“‘Rei dos frangos?’ Ele não gosta desse nome, nem é pessoa para querer ter um nome desses”. José Custódio, 75 anos, conhece José António dos Santos, de 80, há quase cinco décadas. Assistiu ao crescimento do império milionário da Valouro e sabe quase de cor os investimentos e as aquisições do grupo. As datas às vezes escapam-lhe, mas muitos outros pormenores estão lá. Fala da entrada dos irmãos (José António e António José) no negócio dos “pintos do dia” (acabados de nascer) — “Mandam para a Rússia cinco camiões por semana!” — e sabe onde está cada fábrica, como o matadouro industrial de Torres Vedras, que foi “o maior da região”, ou a segunda fábrica de rações para aves detida pelo grupo, ali perto da estação de caminhos de ferro de Ramalhal. Já na Marteleira, Lourinhã, de onde é natural a família Santos, “trabalham mais óleo de soja, diversificaram o negócio“.
Não que José Custódio, ex-autarca do PS na Lourinhã, trabalhe ou tenha trabalhado com José António. A relação é de amizade e, sobretudo, de confiança. Tanto que foi o socialista a propor ao empresário que se candidatasse à presidência da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Lourinhã, nos anos 80 (e onde ainda permanece). “A certa altura, havia aqui um conjunto de pessoas que queriam tomar conta da Caixa, mas nós — eu e outras pessoas da Lourinhã — entendíamos que não tinham capacidade nem categoria, como aliás se veio a provar… fizeram asneiras na vida e ficaram sem nada”, começa por contar José Custódio ao Observador.
Por querer “zelar” por uma entidade onde ele próprio era sócio, convidou José António e um amigo deste, António Augusto Mateus, agora vice-presidente da instituição de crédito, para um almoço. “Disse-lhes: ‘Eh pá, vocês os dois é que deveriam ir para a Caixa’. E estiveram lá. Candidataram-se, foram eleitos e a Caixa não só não foi abaixo como é hoje uma das melhores Caixas do país.” O antigo autarca faz ainda questão de sublinhar: “Uma coisa que ele nunca fez foi empréstimos a empresas do grupo dele“.
O apontamento talvez seja para defender o caráter do amigo, que foi detido esta quarta-feira em conjunto com o presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, e mais dois arguidos, no âmbito da “Operação Cartão Vermelho”. Em causa estão suspeitas de crimes de abuso de confiança, burla qualificada, falsificação, fraude fiscal e branqueamento. Na mira do inquérito dirigido pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) está a ligação entre os dois amigos, que ganhou maior destaque apôs o anúncio da oferta pública de aquisição (OPA) sobre a SAD do Benfica, e a compra pelo “rei dos frangos” de dívida da Imosteps (uma empresa do grupo empresarial de Vieira), que o Novo Banco tinha vendido ao fundo Davidson Kempner.
Pelo império na produção de aves, José António já ficou conhecido na imprensa como o “rei dos frangos”, mas o amigo José Custódio afasta que seja uma alcunha do seu agrado. “Ele não gosta desse nome”, assegura. Acrescenta que José António “não vive na exuberância, nem é pessoa para isso“. “É uma pessoa impecável, de bom trato e amigo do seu amigo.” É por isso que não acredita que o empresário tenha feito “algo de mal”. “Estes negócios que ele criou aqui foram sempre claros. Eles [a família Santos] fizeram uma Santa Casa da Misericórdia, a irmã [Júlia] ajudou a construir a Igreja de Santo António da Marteleira. Tanto o Zé como o António são pessoas de bom trato, continuam a ter uma vida simples“, defende.
Do Sporting (da Lourinhã) para o Benfica da Luz
Os irmãos, adianta, continuam a ir “quase todos os dias” almoçar ao refeitório da Avibom (uma das maiores empresas do grupo). Também José Nuno Leitão, presidente da assembleia geral da Caixa, diz que o empresário “não se coloca num pedestal” e, apesar do império de milhões, ainda conduz um Mercedes “com vários anos” (não sabe precisar quantos).
José Leitão conta um episódio que o sensibilizou particularmente. “Há mais de 20 anos”, enquanto diretor de uma escola da Lourinhã, ele próprio propôs a criação de um prémio pago aos três melhores alunos, sob a forma de uma conta poupança. Foi firmado um protocolo entre a Caixa e a escola e José António “foi sugerindo que o prémio fosse alargado a outras escolas”, como acabou por acontecer. “Houve também concelhos próximos que, depois de verem o impacto significativo, entraram em contacto connosco“, afirma José Leitão.
Outra fonte local, que pediu para não ser identificada, refere ao Observador que José António é visto na Lourinhã como um empresário “muito respeitado e solidário”, uma personalidade que “congrega muitas pessoas à sua volta”. Tem um “espírito conciliador” e é “simples”. Foi mandatário da campanha presidencial de Cavaco Silva, mas também apoiou autarcas socialistas, como o atual (João Duarte Carvalho).
Além dos negócios que criou na região e da fundação da Santa Casa, José António foi presidente da Assembleia Geral do Sporting Clube Lourinhanense e ajudou a construir o pavilhão do clube de hóquei da Lourinhã, que ganhou o seu nome: Pavilhão José António dos Santos. Os clubes locais, ao lado do desporto escolar, foram, aliás, apoiados pela própria Caixa através de patrocínios.
Mas o clube do coração é o Benfica. Segundo a revista Sábado, José António conheceu Luís Filipe Vieira nos anos 70, quando o atual presidente do clube era um jovem comerciante que lhe fornecia pneus. Os dois ficariam amigos até hoje, uma amizade de “mais de 40 anos”. “Em 1970 e tal comprava-lhe pneus. Não era tão próximo como sou hoje, mas sempre fui próximo dos meus fornecedores“, indicou o empresário à revista.
É essa relação entre os dois que está agora a ser investigada. José António e a família são os principais acionista da SAD do Benfica — em conjunto, têm mais de 16% (12,72% dos quais são detidos diretamente pelo empresário). A quota foi reforçada em 2017, depois da compra das participações da Somague e do Novo Banco no clube, por cerca de três milhões de euros. Nesse mesmo ano, José António e Luís Filipe Vieira entraram em negócios imobiliários em conjunto.
Com a OPA (oferta pública de aquisição) parcial anunciada pelo clube em novembro de 2019, entretanto travada pela CMVM, o “rei dos frangos” poderia ter lucrado cerca de 11,6 milhões de euros caso tivesse optado por vender a sua participação. O Ministério Público está a investigar a ligação entre essa operação e a forma como José António ajudou Vieira a livrar-se de um aval dado a uma dívida que não foi paga da Imosteps. À Sábado, o empresário da Lourinhã recusou, em maio, que a OPA fosse contrapartida de favores ao amigo e garantiu que “nem o Luís sabia” da aquisição das ações.
“Quando comprei as ações, elas estavam muito baixas. Fi-lo, uma parte, como benfiquista, de coração, mas também como investimento. Acho que as ações estavam demasiadamente baixas. Uma ação de 5 euros a ser comprada por 1 euro e picos… foi realmente uma das grandes razões“, afirmou, por sua vez, numa entrevista ao Jornal Económico, em abril.
Como Vieira é suspeito de ter prejudicado a SAD do Benfica para fins pessoais
O império das aves
José António e o irmão gémeo, praticamente igual na aparência e no nome (António José), nasceram a 28 de junho de 1941, na Marteleira, uma vila na Lourinhã. É nessa localidade da região Oeste que o grupo Valouro tem sede — e à qual José António vai, pelo menos, uma vez por semana, às reuniões do conselho de administração da Caixa. À Sábado, o empresário contou que aprendeu a ler ainda antes de entrar na escola, para poder acompanhar as notícias do Benfica. Foi a irmã Júlia, sete anos mais velha, quem o ensinou.
Tornou-se sócio do Benfica com a mesma idade em que começou a trabalhar: 14 anos. É sócio até hoje — mais de 60 anos depois e com um império construído à volta da produção de pintos, frangos, perus, patos, codornizes, mas também rações. O grupo Valouro, detido pelos irmãos e por outros elementos da família, tem, atualmente, cerca de 3.100 trabalhadores num negócio que vale milhões. Em 2019, faturou 409,9 milhões de euros.
Os primórdios do grupo remontam ao século XIX: mais concretamente a 1875, o ano em que aquela que viria a ser a sogra do tio (Manuel dos Santos) abriu um negócio de venda de aves, na Baixa de Lisboa. Henriqueta Marques Pereira casa-se mais tarde, pela segunda vez, com um francês cujo apelido dá origem à Casa Lourgie. É para aí que os irmãos vão trabalhar, aos 14 anos, ao lado do tio (que acabou casado com uma filha da matriarca, mas não teve descendentes). Os estudos na escola industrial acabam, assim, em segundo plano — e o curso não chega a ser concluído. No site da Valouro, a história dos anos seguintes é detalhada:
Durante quase meio século a família Santos adquiria os animais vivos a pequenos produtores particulares das quintas dos arredores da capital e transportava-os para o centro da cidade. Já na Praça da Figueira, as aves eram abatidas e depenadas antes de serem colocadas à disposição do público. A persistência e sistematização de procedimentos contribuíram para que este pequeno negócio familiar fosse florescendo e ganhasse consistência, abrindo portas a um novo setor de atividade que emergia.”
Quando Henriqueta Lourgie morre, é o tio Manuel quem fica a tomar conta do negócio. Muda-lhe o nome para “Herdeiros Manuel dos Santos” e consegue acordos com alguns dos mais importantes restaurantes e hotéis de Lisboa. Mas não levaria muito tempo até que os irmãos assumissem as rédeas. Com o falecimento de Manuel, em 1963, José e António lançam-se na industrialização do abate. A liderança dos irmãos dá novas asas ao negócio.
Em 1966, em plena guerra colonial, ganham um contrato para abastecer o exército português. A partir daí, os investimentos não param. Regressam à Marteleira, onde abrem um matadouro — o segundo privado na Península Ibérica, com capacidade, na altura, para abater 300 aves por hora. Num quintal junto à casa dos pais, instalam pavilhões para a engorda de frangos e perus. E no final dos anos 60 já tinham outro matadouro na Holanda. É também do estrangeiro que trazem uma técnica inovadora em Portugal e que hoje é proibida: o uso dos desperdícios dos animais, como penas e sangue, na produção de ração.
Apesar da expansão, é só na década de 70 que nasce oficialmente a Persuinos (hoje Avibom, uma das principais empresas do grupo), numa data que viria a ficar para a História, mas por outra razão: às 9 horas do dia 25 de abril de 1974 é assinada a escritura. “Fui eu que dei a notícia da revolução ao notário, que depois fechou o escritório e foi para casa“, contou José António à Sábado. Em 1978, surge a primeira fábrica de rações, no Sítio do Vale de Ouro, concelho da Lourinhã. É essa terra que dá nome ao grupo.
A estratégia dos anos seguintes teve como objetivo centralizar a cadeia de produção e rentabilizar ao máximo os animais — da produção de milho, trigo e cevada para o fabrico de rações, aos aviários e matadouros para a exportação de ovos e aves, a ideia era controlar todas as fases da produção. Pelo caminho absorveu empresas, como a Kilom, de processamento de carne de aves, que estava em falência técnica quando foi adquirida, nos anos 90. Segundo o site do grupo, a Valouro tem mais de 30 empresas de setores da agricultura; indústria de rações; multiplicação, produção, abate e transformação de aves; distribuição e comércio alimentar; transportes; produção de energia; seguros e turismo.
Não só de aves se faz o negócio do grupo Valouro. Há cerca de 15 anos, a carteira de investimentos passou a incluir a energia eólica, passando mais tarde para a fotovoltaica. De acordo com a informação que consta no site, foram feitos “avultados investimentos” na área das “energias renováveis, através da montagem de um parque eólico com 23 aerogeradores, bem como 38 parques fotovoltaicos”. “Estes investimentos permitiram que as empresas se tornassem autossuficientes em termos energéticos e passassem a usar ‘energia verde'”, lê-se.
Ainda tentaram entrar no negócio dos media. Segundo o Negócios, os irmãos participaram no consórcio TV1, que tinha à cabeça Proença de Carvalho, no concurso para a televisão privada, que perdeu para a SIC e TVI. Pelo meio, o grupo tornou-se, nos anos 90, acionista do Banco Português do Atlântico (BPA) e, mais tarde, da Sociedade Lusa de Negócios (SLN), então dona do BPN. Quando o banco é nacionalizado, o “rei dos frangos” avança para tribunal, exigindo a devolução dos 15 milhões de euros que desembolsou no aumento de capital da SLN, em 2008. O tribunal viria a dar-lhe razão.
Pandemia? Foi mau, mas não afastou os lucros
A pandemia não foi simpática para o grupo Valouro. Até março do ano passado, tudo corria de forma “excecional”, mas os trimestres que lhe seguiram foram “péssimos”. A bóia de salvação foi a expansão para novos mercados, especialmente o Médio Oriente e a Ásia, mas também novos produtos, como os ovos para incubação.
“No final de 2019 já tínhamos uma parcelazinha de exportação de ovo e estávamos precisamente a desenvolver essa parcela. Nós conseguimos fazer chegar à Mongólia um camião, normalmente, em oito dias e com resultados espetaculares no rendimento do produto”, disse na entrevista de abril ao Jornal Económico. Por essa altura, a empresa estava a exportar cerca de um milhão e meio de ovos por semana, produzidos em Portugal — e previa que esse valor subisse para dois milhões no início de maio. Já a empresa que criaram em Espanha, a 30 quilómetros da central nuclear de Almaraz, produzia 800 mil por semana. Esta diversificação de produtos e mercados permitiu-lhes “resolver alguns problemas, baixando um pouco as vendas, mas tendo ainda resultados positivos”.
O recurso a outros mercados não é novo. Já após 2012, durante a Primavera Árabe, a instabilidade política no Médio Oriente afetou o negócio, que tinha na região alguns dos mais relevantes destinos para o escoamento da produção de frangos, pintos do dia e ovos para incubação.
Apesar dos 80 anos, a entrevista ao Jornal Económico mostra um José António dos Santos lúcido e crítico, muito crítico com o estado da economia portuguesa. Aponta o dedo ao que diz ser o excessivo endividamento das empresas — “um dos grandes problemas” do país. E mostra-se preocupado com o fim das moratórias bancárias (previstas para setembro), que deve ser acompanhado de medidas amortecedoras para as empresas, defende. “Tem de haver uma lei que crie uma diferenciação de tempo para dar oportunidade para [as empresas] pagarem, senão a cura não é possível.” O recurso às moratórias foi, aliás, acompanhado de perto pelo próprio José António dos Santos, enquanto presidente da Caixa de Crédito Agrícola da Lourinhã (um cargo para o qual não se deverá recandidatar no final do ano). José António acredita que “98,99% das pessoas a quem fizemos moratórias vão pagar, com bazuca ou sem bazuca”.
A relação de José e António é de cumplicidade, dizem os amigos e conhecidos com quem o Observador falou. E de complementaridade, já que José tem mais jeito para a contabilidade e a vertente comercial, enquanto António, mais engenhocas (inventou e patenteou um comedouro de restrição automática), se dedicava à parte fabril. “Um decide aquilo que o outro pensa. Isso traz-nos vantagens e evita dissabores. Acontece diversas vezes andarmos preocupados com um assunto e encontrarmos os dois uma solução praticamente no mesmo segundo. Nem precisamos de falar”, disse o irmão António José Santos, citado pelo Negócios.
Os irmãos, que não têm filhos, continuam a ser os estrategas do grupo, embora a gestão esteja a cargo de Dinis dos Santos, filho da irmã Júlia. Numa entrevista que deu ao Expresso, José António dos Santos diz acreditar que a empresa irá continuar nas mãos da família. Aliás, o sobrinho Dinis já abriu caminho para os filhos fazerem carreira no grupo.
A ligação à família vive paredes meias com a paixão do Benfica. José António vai a “quase todos os jogos em Portugal”, disse ao Expresso, mas não se considera fanático. Em abril, já quase assumia a derrota no campeonato (para o grande rival, o Sporting), mas não perdia a fé. “Na minha opinião, o Benfica é a equipa que melhor joga futebol em Portugal. Vamos ver. A bola é redonda e às vezes não ganha o melhor.”