Professora, historiadora de arte e investigadora, Laura Castro assumiu o leme da Direção Geral de Cultural do Norte em abril, sucedendo a António Ponte, que entretanto migrou para a direção do Museu Nacional de Soares dos Reis. Fê-lo num dos momentos mais difíceis do panorama cultural, onde a pandemia e a reta final de um quadro comunitário contribuem para que a sua principal preocupação seja dar continuidade de projetos relevantes no território.
Tonar o património edificado e imaterial mais próximo das pessoas, facilitar e promover redes de contacto com entidades como autarquias, dioceses ou associações são algumas das suas prioridades. Em entrevista, fala da sua passagem pelas câmaras do Porto e Matosinhos, do papel do Estado enquanto agente cultural e da cultura enquanto atividade económica determinante no país. Confessa não ser insensível à precariedade no setor e comenta casos polémicos como a Casa da Música ou a Fundação de Serralves.
Discreta, segura e agregadora, Laura Castro não acredita em barreiras culturais que dividam o Norte e o Sul, explica como as instituições do ensino superior podem contribuir para a dinâmica cultural de uma cidade e revela como Plano de Recuperação e Resiliência vai permitir intervir em museus e monumentos e ampliar a digitalização na arte.
Foi nomeada diretora regional de Cultura do Norte em abril, como recebeu o convite?
Não estava à espera, foi uma surpresa. Estive vários anos ligada ao setor cultural na área municipal e agora estava há bastantes anos na Universidade Católica a dar aulas. Recebi o convite com surpresa, tive alguns dias a refletir se deveria ou não aceitar, mas pareceu-me uma experiência que valia a pena viver.
Porquê?
É uma área de trabalho que não é completamente nova para mim e que me agrada, conheço a cultura e o património, quando trabalhei em autarquias foi sempre nestes universos. Depois, é um desafio diferente de todos os que já tinha tido devido à abrangência regional e à responsabilidade. Por outro lado, o momento em que nos encontramos é difícil, a cultura teve que se adaptar, e também me provocava um desafio acrescido. Pareceu-me que já estava num momento da minha vida em que podia aceitar este cargo com alguma tranquilidade.
O que faz concretamente a Direção Regional de Cultura do Norte (DRCN)?
A DRCN tem cerca de 230 funcionários que se distribuem em diferentes áreas. A mais consolidada e com mais tradição é a salvaguarda do património, ela inclui um trabalho fundamental e particularmente denso. A DRCN emitiu nos últimos anos mais de seis mil pareceres por ano, o que que mostra o quanto ativo é este serviço e como é avassaladora este área em termos do trabalho que gere e das pessoas que envolve. Uma outra dimensão relacionada com esta são as intervenções no património arquitetónico e edificado, muito visíveis por parte das pessoas. Outra área, talvez mais recente, são os museus. A DRCN tutela um conjunto de museus no norte do país em cidades como Braga, Guimarães, Lamego ou Bragança, são museus muito relevantes no território, têm um papel regional determinante. Há ainda uma terceira dimensão nossa que é o apoio à promoção, à dinamização cultural e aos agentes culturais. Não a área, do ponto de visa dos recursos humanos e financeiros, mais relevante, tem menos peso, no entanto, acaba por ser muito importante porque cobre todo a zona norte do país. A relação com as associações e as fundações é feita através desta divisão.
Neste primeiro momento, quais são as suas principais preocupações e prioridades?
Quando chego, a minha primeira perceção é ver uma equipa extremamente experiente e ativa. Há figuras a trabalhar nos nossos museus que são uma referência na museologia, não tenho qualquer problema em dizer isto. A quantidade de operações em curso e os apoios técnicos que a DRCN dá a estruturas como dioceses ou autarquias é enorme. Estamos num momento que por si só já é um desafio e isso tem-me ocupado neste últimos tempos. Estamos neste momento a terminar um quadro comunitário de apoios e temos um conjunto de operações ainda por terminar, deixar estas operações a funcionar, iniciar outras e conclui-las no prazo definido é outro desafio. Estes momentos obrigam sempre a um balanço sobre aquilo que está feito e o balanço é positivo, agora é necessário definir princípios orientadores para a ação nos próximos anos. Há muitas áreas em que é preciso dar continuidade, projetos que correram bem, que estão já consolidados no território, têm agentes interessados e que não devemos quebrar. As continuidades são um problema gravíssimo na cultura.
Pode dar exemplos concretos?
Há um projeto de carácter transfronteiriço, que já vai na segunda edição, que é o Prémio Nortear, ele inclui um prémio literário associado a um conjunto de outras atividades. Se a operação termina, o prémio deve manter-se. A minha grande preocupação, e penso que será a preocupação de muitas pessoas que trabalham na cultura, é aproveitamos os financiamentos para alavancar determinadas áreas, dar um impulso a ações que com o orçamento corrente não conseguimos fazer face. Muitas vezes corremos o risco de a dinâmica gerada quando a operação financiada está a decorrer desaparecer e não deixar rasto. A minha preocupação é encontrar formas para que pelo menos algumas ações desenvolvidas nesse quadro de financiamento consigam ter entidades que lhes possam dar continuidade, de forma a criarem um efeito estruturante no território. Este prémio integra uma ação financiada, mas ele é garantindo pelo orçamento da DRCN, a ideia é sempre dar-lhe continuidade para que possa existir uma ação cultural em sobressaltos. Se estamos interessados em promover a cultura artística, isso tem de ser feito de uma maneira regular e coerente.
Como vê a recente polémica em relação à exoneração da Direção Geral do Património?
Estamos habituados a instituições e a entidades que dependem de decisões políticas e temos de as aceitar. Estou há pouco tempo neste cargo para poder fazer um avaliação do modo como a administração pública se organiza na área da cultura e do património, é uma área naturalmente difícil. Sabemos que a cultura felizmente tem um ministério, o que já quer dizer alguma coisa, que trata desta área e tem havido um conjunto de propostas importantes dentro e fora da área do património que terão o seu impacto. No contexto que vivemos no último ano e meio, não podemos achar que as medidas anunciadas serão imediatas, nestas áreas o tempo é lento e longo, demora a consolidar-se o impacto das medidas.
Que diferenças vê entre a cultura que se faz a Norte e a Sul? Prendem-se com questões orçamentais ou de públicos?
Temos um país pequeno e bastante assimétrico, desde logo em termos de população. O litoral tem uma faixa densamente povoada e o litoral não, penso que a grande diferença resida aí e não propriamente Norte-Sul. Se repararmos na maneira como os apoios à cultura estão preparados, essa questão Porto e Lisboa acaba por não fazer muito sentido. A Direção Geral das Artes, por exemplo, cobre todo o território, aos seus apoios candidatam-se estruturas do país inteiro e por vezes vemos que há ponderações positivas para estruturas em áreas mais despovoadas no interior. Não partilho propriamente da ideia de que existe uma preferência ou uma valorização daquilo que existe no Sul face ao que existe no Norte. Se me disser que existe uma concentração maior de museus nacionais em Lisboa em relação ao Porto, sim. Nós cá temos apenas um com esse estatuto, que é o Museu Nacional Soares dos Reis, mas para isso temos de encontrar razões históricas e talvez não sejam razões imediatas.
Será algo irreversível?
Gosto que na área da cultura haja alguma capacidade de consolidar as decisões tomadas, de não as reverter por pretextos imediatos. Se pensaremos nos museus que dependem da DRCN, eles têm uma função que é tão relevante a nível local, regional ou nacional. Não é pelo estatuto que devemos reconhecer maior ou menor importância a essas entidades. Quando se fala deste diálogo entre o Norte e o Sul, é este tipo de situações que vêm à conversa, não são situações substanciais, são situações de carácter formal e que não são os mais importante.
Braga e Guimarães são exemplos de uma descentralização regional da cultura, algo que talvez não aconteça da mesmo forma no resto do país. São cidades que efetivamente podem servir de exemplo?
A questão é que as condições são diferentes no que toca às pessoas que lá estão sediadas, às instituições de ensino superior e ao tecido empresarial. Há um conjunto de situações que permite a estas cidades ganhar esta dinâmica. A DRCN tutela em Guimarães três estruturas – o Museu Alberto Sampaio, o paço dos Duques e o Castelo de Guimarães – que têm um papel fundamental a nível nacional, estão muito ligadas à historia de Portugal, ao nosso território e têm um fluxo de visitantes absolutamente extraordinário. Estes edifícios estão numa cidade com uma grande tradição cultural, com um conjunto de associações com décadas de trabalho e uma articulação que leva ao desenvolvimento artístico. Braga é um caso também muito interessante de dinamismo, onde DRCN tutela dois museus, o Museu dos Biscainhos e o Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa. É outro exemplo de uma cidade em que a tutela municipal e a tutela nacional se complementam e se articulam muito bem. Parece-me fundamental que não exista uma sobreposição e uma redundância, para isso é fundamental que haja um diálogo entre todas as entidades.
Noutras cidades é difícil replicar esta harmonia?
Sim, nas cidades do interior a dinâmica é imediatamente distinta porque há menos massa crítica. Por outro lado, há áreas seguramente com menos população e com um tecido empresarial mais frágil, mas onde se podem ir buscar outros parceiros. Bragança, por exemplo, está completamente diferente dos últimos anos, modernizou-se, organizou-se em termos culturais, ficou mais interessante e depois tem o Instituto Politécnico. Em cidades onde são mais escassos alguns interlocutores, o ensino superior para mim tem de ser um parceiro.
Porque é que a dinâmica do ensino superior é tão importante a nível cultural?
A presença de jovens, professores, investigadores e estudantes Erasmus confere às cidades um rejuvenescimento. Não é uma coisa imediata e automática, porque muitas vezes sabemos que esta massa de estudantes que circula passa e não pára. Em todo o caso, numa cidade que tenha um estabelecimento de ensino superior percebemos que há um conjunto de dinâmicas, pequenos negócios e atividades culturais que acabam por ter outro tipo de público.
Hoje as pessoas estão mais longe ou mais próximas do património?
Por vezes tendemos a entender o património como um objeto, um monumento classificado, uma pintura ou um sítio arqueológico, associamos o património à materialidade das coisas, mas ele não é isso. Na verdade, são todos estes processos de carácter social e cultural que envolvem interesses, vontades, anseios e valores de identidade, é isso que gera tensão, uma tensão normal na área do património. Acho que a devemos encarar com tranquilidade. Há, de facto, áreas de trabalho cuja natureza resulta em confronto, diálogo e tensão, devemos encarar isso com naturalidade. É positivo o facto de as pessoas não serem indiferentes ao património, atribuem-lhe valor, significado e interesses. A sociedade civil organiza-se e mobiliza-se muito em redor de determinados edifícios, com os quais têm uma relação de proximidade, tudo isso é importante. Nesta área é impossível não haver discussão, tensão e debate público. Faz parte da sua natureza, e ainda bem.
Mas é uma preocupação sua incentivar de alguma forma esta proximidade?
Sim, é. A reabilitação patrimonial e o restauro de monumentos são absolutamente fundamentais porque o abandono é terrível, quer para as populações quer para as entidades. Mas depois de reabilitado o património, o que é que fazemos com ele? O uso mais básico é a visita, mas há núcleos patrimoniais que podem ter outros usos e esses usos podem ser estruturados com a comunidade e com as instituições de ensino superior. O nosso século é o século das residências artísticas, já havia trabalho feito nesse sentido, mas a expressão começou a entrar no nosso vocabulário há 20 anos. Também está presente no nosso vocabulário a possibilidade de fazer residências de investigação e de começar a utilizar edifícios como locais de encontro, de debate e de discussão, com uma utilização regular e de criação artística. É necessário trabalhar a ideia de que do património pode nascer criação, não apenas com o património edificado, mas também com o imaterial.
Trabalhou em duas autarquias, o que aprendeu com essa experiência?
Primeiro estive na autarquia do Porto, depois em Matosinhos e depois regressei ao Porto. Foram experiências exemplares, tenho a melhor recordação dessa passagem profissional. No Porto, trabalhei num momento em que não havia nada que se fizesse na cidade que não passasse pela autarquia, era de facto uma estrutura central na dinâmica cultural da cidade. Foi o tempo de preparação da Capital Europeia da Cultura, de reabilitação de muitas estruturas, de criação de outras, como a atual galeria municipal, foi um trabalho muito produtivo. Depois assistimos a uma espécie de declínio da política cultural da cidade, que felizmente foi renovada. Em Matosinhos, que é um município mais pequeno, é um exemplo de continuidade. Se pensarmos bem, a década de 90 foi uma época de transformação enorme em todo o país, o número de estruturas que surgiram é imenso. A câmara de Matosinhos era muito estruturada a nível cultural, tocava varias áreas, como a música, os museus ou o património, e penso que soube dar continuidade a esse legado. São cidades vizinhas, mas muito diferentes e com identidades muito próprias. Foram duas experiências profissionais nas quais aprendi muito, as autarquias são, sem dúvida, entidades com uma dinâmica local e de proximidade que é muito interessante.
Que papel deve ter o Estado enquanto agente cultural?
Se olharmos para um panorama alargado, o Estado teve uma preocupação com os diferentes setores de atividade e a cultura foi um deles. A cultura tem essa dimensão simbólica dos valores e da nossa identidade, das práticas de expressão individual e coletiva, mas não nos podemos esquecer que é também uma atividade que movimenta a economia do país, onde as pessoas trabalham, têm o seu salário, as suas empresas e os seus projetos. É muito comum ter-se a perceção de que apoiar a cultura é qualquer coisa que está afastada dessa dinâmica, mas não está. O apoio à cultura é o apoio ao emprego, à atividade empresarial e individual, e o Estado tem essa obrigação. A paragem na cultura foi terrível, é óbvio que se trata de um tecido tradicionalmente mais frágil, por isso mesmo o impacto é talvez mais brutal, mas o papel do Estado é exatamente o mesmo que noutras áreas: apoiar, consolidar e tentar criar condições para retomar.
O Estado tem sabido estar à altura dessas necessidades e dificuldades?
O desafio foi de tal ordem que não sei se alguém poderia ter feito de outra forma. Talvez só os cientistas considerassem que isto seria possível de acontecer porque conhecem a história de outras pandemias e estudam o comportamento dos vírus, lidam com eles em laboratório todos os dias. Talvez fossem eles os únicos a não ser completamente surpreendidos pelo contexto em que nos encontramos. Das coisas que as pessoas sentiram mais falta foi da cultura, houve um sentimento de perda porque, de facto, a cultura define-nos como criaturas humanas e como sociedade. O Estado tem, obviamente, de estar atento a ele.
A precariedade no setor é só mais uma consequência da pandemia?
Se olharmos para os relatórios que têm sido produzidos sobre o quadro das indústrias culturais e criativas em Portugal, vemos que muitas vezes as empresas e os negócios são de dimensão micro e ao falarmos de uma área cultural e simbólica também ela está sujeita a um conjunto de flutuações. A natureza desta área é mais volátil, sabemos também que há um conjunto de ações culturais que o Estado deve apoiar porque são fundamentais na nossa identidade e na nossa presença no mundo, mas que não se sustentam do ponto de vista comercial. Do teatro ao cinema, são várias as áreas culturais que não são por natureza massificadas, mas são feitas por estruturas que estão a cumprir um papel de serviço público. Julgo que o Estado tem a responsabilidade de as apoiar.
Voltando à precariedade…
Nenhum de nós, com capacidade de decisão ou não, é insensível à situação dos trabalhadores da cultura. Sabemos que é complexo manter recursos humanos a funcionar de uma forma completamente equilibrada, é um exercício difícil, mas devemos tender a ter recursos humanos qualificados e a garantir-lhes estabilidade. O estatuto profissional do artista, que está neste momento a ser definido, era uma revindicação muito antiga. É difícil conseguir consensos nesse sentido, provavelmente não vai agradar a toda a gente, mas é um passo necessário.
Como vê casos como a Casa da Música ou a Fundação de Serralves?
São casos que têm estado a ter o seu processamento na inspeção geral do trabalho e têm de ser vistos nessa perspetiva. São casos que surgiram precisamente neste período e penso que as entidades competentes foram também sensíveis e avançaram com o trabalho processual, de investigação e de audição que tinha de ser feito.
São exemplos que podem denegrir, de alguma forma, a imagem cultural da cidade do Porto?
Não sei se a imagem da cidade tem de ficar colocada a esses casos. Surgiram no Porto, é uma constatação.
O que irá trazer o Plano de Recuperação e Resiliência?
Ainda não é um número definitivo, mas estima-se que atinja os nove milhões de euros para as intervenções prioritárias de bens culturais e imóveis classificados. Todos os nossos museus e alguns monumentos vão ter intervenções relevantes que vão melhorar o próprio edifício, as condições de trabalho e dos visitantes. Depois haverá outra dimensão que é a digitalização de espólios e coleções para fins de estudo e investigação. Além disso, os nossos museus e monumentos terão uma rede wi-fi a funcionar em pleno que irá permitir fazer um conjunto de conteúdos digitais, capazes de comunicar estes locais e os visitar à distância. Sabemos que estas ferramentas digitais, ao contrário do que se pensava inicialmente, não substituem, mas complementam a experiência de visita. As pessoas veem primeiro os conteúdos online e depois dirigem-se ao lugares porque aquilo lhes despertou alguma curiosidade. Num curto período de tempo, até 2025, iremos conseguir executar um investimento fortíssimo que irá mudar a face dos museus e dos monumentos em Portugal.
A digitalização na arte veio mesmo para ficar?
Penso que sim, era uma tendência que já estava em marcha e que foi acelerada e potenciada pela pandemia. Sabemos que houve muitas situações de recurso em muitas instituições, mas toda a gente percebeu que é necessário um trabalho profissional e altamente especializado para que este tipo de conteúdos funcionem em pleno e cumpram a sua função. Não me perece que um dia substituam a experiência presencial, parece-me que é mais uma complementaridade do que propriamente uma substituição.