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“Um tiro no pé”. É assim que Thiago de Aragão classifica os acontecimentos do passado domingo para o bolsonarismo, que enfrenta agora o seu grande momento de acerto de contas. “A origem de tudo isso parte de algo falso, em que Bolsonaro teve um papel importante — ao disseminar essa ideia de fraude eleitoral, mesmo nunca conseguindo provar nada”, diz ao Observador o consultor de risco político. Agora, prevê o analista, haverá um momento de definição.
É essa a ideia de grande parte dos especialistas políticos brasileiros, que consideram que a atitude dos manifestantes que invadiram os edifícios do Congresso, Planalto e Supremo Tribunal não foi bem vista pela maioria da população brasileira. “Revoltados, estes bolsonaristas mudaram de estratégia. Resolveram criar uma situação de facto que achavam que iria gerar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem que empoderaria o Exército”, afirma ao Observador João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos e especialista no papel dos militares no Estado brasileiro. “Não sei que fantasia é que eles tinham, mas calcularam mal.”
Perante a condenação popular, mundial e a reserva dos militares, os apoiantes mais radicais do antigo Presidente Jair Bolsonaro enfrentam agora uma encruzilhada: que futuro para o seu movimento político? Os primeiros sinais para Bolsonaro não são bons, com ameaças de ação da Justiça a penderem sobre si e os seus aliados políticos a destroçarem. Poderá a invasão de domingo ter sido o princípio do fim do bolsonarismo?
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre os tumultos em Brasília.
O “papo de maluco” de quem esperava a intervenção militar
A esperança dos bolsonaristas mais radicais numa intervenção militar para afastar o governo de Lula saiu furada, muito embora tenham surgido indícios de alguma resistência. Depois de a Praça dos Três Poderes ter sido varrida pela polícia, manifestantes bolsonaristas voltaram a acampar em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília e, inicialmente, não foram afastados pelos militares — acabando por sê-lo após a ordem do juiz Alexandre de Moraes.
Uma situação que Martins Filho justifica da seguinte forma: “Acredito que haja tensões dentro do Exército que até aqui não víamos, porque estava unido em torno de Bolsonaro”, diz. “Os oficiais de patentes intermédias compartilham nitidamente muitas das posições das pessoas que estavam nos acampamentos, há ali muitas mulheres, filhos e pais de oficiais, e o Exército teve uma posição ruim ao tentar proteger esses manifestantes.”
Isso não significa, contudo, que as Forças Armadas avancem para um golpe de Estado. O académico dá duas razões para isso: por um lado, a posição clara de apoio ao governo de Lula da Silva por parte do executivo norte-americano, que colocou algum gelo nos pulsos dos militares mais afoitos; por outro, uma posição mais ponderada das altas patentes, que “tendem a pensar mais politicamente e em termos mais institucionais”. “Acredito que não há possibilidade de o Exército assumir essa rutura”, diz.
Uma posição partilhada por vários membros do Alto-Comando do Exército, em declarações ao Estado de S. Paulo, dizendo-se horrorizados com as cenas de domingo em Brasília. “O que aconteceu hoje é muito sério”, disse inclusivamente o general Carlos Alberto dos Santos Cruz ao jornal, falando em “extremismo e fanatismo político” e pedindo punição legal rápida para os culpados.
Também em público houve reação do setor mais bolsonarista das Forças Armadas, com o general Hamilton Mourão (ex-vice-presidente de Bolsonaro) a condenar claramente a invasão e a dizer que o “vandalismo e a depredação não se coadunam com os valores da direita”.
Tudo razões pelas quais os especialistas ouvidos pelo Observador desvalorizam qualquer possibilidade de uma intervenção militar na vida política brasileira neste momento. “O pedido para intervenção militar é papo de maluco”, afirma Thiago de Aragão. “É o pedido explosivo de uma minoria que não é levado a sério nem mesmo pela maioria dos eleitores bolsonaristas. Não vejo nenhuma hipótese disso.”
Bolsonaro, debaixo da mira da Justiça, pode ser alvo de pedido de extradição
Afastados os riscos de instabilidade política imediata, seguem-se as consequências. Na imputação de responsabilidades do que aconteceu no domingo, a Justiça brasileira parece estar a apontar a mira a Jair Bolsonaro, pedindo a detenção de Anderson Torres, ex-secretário de Segurança do Distrito Federal próximo do antigo Presidente e atualmente no estado norte-americano da Florida, como Bolsonaro.
Martins Filho também alinha na tese de orquestração da invasão: “Eu apostaria que Bolsonaro e os filhos estão diretamente envolvidos nisto, tanto que ele saiu do Brasil. E ontem manifestou-se, mas não foi sincero, ninguém acredita nisso”, diz o professor, referindo-se às declarações do ex-Presidente que disse que as manifestações de domingo “fogem à regra”.
Thiago Aragão não vai tão longe e sublinha que esta é uma matéria que terá de ser apurada pela Justiça. Mas deixa claro que não considera possível escamotear o envolvimento político de Bolsonaro, por ter sido ele a promover precisamente a ideia de que a eleição de Lula da Silva como Presidente foi fraudulenta. Uma tese que já vinha a defender muito antes da realização das próprias eleições: basta recordar que, um dia depois da invasão do Capitólio norte-americano, Bolsonaro disse que o Brasil iria ter “problema pior que os Estados Unidos” se mantivesse o voto eletrónico, que considerava ser promotor de fraude eleitoral.
E o discurso acirrado pode ser o suficiente para que Bolsonaro venha a enfrentar consequências judiciais. É inclusivamente essa a crença dentro do próprio Partido Liberal de Bolsonaro, segundo o colunista brasileiro Rodrigo Rangel, que garante que o “núcleo duro” do partido acredita que o Supremo Tribunal poderá vir a “ordenar a prisão do ex-Presidente”.
O bolsonarismo já estava debaixo da mira da Justiça pelo inquérito a propósito do recurso às fake news na política, liderado pelo presidente do Tribunal Supremo Eleitoral, o juiz Alexandre de Moraes. Agora, como analisa o jornalista especialista em matérias judiciais Felipe Recondo, “isto é tudo o que o inquérito precisava para se encaminhar para um direcionamento a ele, Jair Bolsonaro”.
Não tardou, por isso, a que vozes dentro e fora do Brasil pedissem a extradição ou deportação de Bolsonaro dos Estados Unidos, onde se encontra neste momento. Dois congressistas norte-americanos (Alexandria Ocasio-Cortez e Joaquín Castro) disseram que o ex-Presidente brasileiro devia abandonar o país; já o senador brasileiro Renan Calheiros pediu diretamente para que Bolsonaro seja extraditado, “para que responda por todos os crimes que cometeu”.
“É claro que a extradição é possível, existe um acordo judicial entre Brasil e EUA”, afirma Thiago de Aragão. “Mas tudo depende de como o processo avançar e das provas que forem apresentadas”. Em alternativa, Washington poderia antecipar-se e ordenar a deportação do cidadão brasileiro do seu país — mas é improvável que a administração Biden se queira imiscuir na política brasileira sem a existência de uma ordem judicial.
A encruzilhada política de Bolsonaro: liderar a oposição formal ou a “dos hooligans”
Se judicialmente as consequências para Bolsonaro são ainda incertas, politicamente o ex-Presidente não está numa situação fácil. Isto porque, aparentemente, a condenação social dos acontecimentos na Praça dos Três Poderes sobrepôs-se ao apoio. “Todos os que gostam e defendem a democracia acham isto um absurdo, inclusive muitos bolsonaristas”, diz Aragão.
A BBC Brasil detetou inclusivamente críticas nas redes sociais de apoiantes de Bolsonaro, que dizem não concordar com a invasão. “Não podiam quebrar nada, pessoal. Agora estão nos chamando de terroristas e golpistas”, disse um bolsonarista num grupo privado. “Vandalismo não é patriotismo”, escreveu outro.
Sentindo este humor político, muitos dos aliados mais e menos distantes de Bolsonaro vieram a público criticar a ação dos radicais. Desde o presidente do partido do ex-Presidente, que garantiu que esta “vergonha” não representa o Partido Liberal nem Bolsonaro, passando pelo governador Tarcísio de Freitas (“Manifestações perdem a legitimidade e a razão a partir do momento em que há violência”) e indo até ao antigo ministro da Justiça de Bolsonaro, o juiz Sérgio Moro, que defendeu que a oposição deve ser “democrática”.
À boca pequena, membros dos partidos do Centrão (a massa política do Congresso sem ideologia clara) disseram mesmo à Globo que as declarações de Bolsonaro não foram suficientes para se distanciar do que aconteceu e criticaram a postura do antigo Presidente.
Uma posição que o consultor de risco Thiago de Aragão diz ser um clarificar de águas que está a acontecer na política brasileira: “Atualmente, todo o mundo que importa, ou seja, todo o mundo que quer ser oposição formal ao governo de Lula, vai distanciar-se disto”, resume.
E como é que isso deixa o futuro político de Jair Bolsonaro e do próprio bolsonarismo? “Está em aberto. Tudo depende dele”, diz o analista. Em concreto, o ex-Presidente tem agora uma decisão a tomar, diz: “Perceber se quer ser líder de uma oposição formal — e para isso teria de condenar com bastante força o que aconteceu — ou se quer ser líder de uma oposição informal, composta por uns hooligans.”
Por agora, não houve condenação mais forte por parte de Jair Bolsonaro. Em vez disso, o seu filho Flávio Bolsonaro, que é atualmente senador, pareceu colocar mais lenha na fogueira. “Pais de família foram presos. Isso vai despertar a revolta dos familiares”, avisou, perante os colegas do Senado. Em privado, já antes lhes tinha deixado por mensagem no WhatsApp um recado: “Vamos cobrar a quem tem culpa e DEFINITIVAMENTE [a culpa] não é do Bolsonaro.”