Desde que surgiu em 2011 que o Festival Semibreve tem conquistado o seu lugar no panorama de festivais de música em Portugal. Em 2018 é o festival de música eletrónica mais relevante a acontecer em Portugal e, pela forma como a programação se reflete na sua escala, é um dos mais atrativos a nível europeu. Organizado pela AUAUFEIOMAU e programado por Luís Fernandes (Braga, 1981), também diretor de programação do gnration, já trouxe nomes como Alva Noto, Fennesz, Dopplereffekt, Laurel Halo, Roedelius, Vladislav Delay, Jon Hopkins ou Ryoji Ikeda.
Neste ano, o festival decorre entre 26 e 28 de outubro em vários locais da cidade, Theatro Circo, gnration, Casa Rolão ou Universidade do Minho, e embora o foco esteja na programação musical, o festival mantém uma ligação com a arte digital, que existe desde a sua criação, através de instalações e workshops. Uma das regras do Semibreve até ao momento é não repetir nomes e este ano estreiam-se nos palcos do festival músicos como William Basinski, Sarah Davachi com Laetitia Morais, Keith Fullerton Whitman com Pierce Warnecke, Grouper, Caterina Barbieri, Telectu, RP Boo ou Actress.
Estivemos à conversa com Luís Fernandes. A sua ligação à música não vem por formação (tem um doutoramento em Fisiologia aplicada à atividade física), embora atualmente esteja a frequentar um mestrado de Museologia e Curadoria na Faculdade de Belas Artes do Porto. Diz que sempre foi um curioso, começou com bandas de garagem e esteve em projetos como Peixe:Avião ou Palmer Eldritch, já foi conhecido como The Astroboy e mantém uma colaboração com a pianista Joana Gama que tem dado frutos admiráveis, como o recente At The Still Point Of The Turning World, na Room40, editora de Lawrence English.
Essa curiosidade pela música, e não só, reflete-se também na sua programação no Semibreve e no gnration, feita de desejos e vontades de partir para o novo e materializar na sua cidade um festival e um espaço de referência. Pode-se dizer que o conseguiu.
O primeiro Semibreve foi em 2011 e o gnration surgiu depois como parte do Braga 2012 – Capital Europeia da Juventude. Como é que esses dois projetos entraram na sua vida?
Não há uma relação direta entre o gnration e o Semibreve. O Semibreve começou em 2011. Comecei por me envolver porque era músico, interessava-me por este domínio musical, da eletrónica e, também, tinha amigos envolvidos com o mesmo interesse. Braga seria no ano seguinte Capital Europeia da Juventude e havia uma série de financiamentos para fazer várias coisas. Surgiu a hipótese da cooperativa dos Mão Morta [AUAUFEIOMAU], da qual na altura eu não fazia parte, criar um festival de música na área da eletrónica. Na altura, salvo erro, só havia o MADEIRADiG na Madeira, não havia mais nenhum festival em Portugal a explorar este tipo de abordagem. Eu não tinha experiência de curadoria, de programação, era apenas uma pessoa que gostava de ouvir esse género de música. Claro que tinha ideias sobre o que poderia ser um cartaz coeso, artistas que nunca tinham vindo cá, ou que muito raramente tinham vindo cá, e que gostava de trazer. Mas tudo começou numa base muito inocente. E foi crescendo todos os anos.
O gnration entra então como consequência do seu trabalho no Semibreve?
Só fui convidado para trabalhar no gnration por causa do meu trabalho no Semibreve. Foi a minha introdução no mundo da programação. Sempre fui músico, já era antes de ser programador. Sem o Semibreve provavelmente não teria sido convidado para o gnration. A ligação é apenas essa. Agora trabalho nos dois sítios, sendo que o Semibreve é um trabalho ocasional, é quase trabalho por amor à camisola. Não existe uma relação profissional no sentido de trabalharmos para o festival o ano todo e sermos remunerados.
Qual foi a ideia inicial para o Semibreve?
Isto partiu de quatro pessoas: António Rafael e o Miguel Pedro dos Mão Morta e o Tiago Sequeira, que não é músico. A ideia era fazer um festival de música mas com ligação à arte digital. Quando começámos era um festival de música, de sala. Mas um dos compromissos que tínhamos era criar uma ligação com a arte digital. Isto tem a ver muito com Braga, a cidade tem uma componente tecnológica, de investigação muito forte. A Universidade do Minho era, se calhar ainda é, a mais reputada em termos de tecnologias da informação, programação, ciências de computação, e tem o Centro de Computação Gráfica. Isto tornava Braga uma espécie de Silicon Valley à portuguesa. Não havia uma tradução para o domínio artístico da relação que a cidade mantinha com a tecnologia a outros níveis. Por isso uma das premissas era fazer a ligação entre o mundo académico e o mundo artístico no domínio das artes digitais. E por isso instituímos logo um prémio que era feito em parceria com a Universidade do Minho, a que hoje em dia se junta a EDIGMA: tínhamos uma mostra de trabalhos de alunos nesta área. Mas essa ligação nunca passou totalmente para a música, ficou limitada ao carácter expositivo. Uma das características, e um dos potenciais problemas, era que o nível de programação musical era muito alto e no domínio expositivo eram trabalhos de alunos, que nem sempre têm de ser bons. A ideia era mostrá-los e dar um espaço para exposição que não havia. Em termos de música, fomos logo atacar nomes que já tinham vindo a Portugal, não tivemos a preocupação de espectáculos inéditos, que agora até temos mais. Mas eram nomes que nunca tinham ido a Braga e que eram referências, lembro-me do Fennesz, Alva Noto, que não era tão estrela como é agora.
Agora, se calhar, já não conseguiria trazer o Alva Noto.
Se calhar já não. O Alva Noto, o Murcof, que na altura calhou muito bem, porque tinha aquele projeto com os Anti VJ, que para mim foi o melhor espectáculo que vi dele — e já vi vários. Depois seguia muito aquela linha da 12k, do Taylor Deupree, ele veio apresentar um projeto especial com o Stephan Mathieu. Foi algo na lógica do gosto, vou tentar que eles venham cá. Não houve um tema subjacente. Éramos mesmo inocentes nessa altura: gostamos deles, vamos convidá-los.
Com o passar do tempo imagino que essa inocência se vá perdendo. É importante para o seu trabalho viajar e ver ao vivo alguns dos projetos que programa para o Semibreve? E havia alguma referência de um modelo de festival de eletrónica?
Penso que fomos inocentes nesse nível. Conhecíamos o MUTEK, Sónar, o Unsound, aliás, o Unsound de forma muito superficial. Nunca tinha ido a qualquer um deles. É importante assinalar que o Semibreve é uma estrutura que não é profissional, só tenho possibilidade de ir a festivais porque também sou programador de outra entidade. Mas isso veio depois, essa capacidade e possibilidade de poder ver coisas, que considero fundamental. Já me aconteceu programar coisas de olhos fechados, que se tivesse visto nunca programaria. Um clássico, que acontece a muita gente. O contrário também acontece, já termos visto e arrependermo-nos. Também já me aconteceu. Isso levou a que eu olhasse o processo de programação de forma diferente. Não só de perceber se funciona bem ou mal, mas também como é possível manter a bitola alta não só em termos musicais mas também performativos. A parte musical é mais fácil porque consegues ouvir antes, mas há tantas nuances, que por vezes é difícil de perceberes sem veres. A importância dessas coisas só veio mais tarde, depois de fazer o festival e ver mais coisas, estar mais alerta para coisas que ao início não estava.
Durante esse processo, alguma vez achou que tinha de vestir o Semibreve de outra forma?
Não, nunca tivemos essa perceção. Pelo formato que tem e pelo contexto onde decorre, tem características um bocado únicas. A maior parte dos festivais que são análogos aos Semibreve, na Europa, pelo menos, não têm a mesma dimensão. São maiores. Ou quando não são maiores, ocorrem em sítios diferentes. O Semibreve decorre num teatro convencional, muitos outros também decorrem, mas é um teatro especial, antigo, recuperado, com perfeitas condições técnicas, com um sistema de som de outro mundo, inacreditável, numa cidade tipicamente considerada como conservadora, que nunca tinha esse tipo de programação. Mas também explorámos outros locais, com forte relação com o património da cidade, onde criamos uma dualidade e uma relação interessante com os conteúdos que lá apresentamos.
Mas quando se começa a ir a festivais lá fora, a ver peças criadas no contexto de um festival em concreto que depois são vendidas para outros contextos, imagino que começa a nascer a vontade de também ser curador ou impulsionador de projetos para determinados artistas. Nesta edição do Semibreve há alguns exemplos disso, como o espectáculo da Sarah Davachi com a Laetitia Morais.
Sim, aí fomos mudando. E fomos mudando porque vivemos dessas experiências que vimos noutros locais. A questão das encomendas só surgiu em 2016, quando o Roedelius tocou com músicos portugueses. Só aí é que começámos a ter essa preocupação. O facto de não fazermos mais não tem a ver só com o querermos ou não, mas com constrangimentos orçamentais, que só são ultrapassados quando o festival atinge um estatuto que inspira alguma confiança. Quando se tem muito dinheiro e podes oferecer mundos e fundos, isso passa um bocado para segundo plano. Mas o Semibreve é um festival de orçamento reduzido e só funciona bem porque a experiência que proporcionamos aos artistas é super relaxada, profissional, é um contexto acolhedor que ajuda a eles virem. Vem também do facto de nós sermos músicos e sabermos como queremos ser tratados, ou como não queremos ser tratados. Fomos mudando nessa percepção de ter concertos mais especiais, produzi-los de certa forma, diferente, e há coisas que se veem, pequenos modelos que outros festivais fazem e que fazem sentido replicar. Mas a diferença foi essa questão das encomendas. E as redes. Não trabalhávamos em rede e agora trabalhamos em rede.
Desde quando?
Desde 2015. Foi o ano em que integrámos uma rede chamada ENCAC [European Network for Contemporary Audiovisual Creation] e o ICAS [International Cities of Advanced Sound], embora o ICAS não se traduza em nada de muito de especial, tem a rede SHAPE [Sound, Heterogeneous Art, and Performance in Europe], neste ano a Caterina Barbieri vem como parte da rede SHAPE. Mas na verdade o impacto das redes ainda não foi preponderante no festival.
Mas as redes são importantes para a existência destes festivais na Europa.
Sim. Quando propus, por exemplo, esta parceria entre o Keith Fullerton Whitman e o Pierce, propus logo a uma série de festivais. À partida será repetida num grande festival no próximo ano. O ideal é quando defines à partida um espectáculo, uma encomenda e direcionas logo para outros festivais para o sustentar financeiramente. Senão é muito mais difícil, para nós principalmente. Para mim essa é a principal vantagem das redes, é poderes fazer coisas, sem desvirtuar a tua identidade, que de outra forma não conseguirias e assim teres espectáculos mais especiais.
Como é que começou a desenhar a programação deste ano?
Todos os anos temos uma série de artistas que queremos trazer e não conseguimos. Tenho uma lista de artistas que não puderam estar num ano e passam para o ano seguinte. Alguns já estão na lista há cinco anos. Costumo começar por aí, porque não temos nenhum tema subjacente, como tem o Unsound ou o CTM. Nem sentimos necessidade de ter, porque é um festival pequeno. A partir do momento que tens um desses artistas confirmados, ou começas a ter um ou dois, já começas a ter uma perceção de como podes completar o resto da programação de uma forma coerente.
Isso serve como uma espécie de base?
É um primeiro passo que é quase formal, estrutural. Tento encontrar uma pedra de apoio e a partir daí começo a compor tudo de uma forma coerente. Por exemplo, a Sarah Davachi, tinha visto no MUTEK e adorei. Foi incrível. Os discos já conhecia e adorava. Convidei-a, a ideia de fazer uma colaboração especial veio depois: porque faço tudo isto com muita antecedência. A primeira ideia nem foi fazer ela nem a Laetitia, foi só fazer Sarah Davachi, mas depois veio a ideia de fazer com a Laetitia. Nem sempre essas colaborações são o que te aparecem em frente.
Qual foi a base neste ano?
Isso é uma boa pergunta.
Cheira-me que o Keith Fullerton Whitman andou a saltar uns anos…
O Keith tem saltado, tem. Este ano, todos os que tinha inicialmente previsto falharam. Mas numa fase muito prévia, era a Holly Herndon… e falhou porque não quis, vi no CTM e desiludiu.. O William Basinski já queria fazer há algum tempo. Confesso que não me recordo quem foi o primeiro que marquei neste ano… mas quem andava na lista há muito tempo era o Alfredo Costa Monteiro. Porque ele é totalmente desconhecido em Portugal e tem um trabalho forte: foi um dos primeiros que marquei este ano. E o último foi o Qasim Naqvi.
E como surge a música de dança no Semibreve? Este ano acerta na mouche, com DJ Stingray, RP Boo…
Não havia nos primeiros anos. Nos primeiros três anos do festival só tínhamos o Theatro Circo. Em 2014 pudemos dar um salto em termos de programação, de diversidade da programação, porque no Theatro Circo não podes colocar a Jlin [que entretanto cancelou a sua participação no Semibreve, sendo substituída por Actress], porque é um teatro convencional, de lugares sentados. Eu sentia-me frustrado, porque havia imensas coisas que queria marcar, como o Mark Fell, por exemplo, e nunca conseguia. E depois quando veio o gnration foi supernatural porque, tendo uma Black Box, servia de complemento ao que se fazia no Theatro Circo e trazia outro tipo de público também. Eu também não sou um especialista em música de dança, nem pelo lado de consumidor, não vou a clubes, não compro discos de música de dança, mas há os artistas que pisando esse território, conseguem ter música extremamente interessante. São esses que tento escolher. Este ano calhou mesmo bem, conseguimos um belo grupo.
O DJ Stingray vem num momento oportuno.
Queria ter trazido quando trouxe os Dopplereffekt [na edição de 2016], mas não foi possível nesse ano. Pegando no clubbing, quando introduzimos essa variável, o festival cresceu imenso em termos de exposição mediática e de público.
Imagino que a música que quer programar pode ser apresentada de outra maneira, certo?
Pode-se ser muito mais amplo no que se apresenta tendo essa maleabilidade de espaços físicos. Porque este campo da música eletrónica mais arriscada não é só de sala. E quando foge para o lado do clubbing se calhar há menos oferta ao longo do ano. Tirando em Lisboa, este tipo de artistas que tocam… o Stingray, se calhar até é mau exemplo, mas este tipo de artistas raramente vêm a Portugal. Um William Basinski ainda vem a um teatro, etc. Essa lacuna ainda é maior na música de dança mais cerebral.
O festival é importante para Braga?
Sim. Não só é importante, como teve um papel transformador. A partir do Semibreve houve muita a acontecer, não só em produção artística, que por vezes é difícil de quantificar, porque há muita malta que faz música, vídeo, instalações, que nunca sai de um certo anonimato, mas a criação artística aumentou. Estes modelos — se há um festival na cidade, a malta vê — são sempre referências, mais motivos para tentares fazer alguma coisa tua. O sucesso do Semibreve e do gnration levaram a que Braga assumisse um perfil muito aproximado a esta relação entre arte e tecnologia, as chamadas Media Arts. E então a Câmara Municipal de Braga decidiu que a orientação mais orgânica e natural a dar à candidatura a Cidade Criativas da Unesco seria na categoria de Media Arts. O Semibreve é um dos eventos basilares da cidade, é provavelmente aquele com mais projeção internacional, tirando a Semana Santa, que é turismo religioso. Em eventos artísticos, de cariz artístico, é difícil de ultrapassar. Não quer dizer que seja o único festival que tenha programação de qualidade.
Um festival destes parece fazer mais sentido fora das grandes cidades, neste caso Lisboa e Porto. Braga é próxima do Porto, se o Luís fosse do Porto imaginar-se-ia a conseguir fazer um festival destes no Porto? Acha que é mais fácil montar um festival como o Semibreve noutra cidade além de Lisboa e Porto? Não quero dizer “cidade pequena”: Braga não é pequena, à escala de Portugal não é pequena…
Penso que não iria funcionar no Porto da mesma forma por várias razões. Braga tem uma dimensão particular. Apesar da escala portuguesa, é uma cidade pequena. E aquela dimensão faz com que as coisas sejam mais fáceis de fazer acontecer. E Braga era uma página em branco no que a este domínio diz respeito. No Porto isso já não acontece, esse espaço iria ser difícil de criar, porque há muita coisa a acontecer. Não sendo impossível criar o festival no Porto se eu fosse portuense, não seria a mesma coisa. Parte da experiência do festival é ser numa cidade menos turística, mais pequena, porque senão era mais parecido com outros festivais.
Todas as informações sobre o festival Semibreve aqui.