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Letícia Novaes tem dificuldade em definir-se. Flutua e mergulha, superficial e profunda, como pop music, escreve sobre si mesma em “Tudo que já nadei: Ressaca, quebra-mar e marolinhas”, um compêndio de poesia, prosa, contos e aforismos lançado em 2021 que tem sempre o mar por perto. “É um livro que me simboliza muito”, diz em entrevista ao Observador, horas antes de pisar o palco do Festival de Músicas do Mundo, de Sines, com o Atlântico nas costas.
Sim, Letícia é escritora, mas também é música e compositora. A música antecedeu as palavras, foi estação primeira da sua vida como a Baía foi para o Brasil: “Tenho uma lembrança de não saber ler, mas já ter o movimento do corpo”. Os pais, que adoravam dar festas, contribuíram para a sua personalidade musical. Lá em casa ouvia-se samba, samba enredo dos desfiles de Carnaval e MPB — “Caetano, Chico, Bethânia, Gal, isso era fatal!”. Mas também disco, rock ou blues. “O meu pai tinha uma hora da fossa, de pegar um whisky e ficar sentado a ouvir B.B. King e Muddy Waters. Lembro-me desses momentos, dessas dinâmicas mais alegres e mais blues lá de casa. Era uma miscelânea! Por isso é que eu sou esta pessoa também”.
Essas lembranças da infância colaram-se-lhe “à memória e à pele”. Se no primeiro disco, Letrux em Noite de Climão, álbum de 2017 eleito o 10.º melhor do ano pela Rolling Stone, a carioca levou a composição de uma forma mais intuitiva e espontânea, em Letrux aos Prantos ela aprofundou essas influências, arrojou um pouco mais na mistura, explorou várias camadas dentro do álbum, conectando-se com a sua “criança interior”.
[“Dorme com Essa”:]
Um álbum em contramão
Antes de explicar conceptualmente este trabalho, que saiu na sexta-feira 13 de março de 2020, dia em que o Brasil “se fechou” por causa da pandemia, Letrux (alcunha carinhosa que virou nome artístico) faz questão de abordar a sua altura para que a entendamos melhor. “Sou muito alta, tenho 1,85m, então nunca coube em nenhum lugar. O meu tamanho sempre foi uma questão e acho que o facto de eu já sentir que não cabia num espaço, numa gaveta, me permitiu brincar mais”.
Ela brinca de um modo muito lynchiano, referência que assume sem constrangimentos. “Queria ter um samba, mas não podia ser um samba tradicional, tinha de ser uma coisa esquisita. Então o ‘Cuidado Paixão’ virou um samba David Lynch”, diz sobre a sétima faixa de Letrux aos Prantos, tema que poderia muito bem encaixar no Estudando o Samba (1976) de Tom Zé, outra cabeça lisérgica que não tem medo de fazer humor com o sério e de institucionalizar o absurdo.
As variações em Letrux são tão fluídas que ela ora é exageradamente fatalista, como em “Sente o Drama”, faixa com participação de Liniker, ora transforma um rock sujo em eletrónica dançante em “Esse Filme Que Passou Foi Bom”, narrativa que nos lembra que em todos os anos das nossas vidas passamos pelo dia da nossa morte. “Quem produziu o disco foi o meu teclista e a minha guitarrista, que são dois seres humanos completamente diferentes. Eu ficava ali no meio da produção e tinha a preocupação de perceber que em determinadas faixas, que começavam lentas e aceleravam depois, podíamos fazer as coisas em contramão”.
Ouvir Letrux aos Prantos é precisamente aceitar o trilho menos óbvio do processo artístico. Por isso mesmo é tão exigente e transformador entrar neste universo delirante. Viver é um frenesi, canta na abertura do álbum, em “Déjà-Vu Frenesi”, como que nos alertando para essa evidência que se espraia ao longo de 13 capítulos.
Um disco de ressaca amorosa, embrulhado pela pandemia
As músicas vão contando uma história de muito choro, amor, ressabiamento, solidão, tesão e bacanal, porque todo o corpo tem água / lágrima, suor e gozo. Contudo, aquilo que poderia ser interpretado apenas como uma crónica de um romance terminado:
“Me confundi quando ‘cê disse tchau
Eu entendi te amo
Now it’s too late, baby, it’s too late
Te amo, te amo, te amo
Tchau, tchau, tchau, tchau, tchau”
Assim se ouve no tal samba de Lynch – acabou por ganhar contornos políticos. “Nunca vamos saber como é que este disco seria recebido se não fosse uma pandemia, isso é muito louco. Todas as músicas têm um olhar político, porque era o que estava a acontecer no país e no planeta”.
Há um certo tom profético, o dedo de “Nostradamus” na forma como os acontecimentos se desenrolaram, mas Letrux lembra que se a pandemia agudizou determinadas reflexões e encheu de ambiguidade versos aparentemente simples como ‘To me preparando pra quando você passar” (Dorme Com Essa), antes de ela se instalar, já as coisas não estavam bem: “Não é como se o Brasil antes disso estivesse lindo com este presidente horroroso. Já vínhamos de um lugar muito ruim, mas esse lugar saiu reforçado”, aponta, criticando a desumanização da pandemia e o “abandono total e profundo” de áreas como a cultura.
De tal forma o disco, de um determinado ponto de vista, guinou para um tom político, que o verso “Acordei bem, mas o país não colabora, nem você”, do tema “Abalo Sísmico” se tornou “num grito coletivo”: “Esta frase no show é super forte. As pessoas cantam juntas, chorando”. Aqui não podemos evitar saltar para “Tudo que já nadei: Ressaca, quebra-mar e marolinhas” e para a passagem na qual Letrux questiona, Quando foi que 1500 pessoas morrerem por dia no país se tornou numa boa?
Da mesma forma que é quase impossível pensar no que seria Letrux Aos Prantos sem a pandemia, também é preguiçoso analisar o álbum (indicado ao Grammy Latino na categoria de Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa) sem o conectar com o segundo livro da carreira da artista de 40 anos. Não por acaso ela nos diz que “Tudo que Letrux já nadou / Tange a palavra canto”.
[“Eu Estou aos Prantos”:]
A sua obra, confessa, tem sempre um tom biográfico e é escrita ora de um jorro, ora como se fosse uma “colcha de retalhos”. Há composições que lhe chegam inteiras, como “Déjà-Vu Frenesi” que lhe apareceu no meio do mar na Grécia, “tive que sair a correr da água, pegar no celular e gravar”; outras são a soma de frases soltas apontadas em cadernos ou apanhadas na rua. O resultado final soa íntimo e inteiro: “Um dia eu vou conseguir fazer um romance de ficção, mas eu ainda sou muito presente nas coisas”.
Os vários eus femininos de Letrux
Há também neste processo criativo uma homenagem, em jeito de abraço intergeracional, ao eu feminino. Duda Beat e Marina Lima participaram em Letrux em Noite de Climão e Liniker e Luísa Lovefoxxx em Letrux aos Prantos. Não são participações inocentes, como também não são inocentes as referências no seu livro a Clarice Lispector, Fiona Apple, Virginia Woolf e a Maria Bethânia, cantando Sophia de Mello Breyner Andresen nas primeiras estrofes do “Canto de Oxum”. As referências se devoram umas às outras, são antropofágicas. “Alguma coisa nos une de uma maneira que é intuitiva, inexplicável. Essas mulheres deram-me permissão para ser quem eu sou hoje. Isso é feminismo e é maravilhoso”.
Algo de muito poderoso acontece / Quando uma mulher se encontra com o seu mar, escreve, e Letrux encontrou-o ainda em menina, numa ida ao cinema com a mãe. Conta que se lembra de ir ver “O Piano” (1993), realizado por Jane Campion, e de se surpreender com uma cena de nudez de Harvey Keitel. “Eu nunca me esqueci disso. Em todos os filmes que eu via, era sempre a mulher a mostrar o peito e de repente naquele filme, com uma mulher a dirigir, apareceu um homem pelado. Aquilo foi uma inversão tão forte que me marcou muito”.
O feminismo em Letrux não tem medo de ser suruba e delicadeza, Vénus e Mercúrio e embrenha-se inclusive no “sexo das coisas”:
“Mar na França é menina
Nariz na Espanha é menina também
Seriam trans as palavras?
Nariz em espanhol é menina
E mar em francês também
Coisa linda o mar ser mulher”
Funciona como um elo invisível, material e imaterial, antropológico e futurista. “As participações especiais de mulheres nos discos e as citações de mulheres que faço no livro servem para mostrar às próximas gerações que porventura se inspirarem em mim que eu também tive portas abertas por outras. É um caminho sem fim”.
Nesse processo ad infinitum há espaço para a comunhão total de meninas, meninos e menines, que é tudo o que se espera dos concertos de Letrux em Portugal. “Cada show vai ser diferente”, antevê, ela que é uma artista que gosta de sentir a plateia para estabelecer o guião do espetáculo. “Todas as dinâmicas me comovem. Não importa se é um clubezinho ou um festivalão, eu entrego-me sempre a 150%”. Será assim no Music Box, em Lisboa (28 e 30 jul.), no Salão Brasil, em Coimbra (29 jul.), no Hard Club, no Porto (31 jul.) e no Theatro Circo, em Braga (5 de ago.), como o foi em Sines e no Funchal.