[esta entrevista foi publicada originalmente a 14 de dezembro de 2022 e atualizada a 5 de outubro de 2023, após a atribuição do Nobel da Literatura a Jon Fosse]
Desapareceu-lhe a carne. Desapareceu-lhe o sexo, o afeto, o amor, desapareceu-lhe o contacto íntimo e genuíno com os outros. A Asle resta-lhe pintar o mundo. Desenha-o e apaga depois as personagens delineadas, deixando um espaço vazio, por ocupar, àquele momento e àquele espaço que fixou na tela com o grafite. Porque aquele momento e aquele espaço eram demasiado belos para passarem por entre as gotas da chuva. Ou então, demora-se sobre a intersecção de duas grandes linhas, que teimam em não formar uma cruz, como a de Cristo.
Dividida por sete capítulos reunidos em três livros, o norueguês Jon Fosse escreve a história de um pintor alheado da vida como um anjo que observa à parte, um pintor que não se considera detentor de grande talento mas que a vida se encarregou de o empurrar numa direção que lhe permite subsistir – e bem – daquele ofício. Em Portugal, lançou no final de 2022 o primeiro dos três volumes, O Outro Nome – Septologia I-II, pela Cavalo de Ferro. Menos de um ano depois venceu o Prémio Nobel da Literatura.
Na verdade, trata-se de uma variação da cruz de Cristo aquela que Asle está a tentar pintar na tela e cujo processo atravessa os três livros. Esta variante é uma cruz na diagonal, a cruz de Santo André, um dos mais dedicados apóstolos de Cristo, que, por martírio, quis ser crucificado como o seu profeta, mas pediu para que o cepo fosse enviesado, em formato de X, por considerar não ser digno de morrer de forma exatamente igual à de Cristo. De forma análoga, na sua septologia, Jon Fosse não se atreve a designar o traço de Asle a pintar o mundo como a mão de Deus. Deus é uma palavra demasiado grande.
“Para mim, e acho que para qualquer ser humano, é impossível dizer o que quer que seja sobre Deus. Tal como na Bíblia, uso a palavra Javé [designação de Deus no Antigo Testamento]”, diz-nos Jon Fosse numa tarde escura e invernosa, através de uma videochamada. “Por outro lado, penso – e sei – que o tipo de relação com algo que possa assemelhar-se a Deus, ou a verdadeira arte, a grande literatura, todo e qualquer tipo de arte, de certa forma, tem uma espiritualidade que nos conecta com algo. Quando consigo escrever bem, sinto-me conectado com algo que não sou eu de certeza.” Com algo que não está aqui, está ali – acima; ou em qualquer direção, na verdade. É uma espécie de aura, uma sensação de aproximação a algo que está longe. “Escrever é, para mim, um ato de escuta. O que escrevo vem do que já escrevi antes, no mesmo texto, e de algo mais. Não é a minha imaginação, é algo que, de alguma forma, me é dado. É uma dádiva.”
A luz que emana da escuridão
Quando Asle era novo, descobriu que tinha um talento para pintar. Foi-lhe fácil seguir esse caminho. Conseguiu inclusive fazer vida disso. Ao longo dos anos, desenvolveu uma veia intelectual, e espiritual, e passou a pensar de forma mais católica, através da namorada, que depois se tornou a sua mulher – e da qual já enviuvou. Mas a sua catolicidade veio-lhe, principalmente, dos escritos de Mestre Eckhart, um dominicano alemão do século XIII que juntou a erudição académica ao misticismo, e que é considerado um dos expoentes do pensamento cristão místico.
Fosse não deixa de traçar um paralelismo entre o ato de pintar de Asle e o seu próprio processo de escrita. “Da mesma forma que eu entendo a minha escrita, quando ele consegue pintar bem, o que faz está acima da sua própria capacidade”, conta. “Quando ele fala da luz que tem de existir num quadro fantástico, ela não pode ser tirada, tem de ser dada. Asle tem esta ideia de que vende os quadros mas a luz dá-a de graça.”
Da mesma maneira que não consegue nomear Deus, Jon Fosse fala da escuridão como detentora de uma luz própria, a mesma que atravessa o livro. “Esta escuridão pertence ao desconhecido e, tal como o pintor, tenho esta ideia de que a escuridão tem a sua própria luz, forte”, explica o escritor e dramaturgo norueguês. “O brilho e a obscuridade. Uso essa metáfora numa peça de teatro que escrevi, chamada Um Dia de Verão. E depois vim a lê-la num dos contos de Mestre Eckhart.”
A luz não é aqui um contraponto da escuridão, apesar de vivermos presos à ditadura das dicotomias. “Pensamos em dualidades o tempo inteiro, em oposições: dia e noite, sim e não, etc. Esta dualidade pertence à linguagem”, clarifica Fosse, hoje com 63 anos. “Mas tem também a ver com a nossa experiência quotidiana. Aqui na Noruega está a escurecer pelas três da tarde. Quase não há luz durante o dia. Mas, no verão, é o oposto. Temos luz quase durante 24 horas.”
No cristianismo, nas religiões, associa-se Deus e a criação à luz. “Na Bíblia, refere-se muito a luz e a escuridão como metáforas. Mas esta combinação de luz e escuridão é outra coisa. Para mim, o que é central é esta escuridão luminosa.”
A hora do lobo
Num dos filmes do sueco Ingmar Bergman, “A Hora do Lobo”, um pintor e a mulher isolam-se, refugiam-se numa ilha. É durante esse período, entre o breu da meia-noite e a primeira luz da aurora, que os fantasmas assolam e atormentam o pintor. Jon Fosse diz não gostar de cinema, considera que a experiência se assemelha a um concerto de rock, o som está muito alto e há muita gente junta. Mas aproveita para revelar algo: os três livros foram escritos entre as 5 e as 9 da manhã, levantava-se às 4. Estava a viver num apartamento numa pequena cidade nos arredores de Viena, Áustria. “Não estava na Noruega, não era de dia”, confessa. “Eram as melhores horas, era a altura mais silenciosa. Os demónios são fantásticos para a criação.”
Fosse não deixa de referir o paradoxo inerente a esta aversão pelo cinema, que compacta uma história em hora e meia, duas. Os seus textos para teatro enchem anfiteatros de 800 lugares. A própria escrita dramatúrgica é intensa, concentrada, redigida numa semana. Após vinte anos a escrever para palco, o autor já representado pelos Artistas Unidos precisou de escrever prosa de forma mais lenta. Jorge Silva Melo, de quem diz ser muito amigo e ia encenar Vento Forte este outono, morreu em março. Enviou-lhe um ramo de flores.
“O meu primeiro livro foi um romance, depois editei algumas coleções de poesia e, a seguir, mais romances. Então, mudei, passei a escrever principalmente textos de teatro, Não foi uma escolha consciente, aconteceu”, elenca Fosse, sempre com uma disponibilidade para o outro, visível no tom afável da sua voz. “Escrever textos dramatúrgicos é um processo muito intenso. Não preciso de muito tempo para escrevê-los, mas é muito intenso. Durante 15 anos, escrevi cerca de 30 peças. Depois achei que já chegava. Quis acalmar a minha escrita, a minha vida, tudo. Deixei de escrever para teatro e voltei aonde tinha começado: aos romances, à prosa.”
Ao contrário da velocidade da escrita dramatúrgica, o autor de quem já várias vezes se falou para o Nobel, passou a querer escrever durante longos períodos de tempo, num fluxo lento, a poder demorar-se num detalhe. “É-me completamente proibido planear o que seja, sinto-me distraído. Planear não. Tenho de seguir a necessidade e a lógica da escrita”, explica. “Cada peça e cada romance tem a sua própria necessidade. Esta necessidade implica muitas regras: posso fazer isto e não aquilo. Não estou consciente de todas elas, entrar naquilo a que chamo o universo do texto é seguir muitas, muitas regras inconscientes.” Escrever, diz, é sonhar num estado consciente.
A escrita de Fosse encontra-se num estado superior de fluidez, repete frases, volta a ideias, deixa-se conduzir por linhas invisíveis até estados de alma que suscitam um questionamento constante. “Há uma mensagem, mas não sei qual é. Sei que há uma. Supreendo-me quando leio o que escrevi. Isso é o melhor. Quando acabo de escrever um livro, fico totalmente surpreendido”, explica. “Não tenho qualquer ideia antes de escrever. Quando comecei a escrever o livro Trilogia [Cavalo de Ferro, 2021], o casal Asle e Alida… apenas escrevi, nunca tinha pensado em nada assim na minha vida. Da mesma forma, quando comecei a escrever a Septologia, acerca deste pintor… para quê escrevê-lo se soubesse antes o que iria ser? Escrever sobre o que já conheço não me interessa.”
Tal como em Trilogia, temos de novo Asle, que, de certa forma, se desdobra em Åsleik, um amigo de Asle também ele pintor, mas alcoólico. O seu negativo, o que não sobrevive às durezas do quotidiano, o que não se considera grande pintor. “Desde que escrevi o meu primeiro romance que tenho uma espécie de aversão em atribuir nomes [às personagens]”, explica Fosse, que escreveu o seu primeiro romance aos 20, publicado em 1983. “Uso descrições em vez de nomes. Se, por vezes, uso nomes, uso os mesmos nomes vezes sem conta.” Asle, Åsleik, Alida: além dos nomes iguais, os diferentes nomes são parecidos, variações de um só. “É uma das idiossincrasias da minha escrita.”