De manhã, vai-se à escola quando se é criança. Helena Caldeira, antes de pegar na mala e rumar para junto dos colegas do curso de teatro em Évora, seguia para a pastelaria do pai, num Opel Corsa de dois lugares. Madrugadas de farinha, com aquele cheiro característico a conforto, que só quem coloca as mãos na massa é que sabe verdadeiramente a que sabe. Depois, a atriz saltou do Alentejo para Lisboa para ser bailarina. O sonho ficou por terra, mas logo veio a representação. O que era preciso era um palco.
Não para fugir às raízes, num ato rebelde de filha para pais, mas porque as artes, encontradas fora de casa, falavam mais alto. Limpou o sotaque, assumiu a envergadura da tarefa, sem grande tempo para decorar e ler todos os livros e lá foi. A Escola Superior de Teatro e Cinema era o caminho, mas tornou-se desilusão. “Vinha com muita expectativa para a capital onde tudo acontecia. Percebi que era tudo mentira. Foi a maior desilusão da minha vida. A escola não foi o que estava à espera. Era obcecada com o trabalho, fazer tudo bem feito, disciplina. Às vezes até demais. Achei que ia ser assim em Lisboa. É como quando vemos os filmes americanos, cheios de disciplina, como no “Fame”. Era isso que estava à espera. Chego aqui e não é nada disso. És tu que tens de a criar”, conta.
Esteve para desistir do curso, meteu-se pelo país inteiro com um espectáculo musical, fez novela mas acabou agarrada ao teatro, onde criou o “Bestiário”, uma associação que olha para o lado social da criação. Para formar públicos, para estar com quem não tem tanta proximidade com o teatro fora dos grandes círculos, para estar, estar, estar. O canudo já ninguém lhe tirava. A rapariga de Montemor-o-Novo conseguiu convencer o pai, desconfiado mas sempre apoiante, de que a profissão, apesar de todos os defeitos, desilusões e agruras financeiras, tinha vindo para ficar.
Em 2021, já com o mundo a recuperar do pós-Covid, integrou o espectáculo “Trouble”, do reputado encenador Gus Van Sant. Andou pela Europa, de lés a lés, mal sabia que um dos próximos destinos seria a pequena região açoriana: Rabo de Peixe, outro palco, desta vez bem real, rodeado pelo oceano Atlântico, que deu origem à segunda série portuguesa da Netflix, de Augusto Fraga e escrita por nomes como João Tordo. A sua Sílvia, jovem destemida da grupeta que se tenta salvar da miséria através de um navio carregadinho de cocaína, deu-lhe muito trabalho. Não porque não estivesse preparada já que esta era a primeira vez a encarar uma plataforma de streaming. E quem diz plataforma, diz o mundo inteiro. Helena Caldeira queria era tentar fugir das amarras de uma sex symbol que não a objetificasse. E mais: queria saber como é que, como atriz, se pode ser tão confiante como a personagem que se está a interpretar.
[Trailer oficial da série “Rabo de Peixe”]
Ao fim de elogios, críticas mais agrestes, série montada, produzida, realizada e lançada, é capaz de ter conseguido chegar a essa confiança. Pelo menos, agora sabe muito bem o que quer tentar, sem tirar os pés do chão, rumo ao deslumbramento. Mesmo que no casting para “Rabo de Peixe”, nem sequer tenha sentido que podia passar. Ou química entre os actores. Há coisas que não se explicam, fazem-se, ponto final, dirá. Ela ou a sua personagem? Não sabemos.
“Andei pela Europa com aquele espetáculo, com muita gente a ver, e percebi que podia não estar assim tão longe dessa utopia. Comecei a virar-me para aí. Depois, o Augusto, também trabalha com muita gente lá fora. Falámos muito disso. Acho que já não é assim tão inatingível. É difícil, tal como é em Portugal. Sinceramente? Gostava muito da internacionalização, dentro do que me é possível fazer. Nunca esquecendo de que há projetos onde tenho a mão e não quero largar. Mas sim, quero construir uma carreira internacional sem deixar Portugal como base”, revela nesta longa conversa com o Observador. Fica a faltar a música, que tem o lugar mais especial na sua vida. Mas isso já é spoiler do resto da entrevista.
Sempre que algo estreia lá fora e tem algum impacto em Portugal, há sempre vozes críticas. Neste caso, foi sobre “Rabo de Peixe” ser demasiado plástico e pouco autêntico. No sotaque, no ritmo, no retrato que faz dos Açores. Como é que olha para isto? Somos sempre mais duros com o que é nosso.
Desde que seja construtivo, é ótimo. É uma forma de olhar para o nosso trabalho, colocá-lo em perspetiva. O que correu bem, o que podia ter corrido melhor. Estou sempre aberta a ouvir. Há umas menos construtivas, faço essa triagem. Sinto que somos mais duros com o que é nosso, mas devemos ser. Não devemos comparar-nos com o vizinho, se queremos abrir horizontes com longitude. Não devemos comparar-nos com Espanha, se queremos que o nosso conteúdo tenha a qualidade necessária para atingir espectadores fora do nosso espectro. Temos de ser exigentes.
Falando nessa comparação, criticou-se a standarização da Netflix. No fundo, fazer séries todas iguais.
Sabe, independência autoral já temos. Não temos é o veículo de ligação entre os projetos de autor e o espectador comum. Esse caminho ainda não está bem feito. Não sei qual é a resposta certa para os conseguir ligar. Uma das estratégias passará por fazer um produto que, apesar de não ter linguagem autoral do cinema mais contemplativo, seja como ”Rabo de Peixe”. Pode ser que assim as pessoas olhem para o audiovisual de outra forma. E fazer com que a indústria perceba que se podem fazer séries assim. Talvez seja necessário chegar a um extremo para conseguir um meio termo. Nós percebemos que é possível trabalhar assim em Portugal e mostrar o que se pode fazer aqui. Que mais investidores venham, que se cruzem nacionalidades, é assim que se vai crescendo.
O género de crítica muda muito de plataforma em plataforma? Teatro, televisão, cinema…
Não sei, por acaso. Já fiz uma novela, faço mais teatro e é a primeira vez que estou numa série. Infelizmente nunca fiz cinema. Ainda. Tenho ouvido críticas de variadas origens. Nunca senti que me estivessem a criticar por ser determinada atriz. Tenho feito um pouco de tudo. Já ouvi de colegas meus que quem está neste elenco são só “atores de novela”.
Para si é estranho.
Não enfio a carapuça. Percebo porque é que fazem essa comparação. O meio que mais dá trabalho em Portugal é a televisão. Faz parte da nossa cultura. Os atores se só quiserem fazer cinema ou teatro é impossível. Fazem quase tudo. Uma vez em novela, torna-se mais fácil. É o nosso ganha pão. Muitos colegas meus de teatro fazem publicidade. Nós temos de ver o nosso contexto e depois formular uma opinião. Diminui-se alguém com uma opinião genérica. Sem se olhar para o contexto, para as especificidades.
É difícil o público geral ter esse contexto.
As pessoas estão habituadas a consumir rápido. Da mesma forma que consomem, também produzem opiniões. É um problema da sociedade contemporânea. Não dá para aprofundar, é produzir constantemente, nunca parar. Vai mudar a arte completamente. Por isso é que as plataformas de streaming adaptam estes mecanismos de séries rápidas. As pessoas já vivem assim. É o vício da comida, do ecrã, do fashion, da beleza. Esta série tem isso tudo. Os ganchos foram bem criados.
Essa pressa não cria stress?
Causa stress a toda a gente. As pessoas sentem que não sabem para onde estão a correr. O objetivo hoje é um, amanhã é outro. Andamos um pouco perdidos a acompanhar sem se saber o que se está a acompanhar. Na vida de um ator, coloca-nos num lugar frágil. Ainda não há uma indústria estabelecida em Portugal. Está-se a tentar perceber o que se faz mas não se sabe. Vamos ser o quê? Um ator de telenovelas? Há preconceitos até dentro da própria indústria. Temos de o desconstruir rapidamente se não estagnamos. É stressante, sim. Tens a tendência natural de tentar corresponder com uma imagem, um estereótipo de ser alguém. De te encaixares. É preciso colocar rótulos em tudo. Parece-me um erro crasso. A partir do momento em que tentas entrar na caixa, estás a corroborar com esta teia do diabo. Quando sinto que não me encaixo, o que já me aconteceu, tento ser verdadeira. Alguém há de querer trabalhar.
É difícil se não se colocar numa caixa. As pessoas gostam de bibliotecas.
É verdade. Quer ir à prateleira de ação e já sabe que estão lá esses livros. Encaixo-me aí e é mais fácil. Por outro lado, também diminui aquilo que é a profissão do ator. Querem raparigas loiras de olhos azuis, faço o quê, pinto o cabelo? Por mais que o mundo evolua para algo plástico, continuo a acreditar que a verdade vai vencer. Sempre. Quando escolhe uma série, por muito que a rapidez ludibrie, vai-se identificar com o que é real.
Ou próximo.
Exato.
Mudou algo em si esta série?
Não sei se é por ser jovem, mas estou sempre a dizer: sou jovem, a minha carreira começou agora, mas não foi assim tão agora. Tudo o que faço tem-me transformado enquanto atriz. Tenho feito projetos muito diversos, há sempre algo, por mais negativo que seja, para absorver. Saber o que não quero fazer, saber o que não quero que me aconteça. “Rabo de Peixe” foi o maior projeto, claro, mesmo depois de ter estado na peça “Trouble”, de Gus Van Sant, que foi uma produção grande, mas esta foi ainda maior. Foi a primeira vez a lidar a sério com as câmaras. O momento em que estás no set parece muito parecido com cinema. Acho que consolidei algumas coisas, depois de ter visto os episódios.
Já está mais segura?
Não é isso. Nem é já saber que sei fazer. É consolidar e deitar fora. Sei que tipo de atriz é que sou. É importante confiar no teu instinto, o que é muito importante para qualquer ator.
Aqui confiou?
Podia ter confiado mais.
Porquê?
Já estou a ir por caminhos…
São os melhores.
Nós filmámos várias perspetivas da reação de personagens. Não se sabia o que ia acontecer na montagem, o Augusto Fraga pedia-nos outra coisa. Na altura não confiava tanto em mim, mas agora sei que o meu instinto estava certo.
Numa série tão imediata como esta, é possível preocupar-nos com a profundidade da personagem?
Quando li o guião percebi que podia ir por vários caminhos. Foi determinante essa questão da profundidade quando começámos os testes de imagem. A minha personagem estava muito focada na imagem sexual e no início fez-me muita confusão. Não queria. Claro que não sou eu que decido e depois percebi porquê. Não era só para vender. O Augusto não queria fazer algo documental, mas queria que fossemos beber à realidade açoriana. Percebo porque escreveram assim a Sílvia. Mas também não queria que ela fosse a rapariga que andava de biquini, com muita liberdade sexual e cabelo rosa. Não queria que fosse uma sex symbol.
Deduzo que esse retrato da Sílvia exista em Rabo de Peixe.
Exageramos, claro. As raparigas nos Açores são muito livres. Os rapazes também. Havia raparigas novas com piercings, unhas grandes, cabelo pintado. É tudo muito. E precoce. Foi o que senti na parte do estilo. Eles imprimiram isso na Sílvia. Gosto mesmo do que fizeram a nível do estilo. Só que eu, Helena, não queria objetificar a mulher porque estamos numa luta tão grande para contornar essa objetificação. Muito facilmente a personagem podia cair para esse lado. Aprofundei através da relação com os pais, construi uma história fora do ecrã para criar as várias camadas. Houve partes que filmámos que também ajudaram mas ficaram fora. Os episódios não podem ter duas horas. Mas a Sílvia poderia ter um spin-off. Bem como as outras personagens.
A segurança que a sua personagem parece ter, foi ganha onde?
Fui descobrindo o que queria fazer. Sabia que tinha de mergulhar e transformar a Sílvia em alguém real.
Mesmo dentro do exagero.
Isso é difícil. É verdade. Nós estávamos todos numa bolha a defender tanto os nossos personagens, sabíamos que eram intensos, porque mesmo no guião também estava lá a tal profundidade. O que tinha sido bom era termos deixado as personagens viver. Pode ser um tiro no pé, por vezes. Não é preciso fazer tanto, ir tão longe. Quando fizemos o boot camp nos Açores, o Augusto falou com o Pedro Medeiros, o personal trainer da série, porque achava que eu não estava confiante. Contaram-me isto depois. Começámos os treinos, o Pedro começou-me a fazer uma lavagem cerebral, mas mais para mim, não para a personagem. Porque eu questionava-me sobre a confiança que a Sílvia tinha e a mim me faltava. É muito fácil mostrares-te confiante. Mas sentires-te…
Vai um grande passo.
Claro. É o maior desafio do ator. Confiança. A medida certa. E o medo. Confiança a mais não resulta. Eu, Helena, nunca andaria assim na rua.
É muito diferente?
Sou.
Em quê?
A Helena ainda não encontrou, nem sei se vai encontrar, a facilidade com que a Sílvia é capaz de enfrentar a vida. Mesmo que não saiba bem as respostas. É muito reativa. Sou completamente o contrário. Guardo, guardo, fico a marinar e depois nem consigo atuar. O que mais mudou em mim foi mesmo essa questão da confiança. Tanto a procurei que foi possível encontrar. De ter confiança no meu trabalho, no que já conquistei. Percebi o que quero para a minha vida. Aqueles dois meses nos Açores fizeram-me colocar a vida em perspetiva.
O que é que se aprende nessa bolha?
Essa bolha tem algo de fantástico mas também de perigoso. Estás submerso no trabalho, no tema, não estás preocupado com os problemas do quotidiano que, por vezes, levas para o trabalho. Em Lisboa já havia casa para limpar, uma família para cuidar, o trânsito. Lá, não. Era chegar ao hotel, saber bem o trabalho e no dia seguinte seguir para o set. Estávamos todos dentro do trabalho. Por outro lado, acredito que é preciso ter um pé dentro e outro fora. Quando estás tão lá dentro não consegues ver as fragilidades do projeto. Nutri-lo com elementos do exterior, porque quando fechas, acaba por morrer. É preciso saber respirar, voltar e trazer algo novo. E assim o trabalho vai-se renovando.
Como funcionou o casting?
Fiz a selftape e percebi que queria fazer. Estava doente, estavam outros projetos a surgir, não me preocupei muito. Porque se me preocupasse muito, podia correr mal. Fiz à minha maneira, nem tinha parede branca como me tinham recomendado. Gravei, correu-me muito bem. Pedi ajuda ao meu namorado da altura, deu-me as deixas e filmámos. Entretanto, fui à minha vida. Nunca mais me lembrei. Normalmente é assim que corre bem. Desliguei porque estava noutros projetos. Nem disse nada a ninguém. Nunca digo, aliás. Fui à segunda fase porque fiz casting diretamente com amigas minhas. Já toda a gente sabia porque era em grupo.
Já se sabia para o que era?
Sim. Logo na selftape sabíamos que era para a Netflix. No casting presencial achei que não ia ficar porque era para ver a química entre os atores. Era preciso juntar actores com alguma química só que não senti nenhuma. E já os conhecia só que não me sentia no grupo. Não forcei, estava na minha. Ao menos tinha sido honesta e sincera. Fui para casa a pensar que tinha sido terrível. Até o disse às minhas colegas.
Elas estavam confiantes?
Não. A Kelly Bailey e o André Leitão também estavam pouco confiantes. Todos os que ficaram, encontrámo-nos lá. Íamos rodando.
Experiência de laboratório.
Sim. O Augusto, a certa altura, disse que já não era para escolher o melhor. Viu atores muito bons, queria era perceber quem jogava melhor com quem. Por isso é que achei que não ia ficar. Só que passei à fase seguinte. Aí já se sabia que o Rodrigo Tomás ia fazer de Rafael, e depois já fizemos as cenas juntos. Nunca tínhamos trabalhado juntos, só o conhecia, mas mal. Estava tão confiante que não ia ficar que pensei: fuck it.
Esse é o truque.
Temos de deixar respirar. Lá fiquei. Acho que não sentir que pertenço, resultou.
Também sentiu isso quando veio de Évora para Lisboa?
Agora já não, mas no início vinha com sotaque carregadíssimo, sofri muito na escola, da parte de alguns professores. Disseram-me que tinha de o limpar. Pensei que não era por causa disso que a vida não ia correr bem. Depois voltava para Montemor e os meus amigos diziam-me que já não tinha sotaque. Vinha com muita expectativa para a capital onde tudo acontecia. Percebi que era tudo mentira. Foi a maior desilusão da minha vida. A escola não foi o que estava à espera. Era obcecada com o trabalho, fazer tudo bem feito, disciplina. Às vezes até demais. Achei que ia ser assim em Lisboa. É como quando vemos os filmes americanos, cheios de disciplina, como no “Fame”. Era isso que estava à espera. Chego aqui e não é nada disso. És tu que tens de a criar. Ninguém te ensina. Ou tens ou tens de a construir sozinho. Não havia técnica, ensinam-te mais a ser ator-criador. Não vinha com nenhuma técnica. Senti-me perdida. Como é que ia aprender a ser atriz assim?
Ninguém a avisou?
Não. Só conhecia uma pessoa da ESCT. Foram os meus professores do secundário que me ajudaram nas provas. Agradeço muito, aprendi muito lá mas não aprendi a ser atriz. De todo. Aprendi a saber o que queria para a minha vida, a não deixar ir-me abaixo só porque tudo à volta se estava a desmoronar.
Dentro desse caos, o que se aprende?
Acabei o curso, estive quase para desistir. O meu pai é que me pagou os estudos. Não estava confiante de ter uma filha atriz. A minha irmã também é. Fomos as duas. Agora é ele quem me dá força quando não aparece logo trabalho. No início, para ele, foi complicado. Sabia que não havia muita estabilidade. A minha família é clássica, temos o nosso trabalho, compras a casa, tens filhos. Agora é diferente. Têm elasticidade e capacidade para olhar para o presente. Mas em relação à desistência: não sabia como dizer ao meu pai. Ainda bem que não o fiz. Parei um ano, fui trabalhar e pensei que tinha de voltar.
Para onde?
De repente, convidaram-me para fazer um espectáculo musical infantil. Uma maravilha, porque era a desculpa perfeita para desistir, dizer ao meu pai e ir trabalhar. Fiz esse espectáculo e percebi que tinha de acabar o curso. Foi o melhor que me aconteceu. Fiquei numa turma nova onde me senti mais livre para trabalhar. Conheci três pessoas incríveis com as quais me identifiquei logo e criámos uma companhia juntos, o Bestiário. Ainda bem que não desisti.
É só de teatro?
Estamos sediados em Lisboa mas trabalhamos no Alentejo. Também temos um projeto no Algarve associado a Lisboa. É uma associação cultural, não é propriamente uma companhia de teatro. Temos uma forma híbrida de abordar o teatro com uma linguagem social e performática. Trabalhámos com a infância. Achamos que é importante trabalhar públicos.
Sente que esse trabalho é valorizado?
Da parte das educadoras e dos professores, o feedback é muito positivo. Temos tido muita gente interessada. Acreditam que é assim que a arte deve funcionar. É um serviço quase social que um artista faz. Também acredito nisso.
De onde vem essa parte?
Percebi isso com os meus colegas. Nunca achei que a arte era só entretenimento. Era algo mais, só não sabia exatamente o quê. Comecei a trabalhar com eles, especialmente com a Teresa Vaz, que tem encenado os nossos trabalhos, e fui aprendendo muito a olhar para a arte de um ponto de vista social. Começou a fazer-me cada vez mais sentido. Claro que o entretenimento também tem a sua função social.
Nem que seja de companhia.
Certo. Mas o que me move, enquanto pessoa, é poder fazer algo que envolva a comunidade.
Gostava de não perder essa vertente? Fazer 300 versões ou temporadas de”Rabo de Peixe” mas manter a parte social.
Tem que ser. A carreira correr muito bem é relativo. Depende do que se quer. Não quero fazer 300 “Rabo de Peixe”. Se fizermos uma segunda temporada, é ótimo. Mais do que isso, só se a série se transformar noutra coisa. Tenho outras vontades que não estão só no entretenimento. Claro que também quero fazer. Também preciso desse lado, é isso que me move. Não consigo desligar o lado pessoal e o lado artístico.
Não consegue ser duas pessoas.
Não. Acho que não. A minha inspiração artística vem da minha biografia. Não vou para casa deprimida porque o rapaz de que gosto matou o meu pai, como acontece com a Sílvia. É preciso sanidade mental para saber separar as coisas. Para haver verdade, é preciso vir tudo desse sítio.
E em criança, foi livre?
Não me lembro de muito da minha juventude e da minha infância. Vou beber às recordações que me restam. À pastelaria do meu pai. Os meus pais trabalhavam os dois na pastelaria. Vivíamos numa aldeia, só tinham um Opel Corsa de dois lugares, iam às quatro da manhã e tinha de ir com eles antes de seguir para a escola. Os meus primeiros seis anos de vida foram assim, enfiada numa pastelaria a ver o meu pai a fazer bolos. Não me posso deslocar dessa biografia. Que está no Alentejo, nas minhas raízes. Não sei como fui parar às artes. O meu pai é pasteleiro, a minha mãe é cabeleireira, a minha tia gosta de pintar e ler.
Isso já é mais artístico.
Tudo pode ser artístico, se quisermos! Sei que tinha uma bisavô que cantava fado. Os meus pais nunca me incitaram a ler e percebi que isso me faltava em Lisboa. Não tinha lido os livros que os meus colegas falavam. Por isso é que também me sentia meio OVNI.
Foi preciso fingir?
Ficava calada. Não queria dizer que não sabia nem queria falar no assunto. Pedia emprestado aos amigos mais próximos.
Mas teve uma infância e juventude feliz?
Não tenho nenhuma história traumática da minha vida. não. Só coisas mundanas e quotidianas.
Gosta de regressar?
Cada vez mais. Se pudesse vivia lá e depois vinha a Lisboa trabalhar.
É um plano?
Houve uma altura em que si. Agora ainda estou a decidir se vou lançar a perna e tentar algo maior para depois poder voltar com a sensação de dever cumprido. Se tenho algo para dizer. Ou se me vou cingir ao que tenho aqui e que já dá muito trabalho.
Essa vontade de dar um salto maior veio depois de “Rabo de Peixe”?
Há portas que se podem abrir, claro. Mas há muita gente a tentar nem sei que tipo de portas há. Também não posso ser muito seletiva, interessa-me fazer muita coisa diferente. Pode haver o dia em que poderei escolher. Que caminho quero como atriz. Sei qual é, mas o caminho pode não saber. Tens de ser tu a abrir vários. Não pensava nada nisto. Quando queres ser ator ou jornalista, vês o que se passa lá fora e pensas que querias ser assim. Não tinha esse bichinho. Era uma utopia. Não era uma ambição. Depois fiz o “Trouble”, onde estive pela primeira vez com um criador que me queria, e percebi que, se calhar, não era assim tão impossível.
Se calhar não é assim tão OVNI. Ou, então, é e ainda bem.
[ri-se] Exacto. Foi aquela ideia de ser possível. Andei pela Europa, com muita gente a ver, e percebi que podia não estar assim tão longe dessa utopia. Comecei a virar-me para aí. Depois, o Augusto, também trabalha com muita gente lá fora. Falámos muito disso. Acho que já não é assim tão inatingível. É difícil, tal como é em Portugal. Sinceramente? Gostava muito da internacionalização, dentro do que me é possível fazer. Nunca esquecendo de que há projetos onde tenho a mão e não quero largar. Mas sim, quero construir uma carreira internacional sem deixar Portugal como base. Não faço questão.
Mais do que querer, é perceber que é possível.
Sim, estou mais confiante. É preciso não deixar que a confiança nos deslumbre. Depois de “Rabo de Peixe” percebi: não correu assim tão mal. Foi bom, é agarrar.
Às vezes é difícil.
Pois mas se vamos estar a pensar assim…
Falemos desta peça de teatro.
Claro. Vamos também estar na Malaposta e noutros teatros, em finais de agosto e inícios de setembro. Falar deste espectáculo, sim, é difícil. É uma adaptação do Hamlet feita pelo Rui Neto onde só se vê Hamlets em cena. O que acho é que é estamos perante uma reflexão sobre as múltiplas hipóteses de coisas que podes ser. De pensamentos que tens, de escolhas que tens. É muito filosófico. O protagonista está sempre a expor os seus pensamentos.
Muito sobre o que falámos hoje.
Sim, é. Só que aqui há traição, morte, dor. Tudo isso que o Hamlet vive. O pai morre, a mãe ocupou o lugar do pai com o tio, que foi quem matou o pai. Há toda uma cama de tragédia. O Rui dizia-nos: tu, enquanto ator, o que estás a presenciar com estas palavras, com esta situação. É meio filosófico.
Também se sente bem nesse registo?
Depende. É mais difícil. A filosofia é menos palpável. Especialmente quando estás em cima do palco. No cinema, tens de esconder o que estás a sentir e toda a gente via ver na mesma. Aqui, não, tens de mostrar que estás a sentir algo. Esse exercício teatral é o mais difícil. É mesmo, percebi agora nos últimos dias. Dá muito trabalho.
É para continuar?
Claramente. Cada vez acredito menos no teatro clássico. Não é o clássico da palavra, mas na estrutura. Da mesma forma que estamos a ver as plataformas de streaming com um ritmo avassalador, acho que o teatro tem de saber aproximar-se das pessoas. E não é fazer mainstream. Não sei se as pessoas não deviam estar no palco connosco, não sei sinceramente. Há um fosso, até fisicamente falando. Isso afasta as pessoas. Precisam de sentir que estão connosco. Para mim, esse exercício clássico de teatro já não faz muito sentido.
É mandar abaixo as paredes.
Sim, as plateias também. Não sei. O edifício, em si, já não serve o propósito.
Falemos de música. Também canta.
Fez o seu trabalho de casa.
Se não fizesse, metia-me em trabalhos.
A música tem um lugar especial porque é o mais emotivo. Quando canto em palco fico muito nervosa. Mete-me numa zona muito diferente da representação. Não tenho conhecimento, know-how, por isso é que ainda não fiz nada. Mas tenho uma vontade muito grande de criar um projeto musical. Não vou abandonar essa ideia. Estou a tentar investir sem grandes perspetivas, porque está muito a acontecer. Ainda não sei que lugar a música ocupa. Já não está só dentro de casa. Tenho medo de estragar tudo. Voltando aos estereótipos, quando abordei amigos músicos, alguns disseram que era atriz, em género de aviso. A Soraia Tavares, que também é minha amiga, disse para fazer o que eu quisesse. Só que a música está num lugar muito protegido por mim.
Porquê?
Porque também não tenho a tal confiança. Se vier para o teatro, sei sobre o que estou a falar. Sei o que estou a dizer. Na música, também escrevo, mas, à semelhança do sentimento que tinha no início da carreira sobre ter algo a dizer, também o sinto aqui. É uma zona muito pouco explorada por mim.
Terreno fértil, pelo menos.
Acho que sim. Espero que possa ocupar um lugar maior do que tudo o resto. É muito especial, talvez por isso é que não lhe toco muito.
De onde veio?
Boa pergunta. Lá está, só tinha uma bisavô que cantava fado. Sempre escrevi, escrevi poemas. Comecei por cantar. Estive rodeada por artes, mas por mim. Fiz ballet até aos seis anos, parei quando vim para Lisboa. Quis ser bailarina antes de ir para a ESCT. Também quis ir para a Escola de Música, tive uma banda em Montemor.
De?
De covers. Nunca saiu da garagem.
Não deu concertos?
Não. Mas quando havia eventos, lá ia eu a cantar. Só que os projetos foram surgindo, fui seguindo por aqui, mas sempre escrevi e compus. Só que depois tentava, mas nunca avançava. Assim que acabou “Rabo de Peixe”, achei que podia pegar na música, porque estava com tempo e sentia-me confortável. Mas não é fácil.
Há tempo para tudo.
Por vezes acho que sim, outras não. E se morrer amanhã? Quero ficar com a sensação de que criei algo. Mesmo que não lance para fora. Se alguém souber, podem lançar. Ao menos criei.