Discurso de Lula da Silva, Presidente do Brasil

na Assembleia da República, a 25 de Abril

Foi com muita alegria que recebi o convite do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa para realizar esta visita de Estado a Portugal, coincidindo com a celebrações do 25 de Abril.
Nos últimos dias, tive aqui em Portugal a inconfundível sensação de estar em casa, sentimento que, acredito, é compartilhado por todos os brasileiros que visitam Portugal e todos os portugueses que visitam o Brasil.

O Presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, começou o seu discurso na Assembleia da República enfatizando um dos pontos que provocou mais polémica sobre a sua visita a Portugal: o facto de o discurso acontecer precisamente no mesmo dia das celebrações do 25 de Abril. Sublinhando esse facto, Lula começa por reconhecer essa honra e nota a ligação profunda entre Portugal e Brasil, dizendo que ao longo dos últimos dias teve a “sensação de estar em casa”.

O 25 de Abril permitiu que Portugal desse um verdadeiro salto para o futuro. O movimento iniciado pelos Capitães de Abril há exatos 49 anos reconquistou as liberdades civis, a participação política dos cidadãos, a democratização política, os direitos trabalhistas e a livre organização sindical, criando as bases para o desenvolvimento económico com justiça social. É isso que hoje estamos recordando e celebrando.
Do outro lado do Atlântico, nós brasileiros assistimos, com admiração e esperança, a Revolução dos Cravos dar origem a uma vibrante democracia parlamentar, com as impressionantes conquistas políticas e sociais alcançadas desde então.

Precisamente pelo facto de o discurso ter lugar no 25 de Abril, o Presidente brasileiro não podia evitar começar por elogiar a Revolução dos Cravos e sublinhar como foi acompanhada “do outro lado do Atlântico”, “com admiração e esperança”. Afinal, em 1974, o Brasil ainda vivia numa ditadura militar — uma ditadura com caráter semelhante ao Estado Novo, com polícia política, censura e supressão de liberdades civis —, que só viria a terminar mais de dez anos depois. Mas mais do que isso, Lula deixa claro como este seu discurso e a sua presença no parlamento português não está desligada das celebrações do 25 de Abril.

O êxito de nossos irmãos portugueses nos mostrava que, em breve, seria a vez de nós brasileiros iniciarmos nossa jornada rumo à reconquista da liberdade e da democracia. Enquanto em Portugal desmontava-se o aparelho repressivo a partir de 1974, nós no Brasil ainda enfrentávamos as prisões políticas, os sequestros e assassinatos de operários, jornalistas e militantes, perpetrados pela ditadura.
Chico Buarque, cuja inigualável sensibilidade poética pudemos finalmente homenagear ontem na cerimónia de entrega do Prémio Camões, retratou esse momento na canção “Tanto Mar”, de 1975, que diz:

“Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do seu jardim
Sei que há léguas a nos separar,
Tanto mar, tanto mar,
Sei também quanto é preciso, pá.
Navegar, navegar.”

Uma vez mais, Lula reforça a comparação entre Portugal e Brasil nessa época. Enquanto Portugal se democratizava, o Brasil ainda enfrentava a ditadura, com toda a sua repressão. O próprio Presidente brasileiro seria preso pela polícia política brasileira, ironicamente no mês de abril de 1980, pelo seu papel como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos. Assim, não é de espantar que Lula queira colar a herança do combate ao Estado Novo em Portugal com o combate da esquerda brasileira durante a ditadura militar. E que destaque como em 1974 muitos brasileiros suspiravam para que algo semelhante ao 25 de Abril ocorresse no Brasil, evocando a música já tão citada ao longo desta visita de Estado: “Tanto Mar” de Chico Buarque, onde se diz que se queria “estar na festa, pá, com a tua gente”.

A canção “Grândola, vila morena”, de José Afonso, também embalou a nossa luta no Brasil. Gradualmente, fomos ampliando a participação do povo na política. Passo a passo, revitalizamos o movimento sindical, construímos um partido de base popular, encerramos os governos militares, promulgamos nossa “Constituição Cidadã”, realizamos a primeira eleição direta para Presidente depois de 29 anos e, logo, elegemos o primeiro Presidente de origem operária e a primeira Presidenta de nossa História.
Ainda assim, a democracia no Brasil viveu recentemente momentos de grave ameaça. Saudosos do autoritarismo tentaram atrasar nosso relógio em 50 anos e reverter as liberdades que conquistamos desde a transição democrática. Os ataques foram constantes. Os irmãos portugueses assistiram a tudo, preocupados com a possibilidade de que o Brasil desse as costas ao mundo.

Mas se houve Chico Buarque no discurso, também teria de haver a evocação a um cantor português, com a memória da “Grândola, Vila Morena” de Zeca Afonso — delicadeza semelhante à que o presidente da AR, Augusto Santos Silva, tinha feito no discurso anterior, citando Clarice Lispector, mas também Alberto Caeiro. E dos cumprimentos educados e referências culturais, Lula passou à política pura e dura. Sem nunca referir o nome de Jair Bolsonaro, deixou claro que considera que o governo do seu antecessor chegou a colocar em risco a redemocratização do Brasil. A “grave ameaça”, apontou, foi corporizada no saudosismo do regime bolsonarista pelo regime militar e naquilo que apelidou de reversão das liberdades conquistadas. Bem como a postura do país na cena internacional, que Lula tem sublinhado várias vezes ter sido beliscada pela presidência Bolsonaro. Nada melhor do que voltar a Chico Buarque, que em “Roda Viva” canta como “a gente quer ter voz ativa” para mandar no seu próprio destino — mas resta saber se a roda viva da diplomacia internacional não “carrega o destino” do Brasil “para lá”.

Amigas e amigos,
A notícia que lhes trago é que as forças democráticas brasileiras demonstraram sua solidez e resiliência.
Tenho viajado o mundo para reencontrar nossos parceiros. E tenho reafirmado que o Brasil que todos sempre conhecemos voltou à cena internacional.
Um país que não aceita que o seu povo passe fome e que tem consciência de sua responsabilidade na segurança alimentar mundial, pela diversidade e dimensão de seus recursos naturais.
Um país que reconhece na proteção do meio ambiente um dos maiores desafios contemporâneos, e que retoma sua trajetória de forte compromisso com o desenvolvimento sustentável e o enfrentamento da crise climática.
Um país preparado a contribuir com a transição energética global, graças a uma matriz maioritariamente renovável e um enorme potencial de crescimento em energias limpas.
Um país empenhado na redução das desigualdades em todas as suas dimensões, na luta contra o racismo e a violência de género, e na proteção dos nossos povos originários.

Lula passa a enumerar as prioridades do seu programa de governo. Um Brasil que “voltou à cena internacional” — principal mensagem a passar quando está no estrangeiro —, mas não só. O Presidente brasileiro quer ter um papel para reduzir a fome no país, enfrentar a crise climática, reduzir desigualdades e lutar contra o racismo e violência de género, bem como proteger as populações indígenas.

Senhoras e senhores,
O mundo tem enfrentado múltiplas crises nas últimas duas décadas.
Temos visto o recrudescimento de ideologias extremistas, impulsionadas pela ditadura dos algoritmos. Elas reduzem o espaço para o diálogo e a empatia, propagam o ódio e constrangem a expressão de nossa humanidade.
Temos visto o aumento da desigualdade, da pobreza e da fome. A crise climática tem-se agravado.
Mais recentemente, tivemos de enfrentar a pandemia de Covid-19 e, paralelamente, fomos atacados pelos vírus da anti-ciência e do desprezo pela vida humana.
No Brasil vivemos a consequência trágica de demagogos, negacionistas durante a pandemia. 700 mil brasileiros morreram vítimas do Covid. Metade dessas mortes poderiam ser evitadas não fossem as fake news, o atraso na obtenção de vacinas e a negação da ciência feita pela extrema direita no meu país.
Aqui na Europa, políticos demagogos que dizem não serem políticos, negam os benefícios conquistados no continente em décadas de paz, cooperação e desenvolvimento dentro da União Europeia. Eu considero a integração resultante da União Europeia um património democrático da humanidade. E eu vi no Brasil, a consequência trágica que sempre acontece quando se nega a política, se nega o diálogo.

De seguida, vem o diagnóstico sobre o perigo da ascensão das ideias que Lula considera extremistas, como ocorreu no Brasil e, diz, está também a ocorrer na Europa. Mais uma vez, sem mencionar Bolsonaro, o Presidente critica o antecessor. Por um lado, denuncia “a ditadura dos algoritmos” que impulsiona essas ideias, numa referência clara ao combate político (e não só) nas redes sociais, que tanto se fez sentir ao longo da eleição presidencial brasileira, tendo levado à intervenção direta da Justiça — com decisões desfavoráveis tanto à campanha de Bolsonaro, como à de Lula. Por outro, o foco principal foi no “negacionismo” da ciência durante a pandemia de Covid-19, culpando o antecessor por “metade” das 700 mil mortes no Brasil pela doença — sublinhando o atraso na disponibilização das vacinas. Agora, diz, o combate também é feito na Europa, onde “demagogos que dizem não serem políticos” põem em causa o projeto europeu. Lula assume-se como um europeísta, apelidando a União de “património democrático da Humanidade”.

Meus amigos e minhas amigas,
Temos assistido no mundo ao aumento das tensões geopolíticas.
Essa constelação de desafios nos obriga a unir forças. Conversei muito com nossos irmãos portugueses nesses últimos três dias. De todos recebi palavras de solidariedade e encorajamento. A todos agradeci o apoio incondicional e a fraternidade que demonstraram ao Brasil.
Portugal é o desenho mais antigo do mapa da Europa. Um país com nove séculos de História tem muito a ensinar ao mundo. Retorno aqui ao exemplo do 25 de Abril. A Revolução dos Cravos não marca apenas o começo da jornada de Portugal rumo à liberdade e à democracia. Marca também o fim da trajetória de Portugal como potência colonial. O 25 de Abril nos mostra que uma potência militar que enfrenta um povo em luta pela liberdade jamais poderá vencê-lo. Poderá, no máximo, prolongar o conflito indefinidamente e assim tornar mais custoso o inevitável acerto de contas com sua própria população.

Um apelo à “união de forças” com os “irmãos portugueses” para enfrentar estes desafios, é o repto deixado por Lula. Com o sublinhado de que Portugal pode ter a ensinar ao mundo, no que diz respeito ao seu processo da descolonização africana no pós-25 de Abril. E com uma primeira referência velada à situação na Ucrânia, dizendo Lula que o 25 de Abril é a prova de que “uma potência militar que enfrenta um povo em luta pela liberdade jamais poderá vencê-lo”. Não se pense, porém, que isto significa um apoio total e declarado à Ucrânia — afinal, oficialmente o Brasil continua a definir-se como um país neutral no conflito. O exemplo serve, sobretudo, para enfatizar a outra mensagem relativa ao conflito que Lula tem tentado trazer ao longo da visita a Portugal: a de que é preciso negociar a paz, caso contrário há o risco de a guerra se eternizar.

Quem acredita em soluções militares para os problemas atuais luta contra os ventos da História. Nenhuma solução de qualquer conflito, nacional ou internacional, será duradoura se não for baseada no diálogo e na negociação política.
O Brasil compreende a apreensão causada pelo retorno da guerra à Europa. Condenamos a violação da integridade territorial da Ucrânia. Acreditamos em uma ordem internacional fundada no respeito ao Direito Internacional e na preservação das soberanias nacionais.
Ao mesmo tempo, é preciso admitir que a guerra não poderá seguir indefinidamente. A cada dia que os combates prosseguem, aumenta o sofrimento humano, a perda de vidas, a destruição de lares.
As crises alimentar e energética são problemas de todo o mundo. Todos nós fomos afetados, de alguma forma, pelas consequências da guerra.
É preciso falar da paz. Para chegar a esse objetivo, é indispensável trilhar o caminho pelo diálogo e pela diplomacia.

Eis que finalmente Lula se pronuncia claramente sobre o tema que marcou a sua visita de Estado: a posição do Brasil face à guerra na Ucrânia. E, aqui, tenta dar uma no cravo e outra ferradura, não revertendo totalmente a sua posição (em que equivaleu as posições de Rússia e Ucrânia), mas suavizando o tom. Nada que surpreenda ao fim de tantos dias em Portugal, onde Lula recebeu recados — basta lembrar como Marcelo Rebelo de Sousa sublinhou que o Brasil deve seguir um multilateralismo que defenda “os princípios do Direito Internacional” e “a integridade territorial” — e certamente acertou agulhas. Agora, a posição do Brasil é a de que se deve respeitar esse mesmo Direito e preservar “as soberanias nacionais”. A “violação da integridade territorial da Ucrânia” é condenada. Mas não há uma palavra direta de acusação à Rússia e é deixado o alerta de que “a guerra não poderá seguir indefinidamente” e de que “é preciso falar de paz”. Acreditar numa solução militar para resolver o conflito, diz, é lutar “contra os ventos da História”. Uma posição claramente contrastante com a política europeia de armamento das forças ucranianas.

Senhoras e senhores,
Assim como os portugueses, nós brasileiros assumimos um compromisso absoluto com o multilateralismo. Esse compromisso nos força a reconhecer que as ferramentas da governança global se têm mostrado inadequadas para fazer frente aos desafios atuais.
O Conselho de Segurança das Nações Unidas encontra-se praticamente paralisado. Isso ocorre porque sua composição, determinada ao fim da Segunda Guerra Mundial, 78 anos atrás, não representa a correlação de forças do mundo contemporâneo.
Por isso defendemos uma reforma que resulte na ampliação do Conselho, de maneira a que todas as regiões estejam representadas de forma permanente, de modo a torná-lo mais representativo em seu processo deliberativo e mais eficaz na implementação de suas decisões.
Estamos retomando a tradição diplomática do Brasil e renovando nosso compromisso com as instituições multilaterais. Apoiamos o ingresso da CPLP como membro observador da Conferência Ibero-Americana, iniciativa que aproxima duas importantes esferas de diálogo e de concertação. Seguimos, além disso, empenhados em avançar nas tratativas sobre o acordo entre o Mercosul e a União Europeia, criando vínculos ainda mais robustos entre nossas duas regiões.

O Presidente brasileiro parte de seguida para outros dos pontos que têm ocupado grande parte desta viagem: a defesa da campanha para tornar o Brasil membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, num reflexo da reorganização de uma nova ordem mundial. Ideia que não é nova entre os brasileiros, líderes de fortes contingentes diplomáticos — não por acaso, o Brasil tradicionalmente abre a Assembleia-Geral da ONU —, que Lula espera ressuscitar na era pós-Bolsonaro. Mas a ordem internacional proposta não é necessariamente alinhada com a da política externa portuguesa. Há muito que o Brasil defende um papel mais ativo dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia, África do Sul e China) nas instituições internacionais, eixo atualmente de difícil encaixe na Europa devido ao conflito na Ucrânia. Por isso, o objetivo é focar nos entendimentos possíveis: acordo entre União Europeia e Mercosul, por exemplo, e defesa de lugar permanente do Brasil no Conselho de Segurança — medida já apadrinhada pelo Presidente português ao longo desta visita.

Sei que essa nova jornada que iniciamos não será fácil. Mas o Brasil, assim como Portugal, é um país obstinado. Obstinado pela paz, obstinado pela justiça, obstinado pela inclusão social, obstinado pela liberdade.
Nessa nova jornada, tenho a satisfação de poder contar com o apoio dos irmãos portugueses, com quem continuaremos a caminhar, orgulhosamente juntos, em prol da construção de um mundo mais justo, mais livre e mais próspero.

Que Deus abençoe Portugal, abençoe o Brasil e viva a liberdade e a democracia. E não ao fascismo.

O discurso terminaria sem surpresas, não fosse a realidade intrometer-se. Havia mais uma referência discreta ao dia, com um compromisso de Portugal e Brasil seguirem “orgulhosamente juntos”, por oposição ao Portugal de Salazar “orgulhosamente só”. O discurso de Lula da Silva na Assembleia da República, porém, foi interrompido algumas vezes pelos fortes protestos da bancada parlamentar do Chega, que não só segurou cartazes que diziam “Chega de corrupção” e “Lugar de ladrão é na prisão”, como fez várias pateadas. Por isso, o Presidente brasileiro não quis deixar passar em branco a situação e acrescentou duas frases finais ao discurso inicialmente previsto. Os pedidos para que “Deus abençoe” Portugal e o Brasil talvez até agradassem aos deputados do Chega, mas provavelmente o mesmo não pode ser dito do “não ao fascismo” com que Lula rematou o discurso e que — como comprovaram as declarações que o Presidente brasileiro fez aos jornalistas à saída — os tinha como claros destinatários.