[este texto foi originalmente publicado a 8 de maio de 2021 e atualizado após a morte de Joan Didion, a 23 de dezembro de 2021]
O que diria Joan Didion sobre tudo isto? A autora morreu a 23 de dezembro de 2021, tinha 87 anos e deixara de publicar há 10, pelo que é impossível saber. Porém, face às perplexidades do último ano, a questão tem surgido de forma mais insistente. O que diria sobre “o fim do normal” a mulher que dedicou as suas obras mais importantes a tentar encontrar algum sentido no caos? Que imagens escolheria? Que linha narrativa seria a sua salvação? “Contamo-nos histórias de forma a conseguirmos viver”, afirma no arranque de The White Album, redigido entre 1968 e 1978. A frase tornar-se-ia uma imagem de marca. “Ou pelo menos fazemo-lo durante algum tempo. Estou aqui a falar de uma era em que comecei a duvidar das premissas de todas as histórias que alguma vez contei a mim própria, uma circunstância comum mas que me perturbou.”
The White Album é o primeiro texto de uma coletânea de ensaios autobiográficos com o mesmo nome publicada em 1979. Um mosaico de experiências pessoais e profissionais durante uma época especialmente conturbada da história dos Estados Unidos. Dos confrontos num campus universitário entre a polícia e membros da organização política Black Panthers – “A desordem era um objetivo em si mesma” – a uma sessão de estúdio com a banda The Doors – “os Norman Mailer do Top 40, missionários do sexo apocalíptico”. Didion trabalhava na altura como colunista, vivia com o marido e a filha adotiva numa mansão decrépita de Malibu e guiava um Corvette Sting Ray amarelo.
Em 1968 revolucionara a escrita de não-ficção com Slouching Towards Bethlehem, um conjunto de ensaios sobre a vida na Califórnia durante a década de 1960, grande parte dedicados à contracultura. Neste segundo livro, cristalizaria o estilo que a celebrizou, em que à contundência dos relatos sobre a atualidade juntava instantâneos da sua própria vida. Num momento estamos a ler sobre o cocktail que a cantora Janis Joplin pede para beber (Brandy e Bénédictine, um B&B) no outro sobre o relatório psiquiátrico de uma doente que “sofreu um ataque de tonturas, náusea, e a sensação de que ia desmaiar.” “A doente sou eu”, atalha. “Em jeito de comentário acrescento que um ataque de tonturas e náusea não me parece uma reação desadequada ao Verão de 1968.” Em jeito de paralelo, salientamos que em Fevereiro de 2021, em plena pandemia de covid-19, a revista The Atlantic exortava: “Tragam de volta o esgotamento nervoso”. O subtítulo do artigo explicava: “Costumava ser aceitável admitir que o mundo simplesmente se tornara demasiado para aguentar”. A pergunta ressurge: o que diria Joan Didion sobre tudo isto?
Nenhum destes livros está editado em português, o que ajudou a que até há poucos anos este ícone da literatura norte-americana fosse quase desconhecido deste lado do Atlântico. Mesmo quem ouvira falar em Joan Didion talvez não fosse muito além da imagem impassível e misteriosa, dos contributos para o “Novo Jornalismo” ou daquele famoso momento amoral em que descreve como “puro ouro” o vislumbre de uma criança de cinco anos “em altas” depois de tomar um ácido, na altura em que reportava o movimento hippie em São Francisco. Não era cinismo, era desconexão. A californiana sempre se sentiu uma outsider. Mesmo nos círculos mais internos de Hollywood, de que fazia parte, nos lugares mais privados da contracultura, a que teve acesso, e até junto a um certo tipo de poder, onde a receberam por mais do que uma vez.
Didion especializou-se na ilusão do controlo. Sobreviver à incerteza. Palavras precisas, frases claras, imagens elegantes. Um trabalho de artífice e obsessão. Nem por isso suficiente para anular a realidade. Sobre a sintaxe perfeita e a cadência hipnotizante paira uma inquietação permanente, como se houvesse sempre qualquer coisa que está para acontecer.
Já nas décadas de 1960 e 1970, o jornalismo norte-americano estava a milhas do que se fazia por cá. Quanto à não-ficção literária, nunca foi muito valorizada. O momento em que nos devolvem de uma forma que nunca vimos aquilo que estamos cansados de ver. Como se até hoje preferíssemos viver no engano da imparcialidade a aceitar a honestidade do observador com um ponto de vista. Era este o seu lugar. A independência desalinhada, o olhar analítico, a voz inconfundível. Lê-la é sobretudo ouvi-la. “Escrevo inteiramente para perceber o que penso, aquilo para que estou a olhar, o que vejo e o que significa. O que quero e o que temo”, explica em “Why I Write” (“Porque escrevo”). “O que é que se está a passar nestas imagens que me surgem na cabeça.”
“Why I Write” é um ensaio publicado no jornal The New York Times em 1976 e 45 anos depois, em 2021, em Let Me Tell You What I Mean, a mais recente compilação de textos da norte-americana, uma surpresa no meio editorial, ainda sem versão portuguesa. A edição terá sido ditada, não por uma vontade universal repentina de saber o que diria Joan Didion sobre tudo isto, mas porque, num daqueles fenómenos impossíveis de prever ou controlar, nos últimos anos ela se tornou um ícone de estilo. Pior, de “lifestyle”. Uma expressão que, arriscamos, desprezará. “Estilo é carácter”, sublinhava em 1976 num artigo sobre a pintora Gorgia O’Keeffe, incluído em White Album. “Carácter” no sentido de substância. Trata-se, defende, de uma “suposição bastante básica”, a ideia de que cada decisão – “cada palavra escolhida ou rejeitada, cada pincelada dada ou não” – trai o carácter de cada um.
Didion não tinha conta no Instagram, mas uma busca rápida mostra-nos quase 47 mil posts com o hashtag “#joandidion”. Capas de livros junto a plantas de interior, leitoras em piscinas ou rooftops e, sobretudo, retratos da autora. Quase sempre a mesma pose, quase sempre a mesma expressão: imperturbável, impenetrável, impecável. A mulher que mergulhou no movimento hippie vestida de caxemira. O peso-pluma que se encontrou mais do que uma vez com Linda Kasabian, ex-membro do culto de Charles Manson, na prisão. No seu auge, foi muitas vezes acusada de se expor demasiado. Se há coisa que as redes sociais mudaram foi a noção do que é, ou não, partilhável. Relativizando o número, posts com o hashtag “#normanmailer”, o autor de Os Nus e os Mortos, que a própria usava como exemplo de popularidade na década de 1960, não chegam a sete mil. Hemingway, a sua grande referência, tem 450 mil. Hoje, nos Estados Unidos, é possível chegar a uma loja e pedir um “vestido Didion”.
O fascínio já vem de trás. “The queen of cool”, podíamos resumir – ou “cold”, consoante a perspetiva. O que é novo é a transversalidade. O culto global. A canonização surpresa sobre um fundo de tragédia e ironia. A começar pelo momento em que se identifica o “renascimento” de Didion com O Ano do Pensamento Mágico (2005), livro sobre o ano que se seguiu à morte súbita do marido, vítima de um ataque cardíaco fulminante, o também escritor John Gregory Dunne, companheiro de uma vida inteira (“O casamento é memória. O casamento é tempo”). Ela que sempre estivera de fora, ela que nunca se envolvera – “a falcoeira”, chama-lhe a revista The New Yorker num artigo de fevereiro – expõe-se aqui em toda a sua vulnerabilidade ruminativa.
“E vai acontecer-te. Os pormenores vão ser diferentes, mas vai acontecer-te. E é sobre isso que estou aqui para te falar”, interpela-nos a atriz Vanessa Redgrave na adaptação do texto ao teatro. “A razão pela qual tive de o escrever é que nunca ninguém me disse como seria. Foi uma forma de lidar com”, explica a própria sobre o livro, voz e mãos trémulas, pouco mais de 40 quilos de peso, um corpo que parece já não obedecer, naquele que será o principal catalisador desta popularidade tardia, o documentário de 2017 realizado pelo sobrinho Griffin Dunne para a Netflix, “O Centro Não Consegue Suster-se”.
[o trailer de “O Centro Não Consegue Suster-se”, disponível na Netflix:]
Pelo meio, outro acontecimento trágico, a mais insuportável das dores, a páginas tantas inominável, a perda de uma filha. Quintana Roo tinha 39 anos e não resistiu a complicações de múltiplos problemas de saúde anteriores. O pai morrera dois anos antes. A um livro de memórias sobre luto segue-se outro, dois marcos entrelaçados numa pungente estratégia de sobrevivência. Dois fenómenos editoriais também. Com o mesmo olhar que lhe valera a consagração, Didion reporta sobre a morte, sobre o desgosto, sobre a mágoa. A diferença é que aqui o sujeito principal é ela.
“Quando falamos de mortalidade, falamos dos nossos filhos”, lamenta. “Nesse dia do casamento [de Quintana], 26 de julho de 2003, não víamos motivos para que dádivas vulgares como essas não acontecessem. Reparem: ainda víamos a felicidade e a saúde e o amor e a sorte e os filhos bonitos como ‘dádivas vulgares’.” Entre flashbacks e reflexões, enfrenta os seus demónios. Quando morrer, não deixará ninguém para trás. Não há um dia em que não pense na filha. Terá sido uma mãe suficientemente boa? “Ela já era uma pessoa. Nunca consegui ver isso.”
Didion escrevia para não esquecer, sabendo que para poder seguir em frente teria de abrir mão desse mundo que lhe era tão querido e seguro e que se lhe desapareceu de um momento para o outro sem ela poder fazer nada para o evitar. “Let go.” Ela sabia que depois disso não há mais nada, a não ser o absurdo de tudo isto.
Editado nos Estados Unidos em 2011, Noites Azuis foi publicado recentemente em português pela Cultura Editora, a mesma que traduziu O Ano do Pensamento Mágico em 2017, pouco depois da estreia do documentário da Netflix. Este último vai já na terceira edição. “Temos notado nos últimos tempos uma procura acentuada deste título, talvez motivada pelas circunstâncias que vivemos”, adianta o editor João Gonçalves, referindo-se ao interesse generalizado por livros sobre o fim da vida que se tem verificado desde o início da pandemia. Malgrado a lastimosa tradução, Noites Azuis dá seguimento ao plano de publicar toda a obra de Didion, incluindo a ficção. Let Me Tell You What I Mean será o próximo.
Uma autora que não produz é um problema para um mercado que exige. Daí que a única opção seja investir em arqueologia. Por outras palavras: ir buscar coisas antigas, todas elas publicadas em jornais e revistas entre 1960 e 2000, na sua maioria inéditas sob a forma de livro, mesmo passados todos estes anos. Para quem já conhece a obra da norte-americana, Let Me Tell You What I Mean é um reencontro bem-vindo – o tom, a atenção ao pormenor, a reverência pela palavra, a capacidade premonitória – mas sobretudo como complemento, quase um artefacto para fãs. No caso da bela edição britânica, da 4th Estate, a mística prolonga-se pelo objeto em si, da foto da capa à fonte tipográfica, das cores escolhidas aos tipos de papel. Estilo é carácter. Aqui, resgata para o presente instagramável a aura de tempos perdidos. E se o pior desta coletânea será a sensação de que os 12 textos são uma seleção desconexa que não compõe um todo, o melhor está justamente em alguns desses textos. No limite, toda a escrita será autobiográfica. Ao explicar-nos o que está a tentar dizer-nos, Didion está também a falar-nos sobre si.
Quando elogia a imprensa underground dos anos 1960 pela capacidade de chegarem ao leitor em oposição aos jornais tradicionais e à sua “objetividade facciosa” (“Alicia and the Underground Press”): “Nunca li nada que precisasse de saber num jornal underground. Mas pensar que estes jornais são lidos pelos ‘factos’ é compreender mal o seu apelo. (…) esta assunção de uma linguagem partilhada e de uma ética comum confere aos seus artigos uma considerável coerência de estilo.” Quando em 1968 descreve a mulher do Governador da Califórnia Ronald Reagan (“Pretty Nancy”): “[tem] o sorriso de uma mulher que parece estar a desempenhar o sonho acordado de uma mulher de classe média, no ano de 1948.” Quando elogia o fotógrafo Robert Mapplethorpe, uns meses depois da sua morte, em 1989 (“Some Women”): “Havia sempre no seu trabalho a tensão, até mesmo a luta, entre a luz e o escuro. Havia a exaltação da impotência. (…) Havia, acima de tudo, a arriscada imposição da ordem sobre o caos, da forma clássica sobre imagens inconcebíveis.” De qualquer um destes excertos destacam-se ideias fundamentais para si: ordem, desassombro, comunicação. Questionar o estabelecido. Navegar a contradição.
E depois, Hemingway. Que para ela, Joan, esteve no início, desde o início. Em “Last Words” (1998), outro dos textos incluídos neste livro, explica como leu Adeus às Armas com 12 ou 13 anos e procedeu de imediato a examiná-lo ao pormenor, especialmente o primeiro parágrafo, 126 palavras até hoje tão misteriosas como da primeira vez. “Imaginei que se as estudasse de perto e praticasse com afinco talvez conseguisse um dia compor 126 palavras destas sozinha.” E continua: “Apenas uma das palavras tem três sílabas. Vinte e duas têm duas. As outras 103 têm uma. Vinte e quatro das palavras são ‘the’, quinze são ‘and’. Há quatro vírgulas.” A descrição obsessiva inclui ainda aquilo que na sua opinião será a chave para a “cadência litúrgica” (a colocação minuciosa das vírgulas e também dos “and” e “the”) e para a insinuação de ameaça (“a tensão criada pela informação não revelada”). Já em 1978 contara à revista literária The Paris Review que com 15, 16 anos, costumava passar os livros de Hemingway à máquina, para perceber como funcionavam as suas frases. “Quer dizer, são frases perfeitas. Frases muito diretas, rios suaves, água límpida sobre granito.”
A autobiografia involuntária acentua-se quando o tema é o autor de O Velho e o Mar. “A particularidade de se ser um escritor é que toda a empreitada envolve a humilhação mortal de ver as nossas próprias palavras impressas”, defende no mesmo texto, escrito a propósito da edição póstuma de um livro inacabado do autor. Didion, claro, está contra. A afirmação pouco acrescentará ao nosso entendimento sobre Hemingway, mas ajuda a perceber melhor a sua admiradora. Evoca, de resto, uma outra situação narrada por ela, numa outra peça deste livro, Telling Stories (1978). O momento em que aos 19 anos, tendo sido aceite num conhecido workshop para aspirantes a escritores da Universidade de Berkeley, na Califórnia, só conseguiu ultrapassar o sentimento de inadequação entrando camuflada numa “gabardine suja”. “Saqueei o meu armário em busca de roupas em que pudesse parecer invisível na aula”, conta. “Sentei-me vestida com esta gabardine e ouvi as histórias das outras pessoas lidas em voz alta e desesperei face à ideia de alguma vez saber aquilo que sabiam.” Escrever revela-se a equação impossível: a forma de dizer “Eu” ao mesmo tempo que desaparecemos na página. Sentir que aquelas palavras são inevitáveis, que são as únicas possíveis, e que vão fazer da nossa fragilidade uma fortaleza inatacável. Na crítica a White Album, o escritor Martin Amis usa um termo revelador, “[Didion aparece como] um ser humano que conseguiu cinzelar mais um livro de si própria.” “Cinzelar” como em “extrair-se” ou “arrancar-se”. Como se a sua vida dependesse disso.
Foi na redação da revista Vogue, em Nova Iorque, que a jovem californiana aprendeu a usar as palavras. A olhar para elas, não como espelhos da sua inadequação, “mas como ferramentas, brinquedos, armas para serem usadas de forma estratégica numa página.” A economia, a simplicidade, a precisão, a clareza. Também Hemingway fora jornalista. Também ele falava nas imagens que tinha na cabeça. A verdadeira arte estava não na descrição ou explicação, mas na escolha. Se conseguisse reduzir aquilo que via aos seus elementos mais essenciais conseguiria conduzir o leitor pelos mesmos caminhos que percorrera.
“Quando falo sobre imagens na cabeça, estou a falar, muito especificamente, de imagens que cintilam.” Estamos de volta ao ensaio “Why I Write” e às imagens que lhe surgem na cabeça. “Não sou esquizofrénica nem tomo alucinogénios, mas de facto certas imagens cintilam para mim. (…) A imagem diz-te como dispor as palavras e a disposição das palavras diz-te, ou diz-me a mim, o que se passa na imagem.”
Pouco se sabia da vida recente da octogenária, provavelmente recolhida em casa, em Nova Iorque, há mais de um ano a tentar sobreviver a tudo isto. E à medida que os acontecimentos se sucediam, ecoavam as palavras de The White Album: “Algumas destas narrativas não cabiam em nenhuma das narrativas que conhecia.” A pergunta volta a emergir, “Que diria Joan Didion sobre tudo isto?” Que veria em tudo isto? Que imagens cintilariam? E o lhe diriam para escrever?