Mora no Príncipe Real, em Lisboa, há muitas décadas e é nessa zona que combina encontrar-se com o Observador. São três da tarde, aparece sorridente, mas fica sério e não sabe onde pôr as mãos quando começa a ser fotografado. Durante mais de uma hora, vai falar sobre cinema, política, filhos e polémicas – uma avalanche de temas e associações de ideias. O realizador de “Tráfico” e “Os Maias” assinala 40 anos de filmes e é alvo de homenagem no Lisbon & Sintra Film Festival (LEFFEST), com uma retrospetiva quase completa que tem início neste sábado, às 16h30, no Cinema Monumental. Será exibida a longa-metragem “Tempos Difíceis”, de 1988, em cópia restaurada.
Nascido em Lamego há 69 anos, João Botelho é lisboeta desde 1974 e tornou-se uma figura carismática da noite, presença habitual em bares e discotecas da capital, em diálogo com novos e velhos. Mantém-se anarquista, tal como nos tempos de juventude, e defende que a democracia está a girar em torno do “espetáculo medíocre da vida”. Para ele, a essência do cinema está na forma de filmar e não na história que um filme conta.
[excerto de “Tempos Difíceis”, de 1988]
Disse há uns tempos que a partir dos 70 anos quer deixar de ser boémio. A promessa mantém-se?
A boémia é uma coisa estranha… Na verdade, sou mas é noctívago, o que tem a ver com o facto de só conseguir trabalhar em silêncio. É um dos meus defeitos. Tive três filhos, com cinco anos de intervalo. Um deitava-se às 9, outro às 11, outro à uma da manhã. Só a partir das duas horas é que eu tinha silêncio para trabalhar. Ao contrário dos miúdos de hoje, que são fantásticos e conseguem estar a ler, a ouvir música, a trabalhar e a jogar, tudo ao mesmo tempo, eu não. Se estiver a ouvir música, não consigo ler, por exemplo. Tenho mesmo de estar em silêncio. Durante 27 anos não fui nada boémio, estive em casa a educar os filhos, mas eles agora estão crescidos, são independentes, já posso só trabalhar e dançar.
E quer deixar de dançar a partir do próximo ano?
Não sei. Se calhar, aos 70 é ridículo uma pessoa andar a dançar por aí aos saltos. Vamos ver. Não sei se vou mudar de vida, talvez passe a ter outro tipo de atitude em relação à noite. Não é uma certeza. A única coisa que me chateia é a ideia de deixar de trabalhar. Agora quiseram fazer esta retrospetiva, parece o fecho de um ciclo. Digo sempre que o [Manoel de] Oliveira passou a fazer muitos filmes depois dos 70 e eu ainda só tenho 69.
Parece que o estão a reformar?
Sim, é um bocado doloroso. Por outro lado, há uma série de filmes meus que já não vejo há muito tempo e pelo menos com esta retrospetiva posso perceber se envelheceram bem ou não.
Como é que sabe?
Se ainda gostar de ver os filmes que fiz, é porque envelheceram bem. No outro dia fiquei surpreendido com o “Conversa Acabada” [1981]. No Reina Sofia, em Madrid, o João Fernandes [subdiretor do museu] fez uma exposição sobre o Modernismo português e o “Conversa Acabada” foi exibido. Não desgostei. Acho que se aguenta passados 38 anos. Sobretudo, tem de haver coerência no modo de filmar. Acho que neste primeiro filme já tinha uma noção de que gostava mais de cinema do que de filmes. Ou seja, acho que filmes são histórias e cinema é o modo de as filmar. Hoje há uma certa decadência do cinema, porque o cinema não manda, mandam as narrativas. Um filme hoje tem dois mil planos e dois mil efeitos sonoros, mas ninguém ouve nem vê nada daquilo, são divertimentos puros e simples. Alguns são bons, claro, sempre houve filmes de entretenimento, mas há uma diferença entre esse cinema-movimento e aquilo a que se chama cinema-tempo ou cinema-pensamento. Toda a gente sabe que o cinema é falso. São duas dimensões, ninguém morre, ninguém vai para a cama, é tudo montagem. O que depois diferencia os realizadores uns dos outros é o modo de filmar. O modo de filmar do Ford não é o igual ao do Renoir. Por isso é que os distinguimos. Evidentemente, o cinema não é uma arte pura, porque vampiriza as outras artes.
É uma técnica?
Começa como invenção técnica para divertimento em feiras e depois houve artistas que começaram a fazer cinema, o [D.W.] Griffith, desde logo. Agora ando a fazer umas coisas no [Rive] Rouge [discoteca do Cais do Sodré, em Lisboa], em que são exibidos filmes mudos com música eletrónica ao vivo, DJs e tal. Quando estou a ver aqueles filmes noto que a invenção cinematográfica é muito mais poderosa do que hoje. A construção dos planos, das sequências… Passámos o “Lírio Quebrado”, do Griffith, o “Entusiasmo”, do Vertov, “The Cheat”, do Cecil B. DeMille. Nos anos 30 e 40, o cinema era uma arte popular e estes filmes, vistos hoje, mostram coisas novas ainda. Há ali um poder do modo de contar que hoje está um bocado arredado. Hoje, 90% das pessoas que vão às salas são miúdos que querem ver desenhos animados ou adolescentes até aos 17 anos. Os adultos estão arredados das salas.
O que não é necessariamente mau.
Pois não, mas é um molde que domina, domina muito. Em Portugal, o nosso cinema é mais bem recebido do que antigamente, mas se quisermos ver um filme francês, italiano ou espanhol temos de ir ao festival de cinema disto e daquilo. O que vai para as salas no resto do tempo são filmes americanos ou portugueses. Em França só há filmes franceses ou americanos, em Espanha são filmes espanhóis ou americanos. Há uma hegemonia de uma indústria, que ocupa as salas. Há 20 filmes americanos a estrear todas as semanas. As pessoas consomem o que lhes dão. Os adultos ficam em casa. Por isso é que digo: hoje nas séries de televisão, ou de internet, há mais cinema do que nas salas, grandes argumentistas, realizadores, atores.
Que séries que tem visto?
Por exemplo, “True Detective”, uma coisa notável. Acho que o cinema começou a entrar nas séries com “Os Sopranos”, é aí que começo a ver muitos planos fixos, só pensamento. São coisas incríveis.
Como realizador, pretende levar os adultos de regresso às salas?
Não é isso. Não precisamos de fazer resistência, perdemos sempre. Podemos é fazer dissidência, fazer coisas ao lado. Neste caso, mostrar que o cinema não é uma coisa única, há mil maneiras de fazer filmes. O cinema americano é apenas uma delas. Digo sempre: o problema foi o “Tubarão” [Spielberg, 1975], que abriu a boca e nos comeu a todos. O filme nem é mau, mas marcou uma viragem terrível. Foi o primeiro filme de uma geração de putos cinéfilos e cultos que perceberam que a indústria estava a rebentar. Já não falo do Coppola, esse ainda foi cineasta. Os que vieram depois é que começaram a fazer aventuras juvenis que não serviam para mais nada se não para divertimento.
O “Tubarão” é anterior ao início da sua carreira, o que significa que esse modelo de que se queixa é o que vigora desde que trabalha em cinema.
Mas ainda havia outras coisas. Quando eu era miúdo e ia ao cinema, nos anos 60, havia mais filmes europeus nas salas do que filmes americanos. Era a época do Rossellini e do Fellini, da Nouvelle Vague, do Visconti, do Bergman, era isso que dominava. Depois é que os filmes americanos começaram a dominar. Esses “jovens turcos” inventaram um novo modo de ocupar as salas, dominam o mundo através do divertimento. Os americanos agora até querem combater a indústria de Bollywood, que é a única que lhes faz frente. Por isso, agora querem dobrar os filmes americanos em hindi para poderem entrar no mercado indiano. Em Portugal, a pequena fatia que cabe ao nosso cinema dá-nos poucos meios e, no entanto, fazemos milagres, coisas que transcendem as pessoas.
Há filmes de um milhão em Portugal. Para a nossa escala…
Um milhão não é nada. Um filme americano custa mil vezes isso, um filme francês normal custa 50 vezes isso. Filmamos com muito pouco, mas sei que é muito em relação às outras coisas. Sei que sou um privilegiado, sei que filmar em Portugal é um luxo. Tive alguns problemas no início, mas agora faço um filme de dois em dois anos. Outro dia fiz as contas: em 38 anos de cinema, fiz 34 filmes. Tenho filmes com pouco dinheiro, fiz uns cinco só sobre Trás-os-Montes. Também já fiz filmes de mais de um milhão, como “Os Maias” [2015] ou a “Peregrinação” [2017]. É evidente que o Estado só dá metade, mas depois a gente mexe-se e consegue o resto. Não dá para fazer grandes aventuras, não dá para fazer a verosimilhança, dá para fazer a representação. Ainda hoje acho que a palavra está mais perto da verdade do que a imagem. A palavra fica registada, a imagem pode ser mais manipulável. Nos últimos anos, com a idade, comecei a achar que filmar é um serviço público e deveria devolver isso à sociedade, por isso, comecei a pegar em textos importantes da literatura portuguesa.
[trailer de “Os Maias”]
Diz que a falta de dinheiro lhe permite filmar a representação, mas sem verosimilhança. Quer dizer que a estética dos seus filmes é sobretudo resultado da falta de meios?
Quando era miúdo, dizia aquelas parvoíces: “Viva Rossellini, abaixo Visconti”, “Viva Ford, abaixo Walsh”. Uma parvoíce, porque todos eles eram génios. Eu dizia isto porque me identificava com aqueles que filmavam com poucos meios. Por isso é que eu gostava mais do Ozu do que do Mizoguchi, mais do Dreyer do que do Bergman. O modo de produção dos filmes faz com que se faça determinado tipo de cinema.
Se tivesse tido três milhões para o primeiro filme…
Tinha feito três filmes em vez de um. Mas se calhar não teria feito nada de jeito. Quando as pessoas começam a meter muito dinheiro, querem ter retorno e perdem competência. Uma das coisas que fazem a grandeza do cinema português… E não gosto só dos meus, gosto do Oliveira, do José Álvaro Morais, do Pedro Costa, do Miguel Gomes, do Pedro Peralta, do André Gil da Mata e do João Salaviza nas curtas – nas longas não gosto do Salaviza, porque aquilo foi de mais para ele. Mas uma das coisas que fazem a nossa grandeza é que os meios não impedem de filmar. Essa afinidade entre todos, isso de todos partilharem o mesmo modo de produção, é muito interessante, porque a questão não é como se produz, mas sim como se mostra. O cinema americano gasta mais no lançamento de um filme do que todo o dinheiro que há por ano para o cinema português. Não temos mercado, não temos indústria. Por isso, o cinema só existe em Portugal se for apoiado pelo Estado. Os nossos filmes não se pagam com receitas de bilheteira. Aqueles filmes do Vasco Santana, as comédias dos anos 30 e tal, não gosto desses filmes, não têm uma ideia nova de cinema, naquela época já havia grandes artistas, e nós, nada. Talvez haja uma ideia de cinema n’ “A Canção de Lisboa” [1933], porque o Cottinelli Telmo era arquiteto. Os atores eram brilhantes, mas os textos eram zero e o cinema era zero. Era um cinema fascista: a pobre portava-se bem e tinha uma herança, a ascensão era feita em função do comportamento moral, aquele que não levantava ondas era recompensado. Ora, esses filmes, ao contrário do que se pensa, davam um prejuízo enorme, o Estado Novo é que pagava aquilo. Nunca houve rentabilidade no cinema português. Isto tem uma vantagem e uma desvantagem. Por um lado, nenhum cineasta é tão livre à face da terra como um cineasta português, porque não tem de ser rentável, é uma liberdade sem preço. A desvantagem é que não somos vistos.
Por isso mesmo há contribuintes que acham inaceitável que o Estado continuar a financiar filmes que não são vistos.
Então também não se financia a ópera, nem a dança, nem as orquestras, porque também não são êxitos de bilheteira. Um país sem arte e sem cultura é um caixote do lixo, como dizia o O’Neill. Vamos ver: o investimento é pequenino, são 0,37% do Orçamento do Estado, nem chega a 1%. Mas, sim, sei que é um luxo fazer filmes e a partir de certa altura achei que tinha de fazer obras contra a perda da memória. Circulei por escolas e cine-teatros, uma sessão ou duas por terra, andei com o projetor por 170 terras, como quando eu era pequeno e havia uns senhores que iam pelas aldeias com um lençol para projetar os filmes do Joselito.
Nem sempre olhou para o cinema como serviço público?
Não, antes pensava no direito a filmar, sem dar atenção à política de financiamento.
O seu primeiro filme é de 1978, ainda estudante.
Sim, fiz três filmes nessa altura na escola: dois pequenos para a televisão, a preto e branco, sobre educação popular, e outro sobre os bonecos de Santo Aleixo. Nem sei onde andam esses três filmes. Depois fiz a primeira curta, “Alexandre e Rosa”, também em 78, faz agora 40 anos.
É essa curta que considera o seu primeiro filme?
É o primeiro, sim, o primeiro de ficção. A primeira curta de ficção.
Qual era a sua ideia de cinema há 40 anos?
Queria fazer a continuidade do Godard, o resto não me interessava. Queria fazer coisas diferentes, que ninguém tivesse feito. A ideia de palavra era o mais importante. O “Conversa Acabada” tem cem planos, o único filme de cem planos que eu conheço, de uma hora e meia, é o “António das Mortes”, do Glauber Rocha. Muito poucos planos, muito bem pensados. No “Conversa Acabada” trabalhei com atores amadores, o Fernando Cabral Martins era professor, o André Gomes nunca tinha feito nada. O que me interessava era fazer o texto do Pessoa, as cartas com o Sá-Carneiro. O que é que havia de mais radical em Portugal? O Modernismo português. Por isso, peguei no Modernismo. Era para ser um documentário e depois transformou-se em ficção. Esse filme devo-o ao David Mourão-Ferreira, que era secretário de Estado da Cultura. Três dias antes de ele sair de funções, levei lá o guião e ele disse que o filme tinha de ser feito. Deu-me um subsídio excecional. Se não, eu não fazia aquilo.
[excerto de “Conversa Acabada”]
Mas já havia concursos formais para subsídios ao cinema?
Havia, havia, mas ele entendeu, fora das regras, que deveria apoiar a minha ideia. Já tinha os textos e o “storyboard”. Devo-lhe a ele e à Gulbenkian aquele filme. Mais tarde, candidatei-me a outro concurso, na altura do Lucas Pires como ministro da Cultura, mas o Estado tinha dado tanto dinheiro no ano anterior que daquela vez já não havia orçamento. Fui selecionado, mas depois anularam o concurso. Só em 1985 é que consegui novo apoio, com a mesma ideia. Deu o “Um Adeus Português” [1986], sobre a guerra colonial. Ou seja, fiquei cinco anos sem fazer filmes. E depois voltei em 1988, com “Tempos Difíceis”.
O cinema apareceu na sua vida por mero acaso?
Teve a ver com um vício. É como o tabaco, ainda hoje fumo três maços por dia e bebo sete cafés. O cinema também foi um vício. Teve a ver com a praxe em Coimbra.
Foi para Coimbra porque queria separar-se da família?
Fui parido em Lamego, ainda fiz a escola primária lá, mas depois fui fazer o liceu para Vila Real, porque a minha família era toda de lá. A família era bestial, mas o fascismo existia.
No catálogo da retrospetiva do LEFFEST escreveu que Deus e a pátria asfixiaram a sua família.
Completamente. Não se dizia uma palavra às refeições. Eu dava dois beijos na mão ao meu pai, um pela mãe e outro pelo irmão, que tinham morrido. Era um silêncio absoluto. Eu era muito bom aluno, mas aquilo era asfixiante. Andar na rua em Vila Real com uma miúda era um crime, dar um beijo dava direito a multa. Os liceus eram separados, rapazes para um lado, raparigas para o outro, e nós com 16 ou 17 anos, com a testosterona a aparecer. Os rapazes da minha geração iam às prostitutas, com os pais, para se iniciarem na vida sexual. Eu nunca fui, por sorte. Uma coisa sinistra. Eu era muito bom em desenho e matemática, deveria ter ido para arquitetura no Porto, mas Coimbra era a melhor opção, porque lá não tinha família e no Porto tinha. Queria estar sozinho. Ainda não tinha 17 quando fui para Coimbra. Eu que vinha de uma família conservadora, tinha tido uma formação de direita, rapidamente senti que Coimbra foi um vulcão. Tivemos a Crise Académica em 1969, havia uma ideia de coletivo. Havia o Lemos, um rapaz com uns óculos grossíssimos, que adorava música e sabia de jazz até chatear. Íamos para casa dele ouvir música. Havia o José Manuel Pinto dos Santos, que foi juiz, doido por literatura, líamos O Quarteto de Alexandria, do Durrell, em voz alta. Quer dizer, havia uma aprendizagem fantástica fora da universidade.
E o vício do cinema apareceu quando?
Foi logo quando cheguei a Coimbra. Havia praxes. Às seis da tarde, uma pessoa já não podia estar na rua, batiam-nos. Às nove da noite, rapavam-nos o cabelo. Eu fugia para o cinema, todas as noites via um filme, fosse bom ou mau. Ia ao Cine-Teatro Avenida e a uma sala perto da estação, já não me lembro do nome. Era perto da minha casa. Depois comecei a ver filmes no cineclube, filmes proibidos, como “O Couraçado Potemkine”.
Tinha alguma perspetiva de ser realizador?
Zero, zero. O meu pai não tinha muito dinheiro, por isso eu tinha bolsa da Gulbenkian, que mais tarde perdi, porque deixei de ir às aulas. Todos os anos, viajava pela Europa à boleia. Nessa altura, podia-se viajar à boleia pela Europa. Trazia livros que não havia cá, o que era bom. Ia trabalhar para fábricas na Suécia, na Holanda, na Dinamarca, andava sempre nisso. Era um verão de quatro meses. Trabalhava dois meses e depois ia gastar o dinheiro todo em Paris, na cinemateca, a ver filmes.
Ganhava dinheiro para depois gastar a ver filmes?
A ver filmes. O objetivo era ver filmes. Por vício, estava viciado, mais nada, adorava aquilo. Comecei a ver muitos clássicos. Via uns seis filmes por dia em Paris. Depois ficava sem um tostão e vinha de regresso a Portugal na camioneta dos emigrantes, que me alimentavam durante o caminho. Demorávamos 36 horas. Fiz isto durante uns três anos, entre os 18 e os 20.
Era fácil sair assim de Portugal?
Se eras bom aluno, sim. E naquela altura o fascismo já estava em decadência, o Salazar caiu da cadeira, já estamos no Marcelo Caetano, há uma abertura.
E o serviço militar?
Em Coimbra não era chamado, porque era bom aluno e tinha adiamento. Depois comecei a ser chamado. Sou refratário, não sou desertor. Chamavam-me e eu não estava. “Ah, ele está para Lamego”. Iam lá e eu não estava lá. Joguei com o sistema, foi uma semiclandestinidade.
Nessa altura já se tinha mudado para o Porto?
Exatamente. Nessa altura iam tocar à porta para eu ir à tropa e eu não ia. Mas não me perseguiam, não tinham tempo, a Guerra Colonial estava a desfazer-se, havia fugas, emigração. Nessa altura já eu estava a dar aulas numa escola técnica em Matosinhos, faltavam-me duas cadeiras para acabar o curso de engenharia mecânica. Dava aulas de desenho de máquinas e de física. Hoje rio-me, não tenho jeito nenhum, não tenho carta de condução, sou a negação da técnica. E, no entanto, era engenheiro mecânico. Não sei reparar nada, a não ser fusíveis antigos, não sei ligar um computador, não tenho computador. É uma recusa de estômago. Não queria ser engenheiro. Depois do 25 de Abril é que decidi que queria ser realizador. No 1º de Maio já estava em Lisboa.
Veio sozinho?
Apanhei um comboio. No Porto também fiz capas de livros, comecei a ilustrar os livros do Manuel António Pina [1943-2012]. O primeiro livro de poemas dele, Ainda Não É o Fim Nem o Princípio do Mundo Calma É Apenas Um Pouco Tarde, fui eu que fiz. Um dos editores com quem trabalhei veio para Lisboa, o Leal Loureiro, que chegou a ser chefe de gabinete do Melo Antunes e que acabou preso. Veio para Lisboa e eu vim para casa dele, ali na Graça. Queria vir para a Escola de Cinema, já tinha 25 anos e os meus colegas tinham 20. Fiz o exame de admissão e fui aprovado. Foi aí que decidi que não queria ser engenheiro, foi uma catarse do 25 de Abril. Pensei: ou mudo agora a minha vida ou é tarde de mais e fico engenheiro no Porto para toda a vida.
Era comunista?
Nunca. No Porto tinha pertencido ao FEC(M-L) [Frente Eleitoral dos Comunistas (Marxistas-Leninistas)], um grupo ligado ao Pedro Baptista, uma espécie de MRPP do Porto, mas de populares, com pescadores e assim.
Ainda é de esquerda?
Sou anarca. Nunca votei desde o 25 de Abril.
Em eleição nenhuma?
Nada, nada. O meu voto é o tijolo, como se dizia. Não gosto da democracia burguesa, porque é ela que elege o Trump. Há um nivelamento por baixo, com a democracia. Não há melhor sistema que a democracia, mas quem manda hoje são as revistas cor-de-rosa, é o espetáculo medíocre da vida, e isso ganha eleições. Os populismos e os nacionalismos que estão a reaparecer têm que ver com esse nivelamento por baixo do pensamento. Não sou pelas elites, mas incomoda-me o sistema educativo. Lembro-me de ter de trabalhar muito mais com o segundo filho e mais ainda com o terceiro. O nível de exigência da escola é muito baixo.
Pode parecer paternalista: as pessoas não seriam capazes de pensar por elas próprias.
Não, não é isso. Acho que as pessoas são muito manipuláveis e a ignorância é terrível. Se calhar, se tivermos um bom sistema de ensino, as pessoas pensam de outra maneira. Irrita-me um mundo em que oito pessoas têm 50% da riqueza e milhões estão na miséria. Acho que acima das lutas das minorias, das lutas feministas, etc., a luta de classes se mantém, há exploradores e explorados. A democracia evoluiu para uma ganância.
E o cinema faz o quê?
Pode criar inquietações. Não gosto do cinema do conforto. Nos anos 60, havia uns filmes que as pessoas adoravam: o operário matava o patrão e elas batiam palmas e achavam que estava tudo resolvido. O cinema é uma arte burguesa, se é que é uma arte. Esse tipo de cinema de mensagem é uma chatice. O cinema tem de inquietar, criar problemas e não soluções. As pessoas têm de ficar baralhadas.
No próximo ano vai adaptar O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago. Quando começa a filmar?
Em abril. É um livro fantástico, a dramaturgia está lá, toda a feita, a única coisa que alterei foi a voz fora de campo, passei tudo a discurso direto.
Com que atores vai trabalhar?
Com um brasileiro, Chico Díaz, que vai fazer de Ricardo Reis, porque o Ricardo Reis esteve uns anos no Brasil. Depois tenho o Luís Lima Barreto a fazer o Fernando Pessoa, porque quando o Pessoa morreu, aos 47, parecia que já tinha uns 70 anos. E tenho também a Catarina Wallenstein, a Victoria Guerra, o Adriano Luz, o João Barbosa, uma data de bons atores.
Como é que decide a forma final de um filme: durante a filmagem ou na rodagem?
Na rodagem, sempre. A minha montagem é muito rápida, sou um dos filhos do Hitchcock. Na montagem decido o tempo do cinema, onde corto, onde faço a elipse, mas os planos é que determinam. Só filmo com uma câmara, nunca filmei com duas. Se a luz está boa para uma câmara, não está boa para duas. Isto não é a novela, que tem luz do teto. Quem me dera fazer novela, adorava, mas eles gravam 40 minutos por dia e eu não tenho capacidade, só se fizesse bandalheira. Nunca conseguiria fazer mais de três ou quatro minutos por dia. Nas novelas são muito rápidos, aquilo é uma máquina de ocupação do tempo em televisão.
Revê-se na expressão “cinema de autor”?
Não. Acho que autores somos todos. O Spielberg é um autor, eu não gosto daquilo, mas ele é um autor. Isso do cinema de autor foram os franceses que inventaram, quando descobriram que o Ford era um autor e o Hitchcock era um autor e que cada um tinha um estilo. O Leonel Vieira é um autor, ele faz como ninguém faz, tem o estilo dele, é um autor. Os filmes ou são bons ou maus.
Quando em 2007 se recusou assinar o “Corrupção”, porque o produtor Alexandre Valente quis fazer uma montagem diferente da sua, foi para preservar a marca de autor?
Vou-lhe dizer uma coisa: as únicas zangas que tive com o Paulo Branco, quando ele produzia os meus filmes, foi por causa da mudança de regras a meio do campeonato. Tinha contrato para nove semanas de rodagem de “O Fatalista” [2005] e ele às seis semanas diz que já não há dinheiro e que temos de acabar o filme. Zanguei-me. Eu nem recebia muito do Paulo Branco: recebia um quarto do que recebia o Oliveira e metade do César Monteiro. Quero lá saber. O problema foi ele mudar as regras a meio do jogo. No caso do “Corrupção”, o produtor nunca me incomodou na rodagem, mas mudou-me o filme na montagem. Aquilo era para ser um filme sobre Portugal, não era sobre o Pinto da Costa, e ele alterou tudo. Eu não podia assinar aquilo. O produtor tem uma palavra a dizer no início. Se ele me tem dito que no fim ele é que ia montar, eu aceitava ou não aceitava. O Paulo Branco nunca se meteu nos meus guiões nem na montagem, nunca. O Alexandre Oliveira [da Ar de Filmes, atual produtora de Botelho] tem opiniões sobre os filmes e eu altero, mas não se mete a mudar regras a meio do jogo.
Nunca incluirá “Corrupção” na sua filmografia?
Tirei, completamente. Aliás, não recebi um tostão da rodagem, nunca me pagou. Depois o produtor assinou um acordo através dos advogados a dizer que me entregaria os brutos para eu fazer a minha montagem. Se tivesse os brutos, fazia, os planos que lá estão são meus, mas nunca me deu brutos nenhuns.
Este ano foi acusado de plágio pela escritora Deana Barroqueiro, segundo a qual “Peregrinação” adapta sem autorização o romance que ela publicou em 2012, O Corsário dos Sete Mares. Porque é que nunca quis falar muito sobre este assunto?
Porque a senhora quer alimentar esta história. É uma pessoa de certa idade, muito isolada, e quis chamar a atenção sobre si própria. Este episódio incomodou-me, porque nunca plagiei ninguém. Leia o romance dela e veja o filme: nada coincide, há duas ou três coisas iguais e eu reconheci isso. No fim do filme até está lá um agradecimento. Ela diz que roubei o livro todo e nem sequer li a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Sinceramente.
[o trailer de “Peregrinação”]
Vamos supor que se encontram um dia.
Dou-lhe um beijo. Não tenho rancor nenhum.
“Peregrinação” é candidato a nomeações para os prémios Goya e para os Óscares.
Isso, enfim… Para se entrar numa corrida aos Óscares é preciso ter no mínimo um milhão. Ou seja, o meu lobista de Nova Iorque pediu 400 mil euros para fazer a zona de Nova Iorque. Um tipo de Los Angeles pediu 350 mil, outro tipo pediu 150 mil. Eu tenho 20 mil euros do Instituto do Cinema. Nunca nenhum português conseguiu entrar nos Óscares e nem conseguirá se não tiver um “lobby” fortíssimo e dinheiro para pagar por isso. Ganhar um Óscar? Antes quero ter dinheiro para um novo filme.
Fotografias de Kimmy Simões