia, António Silva Tiago; ou o arquiteto Siza Vieira. Nessa data, a visita às exposições é de acesso livre, sendo que, a partir de sábado, o bilhete normal passa a custar 3,50 euros — “um preço não capitalista”, comenta Jorge Gramaxo. Numa primeira fase, o museu vai funcionar ao sábado e ao domingo, das 10 às 13 horas e das 14 às 18 horas, com visitas guiadas nas manhãs de sábado.
A programação — que pode ser consultada online — envolve espetáculos, workshops e outras atividades, algumas temáticas, para apreciar a solo ou em família. No próximo sábado, há uma oficina infantojuvenil, visitas guiadas especiais às exposições e, ao fim da tarde, um “concerto à luz das velas”, protagonizado pelo violinista Radu Ungureanu. Mais adiante, estão previstas atividades de plantação, por exemplo, de espécies autóctones. Aliás, segundo Jorge Gramaxo, um dos objetivos passa por criar, ainda neste ano, hortas biológicas que permitam aos mais novos pôr as mãos na terra, acompanhar o crescimento das plantas e perceber de onde vem o que veem no prato.
Para lá dos muros, a desaceleração
O museu com assinatura de Siza Vieira acaba, pois, de ver refrescado o seu recheio, pretexto mais do que suficiente para uma visita à Quinta da Boa-Vista — que pode muito bem culminar num passeio bucólico. Estamos em meio urbano, com prédios e automóveis a toda a volta. Mas, para lá daqueles muros, impõe-se uma desaceleração. Há uma área privativa, de que só se obtém um vislumbre: é o solar da família, com um jardim frontal e outro, romântico, nas traseiras, pavões e uma capela com data de 1648, que foi transportada do seu ponto de origem para ali e reerguida, pedra por pedra. De resto, circula-se entre árvores de grande porte, limoeiros carregados de frutos e aves cantantes.
Seguindo por um caminho que tem, de um lado, bosque, e do outro, prado, chega-se então ao parque de lazer, onde até existe um restaurante dedicado às carnes maturadas — Coreto é o nome, porque fica instalado num. Este espaço verde é ainda pontuado por obras de arte, da “árvore de São Francisco” criada por João Cutileiro aos coloridos painéis de azulejo de José Emídio. Para ali está pensado, também, um futuro parque infantil, conta Jorge Gramaxo, sublinhando o desejo de promover atividades que permitam aos maiatos desfrutar do tempo livre sem sair do concelho. É intenção assumida atingir todos os públicos, não somente uma elite, ressalva, e a programação reflete isso.
O próprio museu acolhe peças que apelam para diferentes sensibilidades. E há atividades a decorrer noutros pontos da propriedade, entre eles a Eira e a Casa da Eira. Nesse lugar, onde se punha a secar o milho, ergue-se um grande espigueiro, vermelho escuro, elevado do chão, para evitar os roedores, que Jorge diz ser original e “raro”, pelo tamanho e pela localização. Ao lado, fica um espaço com moinhos, onde gostaria de ver crianças a fazer pão.
Planos não faltam, e alguns a realizar num curto prazo, como atestam as obras em curso no antigo armazém agrícola que há de dar lugar à Casa dos Coches, na primavera. Lá dentro, estão alguns exemplares de “carros de cavalos”, de diversas épocas e proveniências, que espelham, mais uma vez, a veia colecionista da família. Não faltam, portanto, motivos para regressar. Saímos deitando um último olhar ao museu, que pode ser encarado, por si só, como uma obra de arte.