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Livros, fotografias, desenhos, maquetes, mobiliário e até animais: o património da Universidade do Porto (UP) é cada vez mais extenso e variado. Segundo a instituição, nos últimos quatro anos houve um aumento de 140% nas doações, tanto de objetos como de coleções.
“O nosso património resulta de aquisições, colheitas de exploradores, naturalistas ou antigos docentes, mas também de transferências do Estado, através de museus ou instituições culturais que fecharam e cujo espólio veio para cá. Grande parte são doações de particulares, tanto coleções ou peças individuais”, explica ao Observador Fátima Vieira, vice-reitora para da UP, acrescentando que atualmente as doações são feitas em vida pelo próprios autores e artistas, ao contrário do que acontecia no passado, em que eram as famílias que tomavam essa decisão. “As pessoas reconhecem que a universidade é uma instituição que não vai morrer e é o local onde as coleções vão ser preservadas, classificadas, investigadas e comunicadas.”
O património da UP começou a ser desenhado bem antes da sua fundação, em março de 1911, mais precisamente no início da década de 60 com a criação da Aula de Náutica, no Campo dos Mártires da Pátria. “Naquela época, os produtores de vinho do Porto precisavam de oficiais que soubessem navegar, então pagavam e financiavam o curso de náutica a quem quisesse aprender. Mais tarde, foram criadas aulas de debuxo e desenho porque era necessário quem soubesse fazer mapas. O nosso espólio começa nesta altura e através da relação entre a academia, docentes e investigadores, com a própria sociedade, a marinha e o comércio”, sublinha a vice-reitora.
Hoje, o património da universidade é maioritariamente português, está dividido por várias moradas, em núcleos museológicos nas várias faculdades, e só alguns espaços contam com equipas próprias de curadores e investigadores e uma porta aberta ao público.
Uma câmara de anoxia para desinfestação de objetos e uma tina para lavar livros antigos
Num dos pisos do Museu da História Natural e da Ciência, junto ao jardim da Cordoaria, espaço de investigação onde estão doações e depósitos nas áreas da etnografia, arqueologia, zoologia, mineralogia e botânica, está o gabinete dedicado à conservação e ao restauro. Aqui os curadores e investigadores ocupam secretárias com computadores, já os técnicos operam debaixo de grandes focos de luz, luvas nas mãos e batas brancas vestidas. Uma delas é Joana Ricardo, técnica de conservação e restauro há 15 anos, que de pé junto a uma bancada restaura algumas peças coloridas da coleção com mais de 700 peças de olaria e figurado de Barcelos doada recentemente à universidade pelos arquitetos Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez.
“Seguimos um protocolo já definido, começamos por fazer um diagnóstico a cada peça individualmente a olho nu, verificando a técnica ou os materiais com os quais o artista trabalhou, é muito importante conhecer a raiz de cada objeto, e depois identificar as suas patologias, como destacamento do vidrado, da cor ou oxidações”, começa por explicar a especialista ao Observador.
Após alguns minutos de observação, Joana fotografa a peça e regista todas características originais numa base de dados no computador. Em seguida, é hora de colocar as mãos na massa, mas sem a intenção de alterar nada. “Estamos a falar de artigos históricos que serão expostos, não pretendemos transformar a peça e mostrá-la como nova, temos limites, atuamos mais na preservação e na higienização, não introduzimos materiais que não sejam compatíveis com os originais.”
O trabalho de conservação e restauro depende sempre do tamanho e do volume do objeto, nesta coleção de figurado de Barcelos, datada desde 1960, é composta por peças de barro não cozido trabalhadas à mão e com pigmento. “Estão em bom estado, embora com alguma sujidade superficial, descolamento de pastas e oxidação de alguns elementos metálicos”, sublinha Joana Ricardo, rodeada por bisturis, cotonetes, pedaços de algodão, frascos com dissolventes e pincéis, borrachas de vários tamanhos, escovas com várias cerdas, um frasco de pincéis e um pequeno aspirador portátil com uma sucção controlada manualmente.
Depois de estarem limpas, as peças seguem viagem para uma câmara de desinfestação por anoxia, onde durante 21 dias permanecem sem oxigénio e com introdução de azoto, um procedimento completamente inócuo capaz de matar o ciclo de qualquer praga, do ovo ao inseto. A coleção é retirada depois por técnicos e embalada com espumas especiais e caixas de cartão livre de ácidos. Umas figuras seguem para a reserva, onde são armazenadas para curadores e investigadores as estudarem e catalogarem; outras ocupam a vitrina de uma exposição, sendo que em qualquer um dos destinos a humidade e a temperatura são controladas para evitar qualquer dano.
“A possibilidade de prolongar a vida de uma peça para mais gerações é o que mais fascina neste tipo de trabalho. Neste museu já tratei o esqueleto de um musaranho, o que implicou uma limpeza muito minuciosa, mas o desafio mais complicado até agora foi intervir num urso polar em extinção pela sua escala. Estava taxidermizado e em bom estado porque esteve muitos anos em vitrine e isso protege-o de agentes externos”, recorda a técnica.
Uma xiloteca com madeiras exóticas brasileiras da primeira metade do século XX, um esqueleto de baleia azul dado por António Abecassis em 1937, os livros que integram o arquivo científico do zoólogo Desmond Moris ou as estatuetas macondes de Moçambique doadas pelo médico Américo Pires de Lima em 1918, avaliadas em mais de um milhão de euros e uma das mais procuradas e estudadas em todo o mundo, são alguns exemplos expostos. As prateleiras do museu estão repletas de preciosidades, mas é num dos corredores da reserva, a baixas temperaturas, que está umas das maiores e mais importantes coleções doadas à universidade.
São 3800 aves e ninhos, incluindo um conjunto de colibris bastante preservado e completo, 45 mil invertebrados, 120 mamíferos, 20 répteis, cinco peixes e 300 minerais que compõem a coleção “Braga Júnior”, doada pela família do vice-cônsul brasileiro no Porto em 1928, após a sua morte.
“Nada disto está à venda e as peças só têm um valor associado quando nos pedem emprestadas para exposições internacionais, como aconteceu recentemente com uns vasos gregos. Aí somos obrigados atribuir um valor para fazer o seguro caso ela se perca”, exemplifica a vice-reitora Fátima Vieira. A raridade e a antiguidade são fatores importantes neste processo e nas vitrinas saltam à vista alguns frascos de vidro com fitas ou etiquetas vermelhas, com ovos ou crustáceos. “Este símbolo é um código internacional que nos indica caso existe algum perigo, como um incêndio, a nossa prioridade deverá ser salvar estas referências porque são únicas ou raras.”
Na porta da sala onde trabalha Ana Freitas lê-se “Biblioteca do Fundo Antigo” e é lá que estão depositados os livros mais antigos vindos de todas as bibliotecas que antecedem a UP. Em cima de uma majestosa mesa de madeira, a técnica de conservação e restauro de documentos gráficos mostra um exemplar do Tratado da Pratica d’Arismética (1519) de Gaspar Nicolas. Trata-se de livro mais antigo em Portugal consagrado à aritmética sendo, até à data, exemplar único no mundo. Uma raridade do século XVI doada à Universidade do Porto por Francisco de Paula de Azeredo, antigo Professor da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.
“Sempre que ocorrem doações a primeira ação passa pela avaliação do estado de conservação da coleção doada seguida da sua desinfestação e posterior higienização, explica Ana Freitas ao Observador, explica Ana Freitas ao Observador, acrescentando que um restauro profundo pode durar até seis meses e o trabalho de intervenção pode contemplar limpeza com borrachas específicas, operações de lavagem em tinas com diferentes soluções, consolidação de rasgões e preenchimento de lacunas existentes no papel.
“Até à data os maiores desafios que tive em termos de intervenções de conservação e restauro foram o tratamento de uma gravura da rainha Nzinga (1582-1163) que se encontrava muito danificada e colada num suporte secundário de madeira e um desenho de grandes dimensões realizado pelo arquiteto Marques da Silva enquanto aluno em Paris no atelier de Victor Laloux.”
A torre de Fernando Távora inspirada em Chicago e um novo centro de documentação desenhado por Siza Vieira
A história da Fundação Marques da Silva, situada na Praça do Marquês de Pombal, começa precisamente com uma doação à UP, deixada em testamento pelo arquiteto Marques da Silva, é composta pela sua casa – ateliê e pelo palacete vizinho da família Lopes Martins. “Deram-nos estas duas casas, mas também meios para financiar a fundação o que a torna auto-sustentável”, revela a vice-reitora Fátima Vieira, sublinhando a intenção de tornar este espaço um verdadeiro centro de estudos de arquitetura na cidade.
Lá dentro moram 60 acervos pessoais de arquitetos portugueses — recentemente foi incluído também o arquivo da faculdade de arquitetura –, entre 550 maquetes, 290 mil desenhos, 23 mil títulos de livros e 114 mil registos fotográficos e digitais, mas também exposições temporárias abertas ao público, gabinetes de investigação, conservação e digitalização de documentos. A vice-reitora acredita que a Fundação Marques da Silva “tem a maior biblioteca especializada do país”.
Concentrada e de luvas azuis nas mãos, Alexandra Guedes está no gabinete de higienização e conservação dos acervos recebidos na fundação. “O que fazemos é preparar toda a documentação para que depois possa ser tratada no arquivo e manuseada”, explica, rodeada de caixotes de cartão com dossiês generosos de desenhos, esquiços, fotografias, registos sobre obras, viagens ou memórias descritivas.
O material costuma chegar às suas mãos danificado, sujo, desorganizado, marcado e dobrado, cabe-lhe retirar vincos com uma dobradeira, escovar o papel cuidadosamente, retirar elementos metálicos com ferrugem com um alicate ou um bisturi e embrulhar tudo em papel sem químicos, atado com uma fita de mastro branca. “Quando estão mesmo muito deteriorados têm de ir até à equipa de restauro, mas isso acontece mais com peças desenhadas e não com escritos”, garante.
Numa outra sala do edifício está Conceição Pratas, integra a equipa responsável pelo recenseamento, catalogação, digitalização e tratamento arquivístico e na sua secretária são muitos os dossiês com desenhos, licenças e registos de obras arquitetónicas de Francisco Barata Fernandes, que, depois higienizados, são registados um a um numa base de dados para serem disponibilizados online no arquivo digital da fundação. Manuel Graça Dias, Maurício de Vasconcelos ou Luís Alçada Baptista serão os próximos arquitetos a serem trabalhados pela fundação.
“O processo costuma ser longo, mas tudo depende dos metros lineares da documentação. Trabalhamos com peças desenhadas, escritas e maquetes, ordenamos tudo por fases do projeto e temos uma máquina especial para digitalizar desenhos de grandes dimensões”, diz ao Observador, acrescentando que dentro destas portas não se encontram apenas arquivos de arquitetura, mas de arquitetos.
“Cada um de nós trabalha um acervo do início até ao fim para sermos as melhores pessoas que conhecem o arquiteto. Não nos chegam apenas as obras de urbanismo, mas sim toda a documentação relativa a outras aspetos das suas vidas, temos que contextualizar essa informação, estudar a sua biografia e esse trabalho passa muitas vezes despercebido, mas é igualmente importante.”
A Fundação Marques da Silva só recebe acervos completos precisamente para poder mostrar todo o universo do arquiteto e nos seus arquivos guarda pastas com correspondência, licenças, custos de obras e várias versões das mesmas.
“É fundamental entender o ambiente intelectual dos arquitetos, o que leram, o que ouviram, o que escreveram, como pensavam, por onde andaram, como trabalhavam, como formaram as suas próprias ideias e como se inspiraram para perceber efetivamente o seu legado”, sublinha Fátima Vieira, vice-reitora da UP, dando mesmo um exemplo concreto de Fernando Távora. “Temos fotografias de uma viagem que ele fez a Chicago nos anos 60 e a maquete de um projeto para Aveiro que não ganhou e nunca chegou a ser construído. Na proposta vemos uma torre enorme e percebemos que essa ideia surgiu da viagem que fez.”
Sentada numa cadeira alta, ao som da música que ecoa do seu telemóvel, a investigadora Alexandra Saraiva ordena pequenas fotografias a preto e branco de algumas obras de Raul Hestnes Ferreira. “Fiz a minha tese de doutoramento sobre ele, tratei do seu espólio e ajudei na transferência do seu ateliê para cá. Em outubro faremos aqui uma exposição com algum material inédito dos seus 60 anos de trabalho e mais de 300 obras realizadas, por isso estou a fazer agora uma pré-seleção de algumas coisas que não estão inventariadas. É um trabalho demorado, estamos a falar de um espólio bastante grande.”
A universidade pretende abrir à cidade o jardim situado nas traseiras dos dois edifícios criando uma casa de chá e inaugurando, em 2027, um novo centro de documentação desenhado por Álvaro Siza Vieira, com direito a um auditório e um custo previsto de quatro milhões de euros.
A secretária de Vasco Graça Moura e o espólio de Eugénio de Andrade
A Casa dos Livros — Centro de Estudos da Cultura em Portugal da Universidade do Porto foi criado em 2017, na Rua do Campo Alegre, na sequência da entrega à Faculdade de Letras, em regime de comodato, do acervo documental do escritor Vasco Graça Moura, que morreu em 2014. É aqui que podemos encontrar o seu espaço de trabalho, numa recriação completa da sua casa em Almeirim, onde a secretária, a cadeira, as estantes com dicionários, enciclopédias, livros sobre política, filosofia, dandismo ou arquitetura religiosa fazem parte do cenário de uma sala que conta ainda com alguns dos seus quadros e condecorações.
“Quando estamos a falar de um intelectual como ele, é importante recriar o seu ambiente e universo, ter acesso a todas as fichas de investigação, artigos científicos, revisões e todos os livros que consultou e que deram apoio à sua própria escrita”, sublinha Fátima Vieira, vice-reitora da UP, acrescentando que a intenção desta nova morada é “preservar, classificar e disponibilizar” todo os acervos documentais íntegros de interesse doados ou depositado na faculdade, mas também promover atividades como exposições, cursos, tertúlias ou visitas guiadas em torno da literatura portuguesa.
Depois de um processo de descontaminação, a biblioteca de Vasco Graça Moura, composta por 35 mil livros, está a ser catalogada por uma equipa de técnicos e investigadores. “O processo é longo, ele tinha duas casas e umas sete salas repletas de livros.” Se uma parte do espólio se encontra no arquivo, outros exemplares ocupam duas salas de exposições, onde é conhecer melhor o lado menos conhecido do escritor, através de livros sobre música ou fado. “Em novembro este espaço irá receber uma outra exposição sobre a obra José Saramago”, adianta a responsável.
Numa outra sala do edifício o silêncio e a concentração reinam em frente a computadores pousados em secretárias de madeira repletas de livros antigos, Mariana Silva e Hugo Neves manuseiam-os com luvas nas mãos e muito cuidado. “Neste momento estamos a fazer a classificação do acervo do gramático António Cortesão antes de ser disponibilizado. Inicialmente fizemos um inventário e agora partimos para a catalogação, ou seja, começámos com uma descrição mais básica do livro com o título, autor e tema, e agora entramos numa descrição mais profunda, onde mencionamos as suas dimensões e o estado em que se encontra”, revela Mariana ao Observador.
Hugo Neves colabora no gabinete há pouco mais de um mês e garante que o trabalho não é apenas técnico. “Nesta fase de catalogação por vezes não basta folhear o livro e ver do que se trata, nos temas menos comuns é preciso lê-lo, procurar o mesmo assunto noutros catálogos para no fim conseguirmos preencher várias categorias segundo normais internacionais. O nosso objetivo é que toda a informação que disponibilizamos possa ser útil no futuro para investigadores, mas quanto mais antigo, mais difícil se torna trabalhar um livro.”
Dar acesso a acervos completos de escritores portugueses permitindo um estudo e uma investigação contextualizada é a missão da Casa dos Livros, que conta com espólios de outros escritores como Albano Martins Óscar Lopes, Humberto Baquero Moreno, Herberto Hélder ou Manuel António Pina, estes dois últimos o acesso só é possível em formato digital e caso a família autorize, “uma vez que se trata de um depósito e não de uma doação.”
Recentemente, a 21 de março, a Câmara Municipal do Porto cedeu à Casa dos Livros o espólio do poeta Eugénio de Andrade, contribuindo com um financiamento de 60 mil euros durante os próximos três anos para garantir a manutenção, tratamento e disponibilização dos acervos. A autarquia abriu ainda a porta para criar, juntamente com a universidade, um prémio anual que potencie e promova a publicação de obras que estudem os poetas da cidade.