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13 de Maio. Há quem vá de joelhos a Fátima; há quem fique a ver o Festival da Eurovisão – difícil dizer qual o mais doloroso. Na Cova da Iria, terão corrido umas aparições num cenário de enorme pobreza e simplicidade; na Arena de Liverpool, há pontuais intervalos de simplicidade numa grande aparição luminescente. Segredos? Nenhuns. Zelensky foi proibido de falar porque é contra as “regras” do Festival, dúvidas houvesse da futilidade de tudo isto.

Há, precisamente, seis anos, Salvador Sobral ganhou o festival para Portugal, no mesmo dia em que o Papa visitava Fátima e o Benfica era campeão. Hoje, o Papa não veio, o Benfica até jogou e até ganhou, mas ainda precisa de mais três pontos para ir em peregrinação ao Marquês, e uma vitória portuguesa no festival parece tão provável como uma aparição da Virgem.

A Ucrânia ganhou no ano passado, mas, com o país em guerra, a organização foi transferida para o segundo classificado, o Reino Unido, o mesmo que decidiu que, este ano, a ordem de atuações não é determinada por sorteio, mas por eles. Portugal atua em segundo, de 26, um daqueles lugares onde nunca se ganha coisa nenhuma porque, a meio, já ninguém sequer se lembra do que fomos lá fazer. Em todo o caso, para dar sorte, Mimicat pediu a todos que usassem uma peça de roupa vermelha – e eu escolhi um cachecol a dizer “Dá-me o 38”. Assim é que é bonito, digo eu. Sinergias, diria a malta dos trendings.

20h00. Acaba o jogo em Portimão e nem temos tempo para ouvir cantar Roger Schmidt; mudamos de canal e vamos diretos para o começo da transmissão. Entre Kiev e Liverpool, os Kalush Orchestra trazem uma versão da sua “Stefania”, vencedora do ano passado, intercecionada com as colaborações de Andrew Lloyd Webber, Joss Stone, Sam Ryder e até a princesa de Gales, entre outras estrelas em solo britânico. O tipo do chapelinho continua a poder passar despercebido quando e onde quiser, e há outro, de lenço e barba, que, súbita e estranhamente, parece tal e qual o Rafa. A encenação épica trá-los até ao palco do festival que, de ano para ano, é mais impressionante.

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Ao som de Chemical Brothers, Eurythmics e Blur, os concorrentes apresentam-se com uma primeira passagem pelo palco. José Carlos Malato diz que fulano “desfila” em 11.º, sicrano “desfila” em 12.º, etc. Não diz “canta” – e isso diz tudo.

20h14. Entram os apresentadores: a cantora ucraniana Julia Sanina, o apresentador irlandês Graham Norton, a cantora britânica Alesha Dixon e Hannah Waddingham, atriz, cantora e proprietária do ficcional e fenomenal AFC Richmond de “Ted Lasso”. O que é que eles estão a dizer? Não fazemos a menor ideia, porque José Carlos Malato e Nuno Galopim, os habituais comentadores da transmissão da RTP, pura e simplesmente, não se calam. Nem tentam, sequer. E olhem que os apresentadores estão aos gritos.

Áustria

“Who the Hell is Edgar”, Teya & Salena

Uma máquina de escrever projetada em fundo; duas moças austríacas vestidas de vermelho, branco e preto; uma cantiga a propósito de Edgar Allan Poe. Terei tido um enfarte nestes breves instantes e ido para o céu? A Eurovisão terá passado para a RTP2? É uma coisa de discoteca em que, na parte do “pum, pum, pum”, cantam “Poe, Poe, Poe”. A próxima – não, a próxima é a portuguesa, mas a outra – vai ser um reggaeton sobre Joyce. Vão ver.

Portugal

“Ai Coração”, Mimicat

Mimicat não trouxe o sofá da atuação nacional e é uma pena, porque era um bonito statement acerca da nossa forma de fazer coreografias. Em vermelho quase total, como o seu corpo de baile e prometido, reinstala aquele ambiente de vinheta de filme de um passado alternativo que cruza portugalidade e cabaré, Jessica Rabbit e Kusturika. Receamos, porém, que o que ganhou em segurança se tenha perdido em nervo.

Suíça

“Watergun”, Remo Forrer

Uma canção pacifista como convém à neutral Suíça. Fala de pistolas de água – bisnagas de água, como também se poderia dizer nalgumas regiões do país –, de não querer ir para guerra nem brincar com armas reais. Tema muito decente, mas daqueles que parece que já ouvimos, espécie de Hozier e outros tantos.

Polónia

“Solo”, Blanka

Mais um país vermelho e branco – está tudo a pensar no mesmo – ou vermelho e blanko, para ser mais preciso. Temazinho poppy, à laia do hit de Verão que diz, hã, Polónia por todo o lado. Basicamente, estamos perante o clássico “antes só que mal-acompanhada”. Um “Sozinha”, de Ágatha, em mais fresquinho. Já ouvimos vozes mais seguras na gala dos Pequenos Cantores da Figueira da Foz.

Sérvia

“Samo Mi Se Spava”, Luke Black

Mais um país vermelho e branco, mais um tema em que até o nome do intérprete é um cliché. Luke é uma mistura de figurante da “Noiva Cadáver” e Robert Smith para principiantes, que desperta de um feitiço ou acorda para um, rodeado de um conjunto de bailarinos que lembra um Grupo de Operações Especiais a quem puseram qualquer coisa na bebida. Como faltámos às aulas de sérvio, não podemos garantir, mas parece haver uma sugestão de transformação em inseto, qual “Metamorfose” de Kafka (mas, depois da canção sobre Allan Poe, podemos ser nós a delirar).

França

“Évidemment”, La Zarra

A Mimicat francesa canta do alto de um pedestal que lembra o quê, meus amigos? Ora pois: o Marquês – palavras vossas, não minhas. Boa canção, orgulhosamente francesa, e invulgarmente sem gangue de bailarinos acoplado (pensávamos que os concorrentes estivessem legalmente obrigados a trazer um).

Chipre

“Break a Broken Heart”, Andrew Lambrou

O título da canção e o aspeto do cantor fazem imediatamente suspeitar que estamos perante um artista que estudou música na Academia de São Holmes Place. Malato anuncia-nos que Andrew é um sex symbol australiano, estrela das redes sociais – tudo o que importa, portanto, para representar o Chipre num festival da canção. Chamem-lhe preconceito, mas temos por princípio suspeitar de músicos com um diâmetro de bícep superior ao do crânio. Dito isto tudo, e fora uns desafinos no falsete, é uma canção pop sem mácula – e sem história.

Espanha

“Eaea”, Blanca Paloma

Se pedirem ao Chat GPT: ChatGPT, faz-me aí uma musiquinha tipo espanhola para o Festival da Eurovisão, sai isto. Uma Blanca Paloma, umas sevilhanas a bater palminhas atrás, muito “niño mio” e muito “chiquito mio”. Blanca Paloma por Blanca Paloma, continuamos a preferir a “Pombra Branca” do Max. De longe.

Suécia

“Tattoo”, Loreen

Loreen já ganhou a Eurovisão em 2012, mas aí está ela de regresso – ou seja, há malta que gosta quase tanto disto como o Malato. Personagem saída de um dos volumes tardios de Alien e com umas unhas que fariam inveja a Eduardo Mãos-de-Tesoura, Loreen canta mais uma fórmula pop sem cheiro, meio ABBA, acelerada em Cher e aditivos. Os comentadores informam-nos que é uma das favoritas. A coreografia tem passos que, pessoalmente, faço todas as manhãs, enquanto luto por sair da cama. Principalmente às segundas.

Albânia

“Duje”, Albina & Familja Kelmendi

A Albina da Albânia podia ser uma personagem de Barata-Moura. A banda é a família, num espírito bonito que não víamos desde uns Mendes Harmónica Trio. Tudo começa com um grito pretensamente étnico para, depois, evoluir nessa fórmula tão em voga no festival que podemos descrever como étnico-discopop: tudo tenta ser um crossover entre tradicional e moderninho, apelando a umas raízes que parecem ser, estranhamente, as mesmas do Cabo da Roca aos Urais. Ainda assim, não é das piores. Os fatos da família são os que os ancestrais do Darth Vader usariam num batizado lá em Tatooine.

Itália

“Due Vite”, Marco Mengoni

“Duas Vidas”. Não percebemos se é o nome da canção ou se nos estão a dizer que acabámos de perder uma vida no tema anterior. Marco, um rapaz de barba e lantejoulas, traz uma bela balada naquele tom naso-épico que só os italianos conseguem emprestar à canção de amor. Tem a nossa simpatia desde logo por ser daqueles que vem cá mostrar que, quando a música é boa, não precisa de fogo de artifício nem carros alegóricos.

Estónia

“Bridges”, Alika

Mais um título banal para uma canção pacifista sobre construir um mundo de pontes. O piano é daqueles de casa assombrada, que toca sozinho, embora, de vez em quando, a Alika lá vá fingir que toca, não se percebe bem por alma de que santo. Durante a coreografia faz, distintamente, um gesto de “gamanço”. Mas nós, por acaso, só demos por aquele puxão ao Gonçalo Ramos dum dos 16 filhos do Sérgio Conceição. Para o Arturito, nem foi nada mau.

Finlândia

“Cha Cha Cha”, Kaarija

Um rapazinho, enrolado nuns restos de tecido fluorescente, a brincar às estrelas pop – basicamente, a síntese do que é hoje o Festival da Eurovisão. Se tiver tantos pontos como o nome, já ganhou. O título da canção e a própria têm a originalidade dum boneco de corda, mas a sala parece felicíssima.

República Checa

“My Sister’s Crown”, Vesna

Depois do fluorescente, um rosa suave. Ainda assim, suspeitamos que muita desta malta troca a roupa por engano na lavandaria. Malato e Galopim vão discutindo o que é pop gentrificada e o que não – e haverá maior sintoma de gentrificação do que o uso dessa palavra? Basicamente, estamos perante uma canção muito parecida com metade das anteriores, mas interpretada, neste caso, pelas meninas do quadro de honra.

Austrália

“Promise”, Voyager

Canção nº15, cliché nº12 ou 13. Aquele momento em que Israel pergunta: “Austrália? Isso é na Europa?” Há pouco falámos de carros alegóricos – e estes trazem mesmo um. Fundamentalmente, estamos perante uma daquelas bandas que fazem uns reefs ruidosos no refrão e sacodem a cabeça para passarem metaleiros mauzões. O rapaz tem boa voz para escrever à máquina do Allan Poe.

Bélgica

“Because of You”, Gustaph

E prossegue a grande festa camp que é suposto representar alguma coisa da Europa. Em branco, rosa e desafinos no falsete, Gustaph faz a sua imitação de Boy George e, no fim, o júri dirá se foi suficientemente parecido ou devia ter sido mais original. Canção a canção, temos de voltar a olhar para o papel para nos lembrarmos de que país vem aquilo, mas deve ser problema nosso. Já acabavam com a ideia de representação de cada país, não? Ia quem queria e conseguia. 20 de Espanha, 50 do Chipre, três de Malta. Assim como assim.

Arménia

“Future Lover”, Brunette

Brunette, mais um nome originalíssimo, é a terceira a começar a atuação deitada – e continuamos no tema da inovação. Podia ser a Nelly Furtado da Arménia ou a dupla para as cenas não perigosas de Rey, a princesa Leia da saga de “Guerra das Estrelas” que Rian Johnson lixou. Mas é um belo tema, “esta canção que escrevi para ti, meu futuro amante”.

Moldávia

“Soarele si luna”, Pasha Parfeni

Mais um tema muito electroétnico com ecos típicos da mesma terra inventada pela Albina da Albânia e pelas servas do quadro de honra da Chéquia. Basicamente, a ideia é esta: foi isto que ganhou no ano passado, pode ser que os gajos comprem outra vez e não reparem. Até a flauta parece a mesma dos Kalush Orchestra. Já os totós em forma de cornetim (ou unicórnio. Ou rinoceronte) das moças do coro impõem respeito. Ainda assim, podíamos ter levado o Rão Kyao para a troca. Para esta malta ver o que é uma flauta.

Ucrânia

“Heart of Steel”, Tvorchi

Os vencedores em título e país que mais festivais da Eurovisão ganhou neste século. Um dos problemas dos concorrentes que escolhem cantar em inglês é que se percebe o nível de profundidade das letras: “life is just a game”, blá, blá, blá. Ainda assim, é um tema sobre o cerco de Mariupol e os militares que resistiram no interior da fábrica de aço (steel) da Azovstal e, estranhamente, a canção mais cool da noite.

Noruega

“Queen of Kings”, Alessandra

Uma amazona norueguesa de origem italiana traz uma canção em inglês sobre igualdade de género. Trata-se de mais uma tentativa de hino nacional para pista de discoteca. No fundo, a Eurovisão consiste hoje nisto: pessoas de muitos países competem por apresentar a canção mais apátrida possível. Na verdade, o concurso podia passar a ser assim: ligávamos a tentar adivinhar de que país vem cada canção. A canção que fosse erradamente atribuída a mais países, ganhava.

Alemanha

“Blood & Glitter”, Lord of the Lost

Digamos que estamos perante a banda que o The Night King faria caso virasse drag queen. Não será a visão mais habitual de frieza germânica, mas nem por isso é menos assustadora. Seguríssima malha rock, porém.

Lituânia

“Stay”, Monika Linkyté

Para folgar as costas da rockalhada anterior, a organização serve-nos de seguida uma mocinha de ar gentil, a dado passo acompanhada pelo inevitável coro. Uma boa balada, a caminhar para o épico; contudo, uma vez mais, com pouco ou nada de novo. Faria excelente figura num filme Disney, talvez sobre um tipo de guaxinim raro que um tigre com bom fundo salva, à última da hora, da extinção.

Israel

“Unicorn”, Noa Kirel

Noa é mais uma estrela no seu país e comporta-se à altura. Traz uma formulazinha pop perfeita sobre o poder dos unicórnios, aquelas criaturas mágicas que habitam os bosques da Web Summit. À parte isso, Noa dança para xuxu. O que é que isto tem a ver com Israel? Não faço ideia. Mas, se Israel fosse na Europa, até podíamos preocupar-nos com o facto disto não fazer lá muito sentido.

Eslovénia

“Carpe Diem”, Joker Out

O nome da canção é em latim, mas ainda mais cliché do que os em inglês; o da banda não é muito melhor. Mas estes Afonsinhos do Condado esloveno trazem uma das melhores canções da noite e, portanto, uma das mais fortes candidatas a último. Temazinho alegre, de guitarras, banda sonora de verão no melhor sentido do termo. Todos os outros exploram o espaço incrível do palco para grandes shows de VJing; estes rapazes usam-no para pendurar o nome, qual festival de bandas de garagem. Nuno Galopim recomenda que exploremos o resto da discografia – e assim faremos. Uma iniciação à indie pop eslovena.

Croácia

“Mama SC”, Let 3

Num universo paralelo, os Village People fugiram para a Croácia, onde desenvolveram uma carreira na canção de intervenção satírica. Não é preciso ser especialista em croata para perceber que “Mama SC” é uma crítica aos maníacos da guerra. Acabam em cuecas e meias, ainda assim mais vestidos do que o gnomo da floresta verde da Finlândia.

Reino Unido

“I Wrote a Song”, Mae Muller

A Eurovisão é um sítio muito democrático onde quem paga mais joga sempre (os “Big 5” que financiam a Eurovisão) e a organização decide, sem necessidade de explicações, a ordem das atuações (e, portanto, reconhecendo automaticamente a importância desse mesmo ordenamento). Assim, deixou, à descarada, a canção do país organizador para o fim, não fosse alguém esquecer-se dela quando abrissem as votações. A canção é ótima e a mise-en-scène Monty Python’s q.b.. “I Wrote a Song” já é mais do que outros fizeram, que deixaram essa tarefa a uma misturadora de cozinha. Mas a tentativa desavergonhada de influenciar a votação, a que acrescem os apresentadores, no final, a alimentarem a reação épica da assistência, coisa a que mais ninguém teve direito por estar logo na calha a atuação seguinte, são suficientes para desejar que fique em último.

22h20. Começam as votações. Malato diz que já está nostálgico porque o festival está a acabar. Galopim tenta consolá-lo. A Eurovisão é o Natal de Malato. E os Óscares. E o Mundial. Juntos.

22h45. Para nos entreter enquanto decorrem as votações, a organização põe antigos vencedores da Eurovisão a fazer um medley de homenagem à música do Liverpool. Ou seja, o que David Fonseca já tinha feito cá.

22h57. Do caraças o “You’ll Never Walk Alone” com que o holandês Duncan Laurence, vencedor do festival em 2019, encerra o medley. Malato, de voz embargada, diz que chorou.

23h00. Fecham as votações e começa a saga das pontuações, país a país. Basicamente, a mensagem a reter aqui é: arranjem alguém que goste de vocês como o Malato gosta do festival da Eurovisão. Até bate palminhas quando dão pontos aos preferidos dele.

23h35. Espanha dá seis pontos a Portugal. E ainda há dias tinham dado um prémio a António Guterres… O que é que querem mais destes vizinhos, pah?

23h41. A Grécia dá-nos 10 pontos. Grato, quase em lágrimas, qual Malato, corro pela sala de braços abertos a cantar Suede: “We are the Pigs”.

23h53. Portugal vai ficar em 23.º. Entre 26. Há três horas que toda a gente percebeu que a Suécia vai ganhar. Se ao menos ela fosse de roer as unhas, era coisa para já ir quase a meio.

00h00. Confirma-se a vitória sueca, depois de uma aproximação finlandesa de última hora. Ou seja, quem manda nisto, afinal, é a NATO. Entras para a NATO, ganhas o festival. Israel completa o pódio, o que, bom, é o que é. Alemanha e Reino Unido, dois dos que pagam para estar cá sempre, ficam nos dois últimos lugares – e estavam longe de ser das piores canções. Loreen parece, com efeito, disfarçada de ataque nuclear. É a segunda vitória para ela e a sétima para a Suécia, igualando, respetivamente, o mítico Johnny Logan e a sua Irlanda. 50 anos depois da vitória dos ABBA, a Eurovisão vai voltar à Suécia, mas nada disto parece consolar Malato, que se despede, comovido, confessando ter sido tão bom “fazer parte desta produção extraordinária e única no mundo”. É o 13 de maio, agora é que percebemos. A Eurovisão é a Fátima de Malato. A Nossa Senhora do bling-bling e da Europop.