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Ian Curtis e os Joy Division: 40 anos de canções de desordem interior

Passam 39 anos desde a morte de Ian Curtis e quatro décadas desde que a banda do icónico vocalista se estreou nos álbuns com "Unknown Pleasures". Isilda Sanches recorda o homem e o grupo.

Domingo, 18 de Maio de 1980. O dia em que o vulcão Monte Santa Helena, nos Estados Unidos, entrou em erupção com efeitos devastadores. Também o dia em que Ian Curtis, 23 anos, vocalista dos Joy Division, é encontrado morto, na cozinha de casa, em Manchester, pela mulher Deborah Curtis. Enforcou-se depois de ver Stroszek, de Werner Herzog, na televisão, e de ouvir The Idiot, de Iggy Pop.

Os Joy Division existiam como banda desde 1978, tinham acabado de gravar o segundo álbum, Closer, e começavam a ganhar culto fora de Inglaterra. Já tinham tocado em países europeus como Bélgica e Holanda e partiam para os Estados Unidos com os Buzzcocks no dia seguinte, 19 de Maio. Era o sonho de qualquer banda, de qualquer pessoa naquela altura (ou noutra), mas não de Ian Curtis. Estava demasiado doente para tirar gozo do estrelato dos Joy Division e do estatuto de ícone pós-punk. Acabou por sucumbir.

Conheci a música e a história dos Joy Division já depois da morte de Ian Curtis ter ganho contornos míticos. Chegou-me com narrativa dramática extra e era-lhes devida alguma reverência, por isso, com os primeiros acordes das canções instalava-se um tom quase cerimonial. “Love Will Tear Us Apart” era um hino aos desamores. “Disorder”, a primeira canção do primeiro álbum, Unknown Pleasures, era a luz nos momentos de dúvida: “I’ve been waiting for a guide to come and take me by the hand”, diz a primeira frase.

[“Disorder”:]

Ian Curtis era um rapaz interessado e culto. Gostava de David Bowie, Kraftwerk, Velvet Underground, reggae, lia Dostoyevsky, J. G. Ballard, William Burroughs, Kafka (muitos títulos de canções tirados de livros!), coisas sobre os Nazis e a Roma Antiga, por isso não era completamente explícito na exposição do que lhe ia na alma, mas a sua desordem estava por todo o lado nas canções, mesmo que nenhum dos outros elementos da banda tenha percebido na altura.

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No livro do jornalista britânico Jon Savage, This Searing Light, The Sun and Everything Else, que agrupa as entrevistas usadas no documentário “Joy Division”, de 2007, para fazer uma história oral e cronológica da banda, no contexto da cidade de Manchester no final dos anos 70, é assumido que ninguém suspeitava da gravidade dos problemas de Ian Curtis. Nenhum se terá lembrado, por exemplo, de associar as palavras, ou sequer os títulos da canções. Para eles eram só isso mesmo, canções, agrupamentos de palavras. Para Ian Curtis eram claramente atribulações interiores, algumas comuns a todos os humanos, outras muitos mais negras e profundas do que nos atrevemos a imaginar.

A capa de “This Searing Light, The Sun and Everything Else”

Estou convencida que toda a cena urbano-depressiva foi uma homenagem a Ian Curtis. O videoclip a preto e branco de “Atmosphere”, realizado por Anton Corbijn, com monges que carregam fotos gigantes da banda, só ajudou na criação do profeta/mártir, seguido por crentes no mundo inteiro. Os The Cure até podiam ser sorumbáticos e deprimidos e, por isso, representar uma opção para a teenage angst do início dos anos 80, mas sobreviveram (até estão no Rock And Roll Hall of Fame). Os Joy Division não. Ian Curtis matou-se, o sofrimento dele era “real”.

Daí a veneração através da moda das gabardines, o fitar o chão, as centenas de bandas com canções austeras e sofredoras que surgiram durante anos (ainda hoje, quem não ouve Joy Division nos Interpol ou The National?) Na altura, ser “depressivo” era, em muito, uma questão de estilo com direito a bónus de crédito artístico e social. Mas nem sempre era realmente uma opção estética.

Mas será sempre injusto resumir os Joy Division a Ian Curtis. Peter Hook, Bernard Sumner e Stephen Morris também lá estavam, embora talvez não partilhassem o mesmo “plano de realidade”. Disseram-no várias e vezes e também é claro nas conversas de "This Searing Light, The Sun and Everything Else": ninguém na banda percebeu as dificuldades de Ian Curtis porque ninguém estava na sua cabeça.

Em meados dos anos 80, pouco se sabia da doença ou da vida pessoal do vocalista dos Joy Division. Meses antes do suicídio fora-lhe diagnosticada esquizofrenia, o que talvez explicasse alguma da sua “excentricidade performativa” em palco, estava deprimido, não lidava bem com a pressão ou a expressão da ansiedade, não queria ir para a América e, provavelmente, nem desejava continuar a ter uma banda. Sabemos isso hoje porque lemos livros como Touching From A Distance, da mulher Deborah Curtis, ou vimos filmes como “Control” ou “24 Hour Party People”, mas na altura nem sequer havia internet.

[o trailer de “Control”:]

A Portugal, chegavam os artigos dos jornais estrangeiros e havia pouco mais do que Miguel Esteves Cardoso a escrever e António Sérgio a tocar a música. No fundo, o que pedia uma banda pós-punk de culto: ser o segredo de alguns (a Assírio e Alvim também publicou, em 1983, um livro com as letras de Ian Curtis). Mas ao longo dos anos, a aura de Curtis foi ficando maior, alimentada pelo génio das canções e pela tragédia pessoal que elas expressam. Se as duas coisas são independentes uma da outra, é talvez uma discussão do foro clínico que também pode responder sobre o nosso fascínio pelos artistas suicidas.

Mas será sempre injusto resumir os Joy Division a Ian Curtis. Peter Hook, Bernard Sumner e Stephen Morris também lá estavam, embora talvez não partilhassem o mesmo “plano de realidade”. Disseram-no várias e vezes e também é claro nas conversas de This Searing Light, The Sun and Everything Else: ninguém na banda percebeu as dificuldades de Ian Curtis porque ninguém estava na sua cabeça. Ninguém analisou as canções ou ficou a pensar no que significavam “I Remember Nothing”, “Insight” ou “Decades”. Mas todos sabiam que “She’s Lost Control” era sobre a rapariga esquizofrénica que ele acompanhava como assistente social.

[“She’s Lost Control”:]

O trágico é que Ian Curtis fez canções extraordinárias e tornou-se icónico porque estava doente e há sempre uma tendência para glamourizar o sofrimento expresso artisticamente, o que tanto pode inspirar o processo criativo como torná-lo refém da dor, mas não deixa de ser uma doença. A história da arte está cheia de génios torturados que deixam obra suprema. Van Gogh, Sylvia Plath, Florbela Espanca, Mário de Sá Carneiro. Na música os exemplos também não faltam, Jimi Hendrix, Nick Drake, Donny Hathaway e outros, antes de Curtis. Kurt Cobain, Elliot Smith ou Chris Cornell, depois dele.

Há estudos científicos que estabelecem uma relação entre criatividade e depressão ou tendência para o suicídio. Um, de 2015, da universidade de Westminster, no Reino Unido, concluiu que, nos músicos, a propensão para a depressão é 3 vezes maior do que o normal. Outro estudo recente, feito na Suécia, concluiu que 73% dos músicos independentes sofre de depressão ou ansiedade, sendo a instabilidade financeira, a solidão e o medo de falhar algumas das razões apontadas. Nem tudo é brilho. No caso dos Joy Division, as zonas de sombra eram muitas.

"Unknown Pleasures", o primeiro álbum da banda, está a fazer 40 anos, é pós punk nervoso prestes a explodir, mas contém-se sem danos. "Closer" é mais austero e lento e tem efeito poético. Além desses dois álbuns, emblemáticos no fervilhante caldeirão do pós punk, a banda deixou um EP com mau som, "An Ideal For Living", gravado com recurso a uma empréstimo bancário

Poderemos sempre questionar se Ian Curtis e os Joy Division seriam tão importantes sem a morte trágica, é uma questão que se coloca também a propósito de Jim Morrison ou Kurt Cobain, mas a música é suposto atestar sobre isso e, se retirada do contexto, a dos Joy Division soa hoje igualmente válida, excitante e original, mesmo para quem nunca ouviu antes. Não são apenas as letras de Ian Curtis, ou a maneira como as canta, é o diálogo baixo e bateria, um pulsar permanente rasgado por guitarra, as linhas de sintetizador cold wave, a forma como tudo faz sentido e incorpora diferentes elementos.

Falar da música dos Joy Division implica alargar o espectro e colocar Martin Hannett na equação. O produtor foi acusado pela própria banda de alterar o som dos Joy Division, fazendo-os soar mais sombrios do que eles eram de facto ao vivo. E as gravações áudio e vídeo tendem a dar-lhe razão: ao vivo os Joy Division eram mais enérgicos e urgentes, mais caóticos e punk. Mas todos nos apaixonámos pelo que ouvimos nos discos, portanto, Martin Hannett fez claramente algo certo, e isso ajudou a mitificar Ian Curtis.

Unknown Pleasures, o primeiro álbum da banda, está a fazer 40 anos (foi editado a 15 de junho de 1979), é pós punk nervoso prestes a explodir, mas contém-se sem danos. Closer é mais austero e lento e tem efeito poético. Além desses dois álbuns, emblemáticos no fervilhante caldeirão do pós punk, a banda deixou um EP com mau som, An Ideal For Living, gravado com recurso a uma empréstimo bancário (há fontes que dizem que era dinheiro que Ian tinha recebido como prenda no 21º aniversário) e singles espantosos como “Transmission”, “Love Will Tear Us Apart” ou “Atmosphere”, que retêm uma qualidade intemporal rara.

[“Atmosphere”:]

Podiam ter sido tão grandes como os U2, podiam ter-se perdido no estrelato, ou acabado logo depois da ida aos Estados Unidos, mas a morte de Ian Curtis obrigou ao fim inesperado dos Joy Division. Depois do inevitável choque, os sobreviventes rapidamente conquistaram território próprio como New Order e mesmo que Movement, o álbum de estreia, editado em 1981, seja ainda assombrado pelo fantasma de Curtis, dois anos depois estavam a editar “Blue Monday”, antecipando muito do que viria a ser a febre Madchester uns anos mais tarde e mostrando ser relevantes para lá da fatídica morte do vocalista.

É triste pensar que o sofrimento pode ser raiz da criação, mas quanto maior parece ser a dor, como no caso de Ian Curtis, maior tende a ser a marca deixada nos outros. A dos Joy Division continua gigante.

Isilda Sanches é jornalista e radialista na Antena 3

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