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John Banville: "Os homens não crescem, somos bebés grandes"

John Banville passou pela Feira do Livro de Lisboa para apresentar "A Guitarra Azul". Em entrevista, o escritor fala de crises de meia idade e da inevitável mania de vivermos presos ao passado.

O enredo de A Guitarra Azul, o mais recente romance de John Banville, é do mais banal possível: um homem, um pintor, pequeno ladrão, em plena crise de meia-idade tem um caso com a mulher do melhor amigo; quando a traição é descoberta, o homem foge para longe do amigo, da amante e da mulher e, na fuga, vê-se a braços com o seu passado; contas saldadas, encontra a redenção possível. Se o enredo pode ser banal, a escrita de Banville é o contrário. Aos 70 anos, é um dos mais destacados escritores irlandeses, vencedor do Booker pelo romance O Mar (2005) e do Príncipe das Astúrias pelo conjunto da sua obra. O autor esteve em Lisboa para apresentar A Guitarra Azul na Feira do Livro de Lisboa e conversou com o Observador sobre o romance, sobre arte, sobre mulheres, sobre o dia em que quis ser pintor e como agora se colocou na pele de Isabel Archer para escrever a continuação do romance de Henry James, Retrato de Uma Senhora.

john banville a guitarra azul

“A Guitarra Azul”, de John Banville; 240 páginas; Preço: 16,60€

Guitarra Azul é, uma vez mais, narrado na primeira pessoa por um homem amargurado. Porquê?

É a única maneira que tenho de olhar para o mundo. Poderia facilmente escrever na voz de uma mulher. Não vejo grandes diferenças entre mulheres e homens, à parte das óbvias. Sempre olhei as mulheres como iguais. Em pequeno era muito próximo da minha mãe, que me ensinou a igualdade. Aliás, de momento, estou a escrever a segunda parte de Retrato de Uma Senhora, de Henry James. E embora esteja a escrever na terceira pessoa, estou a escrever sobre Isabel Archer. E estou a achar facílimo. Portanto… Sim, mais um homem amargo e descontente. É o meu modo de escrever.

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Foi Oliver o ponto de partida para o romance?

Toda a gente mo pergunta e não é que esteja a ser evasivo mas a verdade é que nunca sei como os livros surgem. Não me consigo lembrar. Olho para o manuscrito e vejo uma data, uma primeira linha. Mas não é aí que começam. É muito antes disso, talvez um ano antes. Não sei, parece que estou desde sempre a escreve-los.

Oliver é um homem narcisista, amargurado, um pequeno ladrão, de quem não é fácil gostar. Foi difícil estar com ele durante tanto tempo?

Sou um homem velho e amargo, porque me custaria estar com o Ollie? Ele é monstruoso, mas é honesto. Não se esconde atrás de sentimentalismos, de falsas declarações de amor. Por isso, mesmo que não cheguemos a gostar dele, temos que sentir alguma espécie de afeto. É um resistente.

Ollie é pintor. Já disse em entrevistas ter tentado ser pintor quando era novo. Quando trocou os pincéis pela caneta?

Comecei a escrever ficção quando tinha cerca de 12, 13 anos. Imitações muito más dos contos de James Joyce, todos temos que começar por algum lado. E aos 14 ou 15 anos tentei pintar. Não tinha talento nenhum, desisti um ou dois anos depois. Mas foi um exercício útil. Ensinou-me a olhar o mundo pelos olhos de um pintor. De um pintor falhado mas, de todas as formas, um pintor. Tudo o que fazemos alimenta a máquina.

Ainda pinta?

Nem pensar. O meu irmão guardou meia dúzia de quadros. Já lhe ofereci bastante dinheiro para mos devolver para os poder destruir. Mas não mos dá. São terríveis.

O que pintava?

Paisagens sentimentais horríveis.

"O grande génio do parágrafo foi o James Joyce. Não sei fazer isso. Trabalho a frase, confio na frase para carregar a história, para levar as personagens. A frase é uma estrutura maravilhosa. É a nossa maior invenção. Houve civilizações que não tinham a roda, como os aztecas e os incas. Mas tinham frases, senão não teriam sido uma civilização."

Disse que tinha uma relação muito forte com a sua mãe. Tal como a mãe de Oliver, apoiava-o na pintura?

Teria preferido que fosse pintor do que escritor. Tinha medo da minha escrita, nunca leu nada do que escrevi. Tinha medo do que poderia descobrir. A pintura era mais fácil. Ela adorava aquelas lindas paisagens. Cresci numa pequena cidade onde não se vendiam tintas. Mas havia uma loja maravilhosa em Dublin, uma livraria que também vendi materiais para pintar. Cheirava a livros e tinta de óleo, uma combinação perfeita. Comprávamos tubos de tinta de zinco. Ela apoiava-me. Ter-me-ia apoiado independentemente do que eu fizesse.

Alguma vez o levou a essa loja para comprar livros em vez de tintas?

Não, livros não. Como disse, metiam-lhe medo. Não percebia o fenómeno. A sua paixão, descobri depois de ela morrer, era o teatro. Gostaria de ter sido atriz. Claro que não foi possível, era uma dona de casa numa pequena vila irlandesa nos anos 50. Não era nada como a mãe do livro. Era uma mãe maravilhosa. Inteligente, dominadora. Uma vez disse-me que nada do que eu fizesse seria suficiente para mim. O que é maravilhoso. Horrível, mas maravilhoso ao mesmo tempo.

Guitarra Azul é, entre muitas outras coisas, um livro sobre arte. Partilha com Oliver as suas visões sobre o processo artístico?

Ollie e eu temos as mesmas esperanças para a arte, sentimos a mesma ansiedade, o mesmo desespero perante a incapacidade de representar o mundo. Penso que depois de o livro acabar, Ollie vai voltar a pintar. Acho que não é um pintor falhado, que está simplesmente a descansar.

LONDON - OCTOBER 10: Author John Banville poses with his book "The Sea" which won the Man Booker Prize 2005 for novel at the Guildhall October 10, 2005 in London, England. Shortlisted novels for the 50,000-pound literary prize were: Banville's "The Sea;" "The Accidental" by Ali Smith; "Arthur & George" by Julian Barnes; "A Long Long Way" by Sebastian Barry; "Never Let Me Go" by Kazuo Ishiguro; and "On Beauty" by Zadie Smith. (Photo by Chris Jackson/Getty Images)

John Banville em 2005, quando ganhou o Man Booker Prize por “O Mar” (“The Sea”, no original)

Teve algum período assim, em que sentiu necessidade de parar de escrever?

Não. Não consigo descansar. Desabaria se parasse. Não consigo tirar férias. Odeio os fins-de-semana. Uma semana de sete dias seria perfeita para mim. Durante a semana trabalho como numa empresa, das 9h às 18h. Vou todos os dias para um pequeno escritório que tenho em Dublin.

Ollie pára de pintar quando vai para o Sul…

Eu também não conseguiria escrever aqui. Quando tinha 18 anos fui viajar, estive em França, Itália, Grécia. Percebi que nunca conseguiria trabalhar ali. A vida é demasiado suave.

Para escapar do presente Oliver foge para a casa de infância, onde vai ter que lidar com o seu passado. O que lhe interessa no tema?

Vivemos no passado. Não há presente. O que é o presente? Já passou. É estranho. O meu filho, aos três anos, já tinha nostalgia do tempo em que tinha dois anos. Nunca somos demasiado novos ou demasiado velhos para ser nostálgicos. O meu neto tem 8 anos e uma irmã de 3. E pergunta muitas vezes à avó com saudade: ‘Lembra-se do tempo antes da minha irmã nascer?’. É o mito do Jardim do Éden: achamos sempre que, no passado, tudo corria bem e éramos felizes. Mas o passado era o presente. Era tão aborrecido e cinzento como o agora mas algo acontece que torna o passado vibrante e luminoso de uma forma que não pode ter sido quando era presente. Há duas possibilidades: ou imaginamos o passado ou não valorizamos suficientemente o presente quando o estamos a viver. Estamos constantemente a olhar para o que virá a seguir e a ignorar o que está aqui.

Já foi pintor, é escritor. E há muita musicalidade na sua escrita.

Não poderia viver sem música. Adoraria ter sido compositor, não teria que lidar com enredo, personagens, diálogos. A música é a mais pura forma de arte. Uma das coisas boas no romance é que é musical, é pictórico e linguístico. Às vezes uma frase dança, pinta uma imagem. Não gosto do romance enquanto forma, é desarrumado e aborrecido. Mas sei que é extraordinariamente rico. Não mudaria o sentido de uma frase para acertar o passo com a música, mas mudaria a música para que acertasse com a frase. A prosa tem que ser tão dura e fria como o mármore sendo, ao mesmo tempo, tão suave como a carne e tão musical quanto a voz. Quão difícil é combinar tudo isto.

Escreve frase a frase?

Sim. O grande génio do parágrafo foi o James Joyce. Não sei fazer isso. Trabalho a frase, confio na frase para carregar a história, para levar as personagens. A frase é uma estrutura maravilhosa. É a nossa maior invenção. Houve civilizações que não tinham a roda, como os aztecas e os incas. Mas tinham frases, senão não teriam sido uma civilização. Precisamos das frases para pensar, para declarar o amor, para declarar guerra, para escrever leis, para sonhar. A imagem é muito importante mas a frase é mais. É através da frase que damos sentido à vida.

"Nunca deixamos de querer ser amamentados. As mulheres são, para nós, as mais belas e misteriosas coisas do mundo. São humanas mas são algo mais que isso. São infinitamente misteriosas. Não as merecemos."

Há muito sofrimento no romance. Aliás, escreve sobre a morte de um filho, talvez o pior sofrimento…

Não consigo imaginar nada pior que perder um filho. A ficção tem que ser fiel à vida. E isto é o que a vida nos faz. Os filhos morrem. Uns amigos meus tinham quatro filhos, o mais novo era lindo, talentoso, um linguista extraordinário, iria ser um académico brilhante. Tinha 19 anos quando morreu num acidente de carro. Estivemos com eles na noite em que o filho morreu. Nunca vi tanta dor, tanta angústia, tanto sofrimento.

Sendo pai, não pode ser fácil escrever sobre isso.

Quando escrevemos, distanciamo-nos. Tem que ser. Não se pode escrever num estado emocional. Tem que se escrever com frieza e claridade. Só depois de estar escrito podemos sentir a angústia. Se fizesse uma leitura pública da cena em que o homem chega ao hospital e a criança está morta, provavelmente choraria. Mas ao escrever estava frio como uma pedra. Digo-o de novo: não se pode fazer arte num estado emocional. Temos que nos distanciar. É uma pena. Mas é assim.

Oliver é um pequeno ladrão, rouba coisas pequenas. Os artistas são ladrões?

Roubar é uma forma de ação artística. O artista rouba coisas das pessoas, características, um olhar, um tom de voz, a cor dos olhos. Tiramos bocados, tornamo-los nossos. Coisas que são inconsideradas. Estão lá há tanto tempo que deixamos de reparar nelas. Ao removê-las e colocá-las num outro contexto voltam a ganhar o seu peso existencial. É isso que o artista faz, renova o mundo.

Há uma traição no centro do romance. Oliver tem uma mulher extraordinária mas apaixona-se por outra, que perceciona como ‘pequena’. Porquê?

Como a minha mulher diria: ele é apenas um homem. Queremos sempre mais e mais. Os homens não crescem. Somos bebés grandes, nunca deixamos de querer ser amamentados. As mulheres são, para nós, as mais belas e misteriosas coisas do mundo. São humanas mas são algo mais que isso. São infinitamente misteriosas. Não as merecemos. Vejo uma velhinha na caixa do supermercado em busca de trocos e acho-a linda. Uma das mulheres mais atraentes que já conheci foi a romancista francesa Nathalie Sarraute. Almoçou connosco em Dublin quando tinha 72 anos. Eu tinha 28, 29 anos, achei-a extraordinariamente atraente. Não estou a falar de sexo que, como alguém disse, é apenas um espirro. É a estranheza nas mulheres que acho infinitamente interessante. No outro dia estava a andar por Dublin e uma mulher passou por mim e, na brisa, apanhei o seu odor a lilases. Estou a tentar chegar a algo importante, que é muito difícil de expressar sem que se torne exagerado. O eterno feminino, para mim, está na arte, está na realidade, é a recordação do cheiro dessa mulher. Não tem nada que ver com sexo. Tem que ver com as impossibilidades do mundo, as impossibilidades da vida, com o que está para lá do mundano.

Disse há pouco que está a escrever uma continuação para Retrato de Uma Senhora. Porque o quis fazer? Para chegar a esse feminino?

Comecei-o há dois meses. E está a correr muito bem. Não sou eu a escrever, não sei quem está a escrever, mas não sou eu. Está a ser escrito. Há alguém sentado à secretária a escrever. Acho que me poderia levantar, ir beber um café, voltar e perguntar: ‘Como está a correr?’. Sempre achei que Retrato de Uma Senhora era a primeira parte de um livro que não foi acabado. Quero saber o que acontece a Isabel. Li o livro pela primeira vez aos 20 anos, em Florença, muito perto do local onde Henry James escreveu parte dele. E depois li-o novamente bastante mais tarde na vida. E era um livro completamente diferente. Apaixonei-me por Isabel Archer. Corajosa, com uma vontade de ferro, determinada a tomar o mundo. Ao lê-lo de novo, mais velho, percebi o ego que tem, o quão egoísta é, quão narcisista. É um livro maravilhoso.

"Vivemos no passado. Não há presente. O que é o presente? Já passou. É estranho. O meu filho, aos três anos, já tinha nostalgia do tempo em que tinha dois anos. Nunca somos demasiado novos ou demasiado velhos para ser nostálgicos."

Foi ao relê-lo que quis escrever-lhe uma continuação?

Não, sempre o quis fazer, sempre senti que estava inacabado. O que é extraordinário, e que temos tendência a esquecer, é que no final do livro Isabel ainda é muito nova. Tem apenas 28 anos. Ao acabar A Guitarra Azul precisava de ir noutra direção. É uma espécie de intervalo. Sei o que quero fazer no próximo livro. Será muito incoerente, uma série de cenas, fragmentos inexplicáveis, muito abstrato. Por isso este é um bom livro para se escrever antes. Precisava de contar uma história antes de me fragmentar.

Se agora está a seguir os passos de Henry James, há pouco tempo seguiu os de Chandler, tendo escrito um livro protagonizado por Philip Marlowe. Ainda vai ressuscitar outra vez o detetive?

Penso que não. Fazê-lo uma vez é divertido e tem algo de elegante. Mais do que isso… Bom, por outro lado estão a fazer um filme. Se der dinheiro, escrevo mais.

Gosta de seguir as pisadas de outros escritores?

Preocupa-me. Pergunto-me se me estou a transformar num papagaio. É uma maneira de relaxar. O dia-a-dia de escrever um livro de Banville é muito difícil, o nível de concentração que exige é muito duro de manter. Escrever algo como o livro de Marlowe ou esta continuação de Henry James é paganismo.

É uma forma de dar descanso aos seus homens velhos e amargurados?

Exatamente.

Oliver ainda é jovem. Como ele próprio diz, está nos quarentas, a caminho dos 50 e a sentir-se como se tivesse 100. Mas parece bastante velho.

Isso é porque eu sou velho. Ele sente-se velho, está cansado. Os homens sentem-se gastos aos 40. É por isso que compram sapatos azuis, ferraris, têm casos amorosos. Adorei ter 50 anos. Não me importei de ter 60. Fiz 70 no ano passado e não gostei. Não é divertido. A morte deixa de ser implausível para passar a ser banal. Já não é essa coisa negra e misteriosa que avança na nossa direção. É o fim.

Teme, como Ollie, que o mundo perca mais um ponto de vista?

É um dos pequenos aspetos trágicos da vida: que todo o conhecimento, toda a experiência, que um ser humano acumula desaparece num estalar de dedos.

É por isso que escreve?

Não sei por que escrevo. Escrevo como respiro: para me manter vivo.

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