Quando se escreve num popular motor de busca cujo-nome-não-vale-a-pena-citar a expressão “if you survived the 60s” (“se sobreviveste aos 60s”), o tal motor de busca — pelo menos o nosso, se não acontecer o mesmo ao leitor deve depositar a culpa no algoritmo — mostra-nos uma imagem de uma t-shirt com uma piadola bem-humorada.
A peça é indumentária para ser usada por sexagenários, septuagenários, octogenários e por aí fora que podem não conservar o aspeto viçoso e jovem, mas ainda conservam o bom humor e a capacidade de gozarem com consigo próprios. Na tal t-shirt lê-se:
“I survived the 60s. Twice”.
David Crosby é um dos anti-heróis da música americana que sobreviveu aos sessentas duas vezes — primeiro porque viveu a década que antecedeu os ‘seventies’, depois porque chegou a sexagenário sem saber muito bem como. Surpresa das surpresas, espanto inexcedível para quem conhece a história do homem a quem todos previam há muito a morte (como noutros casos, por exemplo o de Keith Richards, foi uma notícia exageradamente antecipada): Crosby também sobreviveu aos setentas duas vezes e até está a beira de virar os 80s pela segunda vez.
No filme recente Remember My Name, que contava a sua história sem esconder nada (garante ele) ou quase nada (arriscamos nós), David Crosby era confrontado com uma pergunta: como diabo é que ainda estava vivo? E respondia, sem um pingo de indignação: “No idea, man”.
Até para ele era difícil imaginar-se em 2021 ainda desperto. Mas há algo de que Crosby, hoje com 79 anos, nunca duvidou: o valor da sua obra e dos seus contributos musicais nos últimos quase 60 anos, em bandas — como os The Byrds, primeiro, e os Crosby, Stills & Nash (a que se viria a juntar Neil Young, expandindo a sigla para CSNY) depois — e a solo. Até porque, sabemos hoje com um bom grau de certeza, se há coisa que não lhe tem faltado genericamente é auto-confiança.
Há 50 anos, no dia 22 de fevereiro de 1971, David Crosby libertava-se parcialmente do magnífico colete de forças que era o super-grupo de folk-rock que o juntou a Stephen Stills e Graham Nash, primeiro, e também a Neil Young depois, para lançar o seu primeiro álbum de canções “a solo”. A solo entre aspas, porque com ele em estúdio estiveram tantos dos seus então amigos: músicos e cantores tão sonantes quanto Graham Nash, Neil Young e Joni Mitchell (com quem namorou) e artistas de grupos proeminentes do rock and roll e da folk-rock como os Grateful Dead, os Jefferson Airplane e Santana. Um ensemble alargado que viria a ganhar o nome de Orquestra Rock & Roll do Planeta Terra.
Primeiro sozinho, sobrevivendo ao luto com um microfone à frente e uma guitarra em riste, depois em boa companhia, David Crosby fez um disco que entra na galeria de obras-primas obscuras da música popular americana, um álbum que não o tornou a rockstar do pedaço, mas que lhe cimentou o estatuto de músico com direito a nome próprio, um disco que com os anos foi granjeando culto e admiração entre colecionadores e apreciadores da música americana de guitarras.
Há 50 anos, o mundo ficava a conhecer melhor um músico que logo no título do álbum aludia à confusão em que estava a sua cabeça naquele tempo, culpa das perdas, das dores e das drogas: If I Could Only Remember My Name. Em português, “se ao menos me lembrasse do meu nome”.
Uma imagem que se deteriorou, sim, mas um bis no Hall of Fame
Um adolescente ou um desconhecedor da história do rock and roll que leia notícias recentes sobre David Crosby provavelmente vai ficar com uma impressão pouco abonatória do homem.
Quem o fizer vai deparar-se com um músico norte-americano cujo mau feitio é já mais famoso do que a sua música, a quem os amigos já não telefonam nem respondem, que passa os dias entre comentar banalidades no Twitter — onde há dias criticou a forma como outra artista, a mais jovem Phoebe Bridgers, decidiu partir uma guitarra numa atuação ao vivo — e queixar-se em entrevistas de que o streaming veio espoliar os artistas. Um músico que entre 2014 e 2018 (cinco anos) lançou quatro discos novos — ignorados quase olimpicamente — mas que deixou recentemente de tocar, devido ao problema de saúde a que os médicos chamam “tenossinovite estenosante” e a que as pessoas chamam, mais corriqueiramente, dedo em gatilho.
Mas David Crosby é, simplifiquemos, um dos últimos grandes cowboys do rock and roll e da folk-rock. É por certo o tipo que viveu mais vidas do que muita gente junta, o anti-herói que chafurdou no vício da cocaína e da heroína até se tornar insuportável para toda a gente — é o próprio quem o reconhece e quem diz que nos 70s e 80s se tornou um junkie, e ninguém consegue passar muito tempo com um junkie a não ser que o seja também –, que foi preso mais de uma vez e até chegou a fugir à polícia em alto mar, no seu famoso barco (que acabou por ter de vender) The Mayan. Recentemente fez até uma piada sobre o seu antigo vício de droga, quando comentou a necessidade de vender os direitos de autor de todas as suas composições por dificuldades financeiras: “Foi difícil. Não tinha vendido os direitos de autor do meu trabalho nem quando era a porra de um drogado — e um drogado venderia a própria mãe!”.
Só que Crosby é também o homem que compôs (sozinho ou em parceria) “Eight Miles High”, “Renaissance Fair”, “Why” nos The Byrds, importantíssima banda do folk-rock e country-rock americano com um pé na ruralidade e outro no psicadelismo. É o homem que tocava guitarra com estranhas afinações, criando um som mais espacial e levemente jazzístico. É um dos grandes arquitetos de discos portentosos da viragem dos anos 60 para os anos 70, como Crosby, Stills & Nash (gravado com Stephen Stills, ex-Buffalo Springfield, e Graham Nash, que deixara os bem sucedidos britânicos The Hollies) e Déjà Vu, com o trio transformado em quarteto (CSNY) com a entrada de Neil Young. É uma das vozes mais perfeitas nesse exercício de classe e exigência que é cantar em harmonia. E é um dos repetentes no Rock & Roll Hall of Fame, figurando ali pelo trabalho nos The Byrds e pela música feita com Stills, Nash e mais tarde Young.
As vidas anteriores com os Byrds e com Stills, Nash e Neil Young
Há pouco mais de 50 anos, quando entrou em estúdio para gravar o seu primeiro álbum editado em nome próprio, David Crosby ainda não era a figura que é hoje — um homem visto por quase toda a gente, inclusive ex-amigos, como alguém de feitio complicado, praticamente impossível de aturar — mas já tinha feito diabrites bastantes no seu passado.
Nascido numa família bem composta, com o pai dado às artes (era Floyd Crosby, um diretor de fotografia que trabalhou em mais de 100 filmes e chegou a receber um Óscar e um Globo de Ouro), David Crosby encantou-se com a música em pequeno, mas ainda tentou uma incursão no mundo da representação, estudando brevemente a área na faculdade.
Não chegou, porém, a concluir o curso. O sonho era o de singrar na música e à rede PBS (Public Broadcasting Service) chegou a recordar “concertos” que antecederam até a passagem pelo ensino superior: “Comecei a cantar em cafés quando ainda andava no liceu, em Santa Barbara. Aceitei um trabalho a lavar pratos e a limpar mesas num café para poder estar ali e pedia permissão para fazer harmonias vocais [cantar em conjunto] com o tipo que cantava em cima do palco. Essa foi a primeira vez que subi a um palco e fiquei à frente de pessoas. Claro que não fui pago, mas para mim foi um momento importante”, dizia em entrevista.
No início dos anos 60, David Crosby tentou a sua sorte em Chicago e na Meca da música folk, Greenwich Village, ao lado de Terry Callier — mas não teve sorte. A primeira sessão a solo foi gravada em 1963, com a ajuda do produtor Jim Dickinson, e no ano seguinte a carreira deu um salto importante quando nasceram os The Byrds.
A banda consistia, numa primeira fase, em David Crosby (guitarra ritmo e vozes), Jim McGuinn (vozes e guitarra principal), Michael Clarke (bateria), Chris Hillman (baixo elétrico) e um outro escritor de canções primoroso chamado Gene Clark (guitarra ritmo, pandeireta e voz), que começou por ser o principal autor de composições, mas que não ficaria muitos anos no grupo, agastado pelo stress e pelas relações nem sempre pacíficas entre os membros da banda.
David Crosby esteve na fundação dos The Byrds e participou nas gravações dos primeiros cinco álbuns da banda — de Mr. Tambourine Man (1965) a The Notorious Byrds Brothers (1968). Os discos, que lançaram os músicos da banda com sucesso para o centro da indústria americana, tiveram o selo da importante editora Columbia Records graças à ajuda de um homem: Miles Davis. A história foi contada assim por Crosby há dois anos, em entrevista à Vanity Fair: “Ali ninguém fazia ideia do que era uma banda. Aquilo era um conjunto de gajos que tinham fracassado a vender sapatos. Mas os chefes perguntaram ao Miles ‘o que fazemos com isto?’, porque ele era o tipo mais cool que lá andava. E ele disse: assinem contrato com eles”.
A história dos The Byrds, da primeira fase com maior intervenção de Gene Clark até à época (sem Clark) de maior divisão de tarefas entre Crosby, McGuinn e Hillmann — e ainda houve um período seguinte em que os The Byrds viveram muito do que o country-rocker Gram Parsons trouxe ao grupo –, está suficientemente contada e figura em qualquer boa Bíblia da música popular norte-americana. Tal como o estão os motivos pelos quais Crosby acabou por sair da banda. As tensões internas, um momento de dissertação de teorias conspirativas sobre o assassinato de John F. Kennedy em palco num concerto da banda no Monterey Pop Festival em 1967, tocar com os Buffalo Springfield substituindo um ausente Neil Young no mesmo festival na noite seguinte: tudo contribuiu para deixar toda a gente de cabelos em pé.
Os The Byrds seguiriam o seu caminho, não por muitos anos (e Crosby ainda voltaria futuramente ao grupo), mas naquela altura era preciso um projeto novo. E Crosby encontrou-o em parceria com Stephen Stills, guitarrista, compositor e cantor que fizera parte dos Buffalo Springfield entre 1966 e 1968, e Graham Nash, que deixava os populares e pop-rock The Hollies para se aventurar no novo trio.
Entre fevereiro e março de 1969, Crosby, Stills e Nash gravaram um álbum homónimo, um disco cheio de pérolas e com divisão de créditos de composição, com Crosby a assinar “Guinnevere” e “Long Time Gone” (além de partilhar com Stills e Paul Kantner, dos Jefferson Airplane, a autoria de “Wooden Ships”), Stephen Stills a assinar outras quatro canções a solo (uma das quais, “Suite: Judy Blue Eyes”) e Graham Nash a mostrar que o passado nos The Hollies não o cingia ao pop-rock e a mostrar todo o seu talento em grandes cantigas como “Marrakesh Express” e “Pre-Road Downs”.
O disco foi um sucesso estrondoso e com bons motivos: as harmonias vocais, o folk-rock e as guitarras de três músicos de exceção faziam de Crosby, Stills & Nash um dos discos definidores de uma época e do bom gosto de uma época: a viragem dos 60s para os 70s. Mas para David Crosby tudo ruiu passados poucos meses do disco sair: a sua então namorada Christine Hinton morreria em setembro de 1969 com apenas 21 anos, na sequência de um acidente de automóvel.
A engrenagem da música não poderia parar e Crosby, devastado pela morte, refugiando-se nas drogas, na tristeza e só amiúde na música, ainda contribuiu a custo com duas canções para o álbum seguinte dos Crosby, Stills & Nash, que se tornavam CSNY com a entrada de Neil Young: “Almost Cut My Hair”, uma das canções mais populares que compôs e por bons motivos, e “Dejá Vu” figurariam no álbum de 1970, Déjà Vu.
O grupo lançaria ainda em 1970 o tema “Ohio”, uma poderosa canção de protesto contra o chamado “massacre de Kent State”: uma manifestação contra a guerra do Vietname no campus da universidade de Kent State, do estado do Ohio, que acabou com a morte de quatro alunos e ferimento de outros nove por intervenção da Guarda Nacional do Ohio, que disparou na direção de estudantes.
Por esta altura, porém, o grupo já estava a desintegrar-se (retomaria uns anos mais tarde), em parte porque havia projetos individuais em vista. Em 1970 sairia o primeiro álbum a solo (e homónimo) de Stephen Stills. No mesmo ano Neil Young lançava o aclamado After The Gold Rush. E no ano seguinte Graham Nash (Songs For Beginners) e David Crosby (If I Could Only Remember My Name) seguiam os passos de Stills.
Quanto a Crosby, se ainda compôs duas canções para Déjà Vu e se nessas difíceis sessões acontecia “sentar-me no chão e chorar” (contou-o à BBC), seria no disco a solo que canalizaria para a música a dispersão, a dor e a vontade de coletivamente — com os amigos — encontrar alguma beleza no mundo.
Um disco de rock & roll relaxado, charrado, sem pressas, espiritual
Depois de terminar as gravações do disco Déjà Vu com Stephen Stills, Graham Nash e Neil Young, David Crosby deixou-se ficar pelos estúdios Wally Heider, em São Francisco, na Califórnia, e começou a tocar e a cantar a sua saída do luto — com sessões atormentadas e longas mas inspiradas, resultando em pedaços musicais que à base da improvisação iam crescendo e ganhando forma.
Naquela altura, nem David Crosby tinha-se ainda deixado afundar totalmente nas drogas, sobretudo nas duras, nem os amigos se haviam distanciado dele. Pelos estúdios passaram Graham Nash, Neil Young, a amiga e ex-namorada Joni Mitchell e músicos como Jerry Garcia — membro dos Grateful Dead e amigo de Crosby que ajudou tocando guitarra e pedal steel guitar mas também contribuindo para os arranjos e produção que ficavam a cargo de Crosby –, Phil Lesh, Mickey Hart e Bill Kreutzmann, também eles dos Grateful Dead, Paul Kantner, Jorma Kaukonen, Grace Slick e Jack Casady (Jefferson Airplane) e Gregg Rolie e Michael Shrieve (Santana), entre outros.
Boa parte da comitiva tinha-se juntado para gravar Blows Against the Empire, álbum editado uns meses antes por Paul Kantner e os Jefferson Starship, mas só depois das gravações de If I Could Only Remember My Name o conjunto all-star ganharia o nome The Planet Earth Rock and Roll Orchestra, em português A Orquestra Rock and Roll do Planeta Terra.
O que torna este um álbum tão especial na carreira de David Crosby, um disco tão apreciado por melómanos e colecionadores de música, amantes do folk-rock e das explorações das guitarras? Um dos segredos é o tom quase permanentemente suave e natural — pouco polido, parecendo resultar da inspiração do momento e de gravação contínua — do álbum.
Quem o ouvir facilmente imaginará um conjunto de hippies virtuosos não tanto pela técnica, pouco espalhafatosa, quanto pela imaginação e descontração que emana da gravação, com algumas canções longas — “Cowboy Movie”, logo a segunda, ultrapassa os oito minutos; outras duas, “Laughing” e “Song With No Words (Tree With No Leaves)” ultrapassam os cinco minutos — a darem uma resposta ao ouvinte: afinal, é possível aplicar à folk-rock e ao blues-rock elétrico a descontração, a ausência de estruturas simples de canção e a busca instrumental e exploratória do jazz.
As guitarras elétricas, destacam-se, há riffs diabólicos em “Cowboy Movie” (uma canção disfarçada sobre cowboys e autoridade que na verdade versa sobre uma separação amorosa e gente real), mas o disco soa globalmente a um músico, ajudado pelos seus talentosos amigos, a procurar nas viagens instrumentais e nas harmonias vocais um horizonte qualquer, uma esperança nova, uma comunidade. Nos momentos em que o entorpecimento é sacudido com riffs de guitarra e uma voz de um homem a revolver-se por dentro (“Cowboy Movie”) a sensação que se tem não é muito diferente dos momentos em que se ouve a comitiva de gente a cantar à vez, qual família feliz, “Everybody’s saying that music is love”: é como se Crosby se estivesse ao mesmo tempo a conectar-se com o mundo e a procurar um cosmos qualquer seguro (o musical?) para se distanciar do passado.
A música é muito menos acelerada, menos frenética, vivendo mais à base de harmonias e de suavidade rítmica, de uma abordagem jazzística à composição, mas aquilo que cativa em If I Could Only Remember My Name não é assim tão diferente do que levava tanta gente a adorar os Grateful Dead: a sensação de que se está a sabotar o formato da canção pop-rock, que se está pacientemente, sem pressas e nota atrás de nota, à procura da sequência harmónica e melódica mais irrepetível, menos tradicional ainda que profundamente ancorada em diferentes ritmos da tradição musical americana, dos blues ao rock and roll, da folk ao country e ao jazz.
Em “Tamalpais High (At About 3)”, por exemplo, não há palavras, a voz é usada como instrumento — como se a voz fosse um instrumento de sopro que se junta às guitarras e à bateria nessa viagem e busca por novas melodias. Em “Laughing”, um dos melhores temas cantados do álbum (talvez o melhor a seguir a “Cowboy Movie”), o combo soa a uma viagem de comboio pela América profunda (ou será pela psique e pelo coração desfeito de Crosby?), a cada entrada de instrumento e a cada nota nova uma paisagem distinta.
Chegamos a “What Are Their Names”, canção cujo primeiro minuto soa a uma banda a ensaiar relaxadamente — o que contribui para o charme descontraído — e não a gravar um take final. Já o tema dura há mais de dois minutos e meio quando Crosby canaliza a revolta para os poderosos e os promotores de guerras (não nos podemos esquecer que a guerra do Vietname ainda continuava):
I wonder who they are
the man who really run this land
And I wonder why they run it
With such a thoughtless hand.
Tell me what are their names,
And on what street do they live?
I’d like to ride right over
This afternoon and give
Them a piece of my mind
About peace for mankind
Peace is not
An awful lot
To ask.
If I Could Only Remember My Name soa a um disco drogado mas especificamente a um disco charrado, não um disco movido a cocaína ou heroína. É como se tudo fosse tocado e cantado mais devagar, como se toda a gente estivesse um pouco mais lenta, um pouco mais descontraída, um pouco mais relaxada, tocando exemplarmente como xamãs sem pressas da música americana dos 60’s.
Em canções como “Traction in the Rain”, esse traço meio gentilmente psicadélico meio suavemente desconectado do mundo é especialmente nítido. A guitarra elétrica volta a brilhar em “Song With No Words (Trees With No Leaves)” — Crosby e Graham Nash não se entenderam quanto ao nome a escolher — e “I’d Swear There Was Somebody Here” é uma espécie de choro musical pela ausência da namorada de 21 anos, morta num acidente de carro: não há palavras, nem é preciso, basta a voz a fazer sons esquisitos como um lamento simultaneamente angustiado e celeste.
O disco termina e é altura de o voltar a pôr a tocar outra vez: não mais David Crosby fez um álbum tão conceptualmente demarcado sem precisar de ter conceito lírico algum. Em entrevista à BBC a propósito deste disco, Crosby diria: “A música e os meus amigos salvaram-me a vida“. E ainda: “Toda a gente estava ali pela música e não foi um ambiente de modo algum competitivo, foi muito caloroso e reconfortante. Não foi uma festa de egos, de todo — até porque eu também tinha o maior deles todos…”
Depois disto, David Crosby lançaria mais discos mas o álbum seguinte a solo só chegaria em 1989 — 18 anos volvidos. Teria três detenções pela frente, uma das quais resultando em quase um ano de prisão, em 1982, o que teve o efeito benéfico de o desintoxicar das drogas duras que pareciam poder servir de gadanha nos anos 80.
Crosby reergueu-se. A animosidade que gerou nos antigos amigos não tem dado sinais de diminuir (antes pelo contrário) mas está vivo. Pode até nem voltar a tocar, pode até não voltar a gravar, mas uma coisa é certa: quando morrer — e ele diz que já vive com o tempo contado, tentando aproveitar todo o tempo que já não esperava cá estar –, não será possível esquecer as suas notas dissonantes de guitarra, o seu jeito descontraído, melódico e exploratório de a tocar, as suas afinações que pareciam fazer do que empunhava em palco um instrumento diferente do tocado por todos os outros.
Para o feitio é que não há meias tintas, nem mesmo dele: “O Roger [McGuinn] odeia-me. Quase toda a gente com quem trabalhei odeia-me. Posso ser um idiota. O que posso dizer? A minha natureza é ser franco quanto às coisas e às vezes isso é algo muito desconfortável para as pessoas. Além disso, tive sempre um temperamento especial durante grande parte da minha vida…”, dizia numa entrevista de 2019.