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Num país com raízes jazzísticas recentes, poucos acreditariam, em 2012, que uma editora vocacionada para lançar apenas discos de membros da Associação Porta-Jazz, cujo intuito é “promover o jazz no Porto”, estaria ainda activa passados oito anos e com um catálogo a somar 68 referências. Menos previsível ainda seria, em 2012 que esses 68 discos exibissem um nível médio tão satisfatório e uma diversidade de estilos tão grande.
Os sete últimos títulos (PJ 062 a 068) da Carimbo Porta-Jazz são um bom testemunho da vitalidade do jazz feito no Porto (e arredores) e oferecem música para gostos variados, das atmosferas industriais soturnas e retro-futuristas de The darkness of the unknown, à recriação inspirada e calorosa do hard bop do dealbar da década de 1960 de Implosão. E servem como convite a que se investiguem os restantes 61 discos do catálogo, entre os quais estão quatro da big band Coreto, onde confluem os talentos individuais dos membros da Associação.
The darkness of the unknown (PJ 062)
Miguel Moreira
Músicos: Lucien Dubuis (clarinete baixo), Miguel Moreira (guitarra), Mário Costa (bateria), Rui Rodrigues (percussão)
A Associação Porta-Jazz mantém com o festival Guimarães Jazz uma parceria que promove residências artísticas multidisciplinares que unem músicos portugueses e estrangeiros e um artista da área da imagem ou da performance, e cuja actuação no festival é editada pela Carimbo Porta-Jazz. No Guimarães Jazz essa residência teve como líder o guitarrista Miguel Moreira e contou com o clarinetista suíço Lucien Dubuis e o bailarino/coreógrafo Valter Fernandes.
Esta iniciativa tem produzido os discos mais “experimentais” do catálogo da Carimbo Porta-Jazz e este não é excepção: a inquietação perante o futuro patente nos títulos das faixas – “How do you rehearse the unknown”, “The darkness of the unknown”, “How do you rehearse the future” – traduz-se em música tortuosa, suja e sombria, desempenhando os pedais de efeitos de Moreira um papel crucial na definição dos ambientes. Algumas faixas estão mergulhadas numa neblina opaca, outras são agitadas por um nervosismo obsessivo-compulsivo (“The future loops from the past”) e outras ainda vibram com uma energia rock malsã (“Monster” II e II). É o disco menos acessível do lote e aquele que melhor reflecte a neurastenia do mundo desenvolvido no início do século XXI: aterrado perante o futuro, incapaz de aceitar a “incerteza” que este comporta e contemplando o passado como um tempo feliz, seguro e previsível, sem perceber que o passado só ganhou essas qualidades precisamente por ser passado.
Connecting the dots (PJ 063)
Hugo Raro
Músicos: João Mortágua (saxofone), Hugo Raro (piano), José Carlos Barbosa (contrabaixo), Marcos Cavaleiro (bateria)
Hugo Raro é um dos mais activos e originais elementos da comunidade jazzística portuense (a big band Coreto, os Sinopse de João Paulo Rosado, o quinteto Impermanence de Susana Santos Silva, o Rui Teixeira Group, o quinteto de José Pedro Coelho) e vários são os discos da Carimbo Porta-Jazz que têm beneficiado da sua participação, mas, salvo erro, este é o primeiro disco em nome próprio – ainda que, na prática, seja ele o mentor dos projectos Baba Mongol e Espécie de Trio.
O bom nível dos Espécie de Trio e o facto de os solos de Raro serem frequentemente o ponto alto dos discos em que participa, bem como a participação do saxofonista João Mortágua (responsável pelos excepcionais álbuns Mirrors e Axes) cria expectativas altas, que Connecting the dots não cumpre inteiramente. O ponto alto do disco está em “Old house”, uma balada cujo começo sereno não deixa adivinhar a intensidade atingida durante o solo do pianista.
Sete (PJ 064)
Marcos Cavaleiro
Músicos: trio com João Guimarães (saxofone), Thomas Morgan (contrabaixo) e Marcos Cavaleiro (bateria), expandido a quarteto e quinteto pela adição de José Pedro Coelho (saxofone) e André Fernandes (guitarra) + João Grilo (electrónica) na faixa 7
Embora Marcos Cavaleiro seja um dos bateristas mais requisitados do jazz português e de ser a presença mais assídua no catálogo Carimbo Porta-Jazz (a comprová-lo está o facto de surgir em quatro discos neste lote de sete), só aos 40 anos se estreou como líder, com este Sete, com sete composições (sem título) de sua autoria e cuja formação inclui um contrabaixista de gabarito mundial, o americano Thomas Morgan.
Os momentos altos contam com a guitarra de André Fernandes, que confere um ambiente tenso e ominoso ao swing elástico de “4” e que, dando rédea solta à distorção, protagoniza um excelente solo, mais da órbita do rock e do blues , em “5”. É difícil encontrar explicação para a faixa “7”, em que a banda se ausenta e João Grilo produz um longo bocejo electrónico.
Hundred milliseconds (PJ 065)
João Martins
Músicos: Fábio Almeida e Gabriel Neves (saxofones), Nuno Trocado (guitarra) e João Martins (bateria e sintetizadores)
É a estreia como líder de João Martins, ainda que este baterista tenha já discos editados sob o nome dos colectivos Troll’s Toy e Phantom Trio, de que fazem parte, respectivamente, os saxofonistas Gabriel Neves e Fábio Almeida (que integram este quarteto), a que se somam incursões na área do rock (com os Souq), do prog rock (com os Muryan) e do funk (os Dynamite Station, banda de tributo a James Brown). A variedade de experiências e gostos de Martins reflectem-se na variedade de propostas de Hundred milliseconds, que tanto pode soar meditativo e rarefeito (“100ms”) como pode aderir ao rock vigoroso e sombrio (“As partes de um todo”, a faixa mais cativante do CD). A direcção das operações está quase sempre entregue à bateria, angulosa, irrequieta e desrespeitadora de convenções.
Implosão (PJ 066)
Ricardo Formoso
Músicos: Ricardo Formoso (fliscorne), Seamus Blake (saxofone), Albert Bover (piano), Demian Cabaud (contrabaixo), Marcos Cavaleiro (bateria)
Na cultura e nas artes o conceito de região demarcada é mais fluido do que nos vinhos, pelo que o galego Ricardo Formoso (n.1986, La Coruña) não é um intruso num catálogo dominado por formações com liderança de músicos portugueses, não só pelas afinidades entre o Norte de Portugal e a Galiza como pelo profundo envolvimento de Formoso com o jazz português, nomeadamente como docente e como membro da Orquestra Jazz de Matosinhos.
Implosão é o segundo disco de Formoso na Carimbo Porta-Jazz e representa um apreciável progresso em relação a Origens, gravado em 2017: ambos se filiam no hard bop das décadas de 1950-60, mas enquanto Origens era morno e rotineiro, em Implosão há uma interacção química evidente entre os músicos, que faz com que a música levante fervura. Entre os dois discos, a formação foi quase integralmente renovada (apenas se manteve o omnipresente Marcos Cavaleiro) e acolheu um saxofonista de estatuto internacional, o canadiano Seamus Blake (com uma quinzena de álbuns gravado, quase todos na Criss Cross), mas, mais do que talentos individuais, o que impressiona em Implosão é a sinergia e entrosamento de todo o quinteto.
O disco é de qualidade homogénea, mas vale a pena destacar “Dimensão”, com vivo diálogo entre fliscorne e saxofone, “Transição”, que faz pensar na incandescência dos Jazz Messengers de há 60 anos, e “Orbital”, com um groove funky (em que o piano de Albert Bover é fundamental) que evoca as bandas de Horace Silver da mesma era.
The guit kune do (PJ 067)
André B. Silva
Músicos: André B. Silva, AP [António Pedro Neves], Eurico Costa, Francisco Rua, Miguel Moreira (guitarras), João Próspero (baixo eléctrico), Diogo Silva (bateria)
André B. Silva representa 1/3 dos The Rite of Trio, responsáveis pelo iconoclasta Getting all the evil of the piston collar! (Carimbo Porta-Jazz), um dos melhores discos de jazz português de 2015. Embora o guitarrista também cultive jazz mais “tradicional”, no André B. Silva’s 4tet, o projecto The Guit Kune Do, que agora se estreia em disco, funde jazz, funk e rock e recorre a uma insólita geometria instrumental com cinco guitarras, baixo eléctrico e bateria. A complexa sobreposição de diversas malhas de guitarra na introdução de “Wakey wakey, stellar shakey” remete para The League of Crafty Guitarists, a orquestra de guitarras de Robert Fripp, “Wind-up bird” é dominado pelo ímpeto e energia do rock e “Quarantino” é animado por uma jovialidade pop e uma energia funk que impedem os pés do ouvinte de ficarem quietos.
Trama no navio (PJ068)
João Pedro Brandão
Músicos: João Pedro Brandão (saxofone), Ricardo Moreira (piano órgão Hammond), Hugo Carvalhais (contrabaixo), Marcos Cavaleiro (bateria)
Trama no navio é um título invulgar para um disco de jazz, mas é facilmente explicado pela sua génese: em 2019, a Orquestra de Jazz de Matosinhos encomendou a cinco jazzmen – e João Guimarães, João Pedro Brandão, Paulo Perfeito, Pedro Guedes e Telmo Marques – música para servir de banda sonora a cada uma das partes de O couraçado Potemkin (1925), de Eisenstein, um dos filmes mudos que mais tem suscitado o interesse dos músicos do nosso tempo.
João Pedro Brandão, a quem coube a parte II, “Trama no navio”, ficou tão estimulado pelo desafio que retomou a sua composição, autonomizou-a do filme, expandiu-a em termos temporais, até aos 40 minutos de duração, e compactou-a em termos instrumentais, confiando-a a um quarteto. São diversos os ambientes que desfilam ao longo dos 40 minutos, mas a peça é dominada pela tensão e agitação, havendo mesmo trechos violentos e exasperados, que fazem pensar no free jazz da década de 1960. O tumulto só se aquieta no final, dando lugar a um tom elegíaco, que corresponde, possivelmente, à morte, no final da parte II do filme, de Vakulinchuk, líder dos marinheiros amotinados.