Marcelo Rebelo de Sousa contou uma conversa recente com dois populares “daqueles muito terra-a-terra” que lhe disseram: “Vá puxando as orelhas ao Governo, mas nada de eleições”. A indicação vai ser seguida, mas com uma garantia de curto-prazo. Por muito mau que seja o inquérito parlamentar à TAP, o Presidente da República já decidiu que não vai dissolver a Assembleia da República em 2023. Mas abre a porta à dissolução e novas eleições depois das Europeias de 2024. O Presidente disse esta segunda-feira, em Murça, que “o Governo não deve dar por garantido que a maioria absoluta é um seguro para não haver dissolução” até 2026.

Uma fonte próxima do chefe de Estado diz que esta é uma “frase-chave“, que funciona como “uma espada em cima da cabeça de António Costa”. “O Presidente nunca tinha dito isto assim. Nem [Mário] Soares durante o cavaquismo disse nada parecido. É fortíssimo”, regista a mesma fonte. Que acrescenta: “O que o Presidente quer dizer é que, ou o Governo inverte o ciclo, ou há eleições no segundo semestre de 2024. Não pode ser logo em janeiro porque há Europeias, mas logo a seguir o Presidente convoca eleições”.

O antigo líder do PSD, Luís Marques Mendes, também tinha dito no domingo à noite, no seu programa semanal na SIC, que a degradação do Estado tem limites e que, por isso, se podia “tornar inevitável que haja eleições lá para 2024.”

A ideia de dissolução da Assembleia da República foi lançada na última quinta-feira, 6 de abril, pelo antigo primeiro-ministro Pedro Santana Lopes, que disse que “o Presidente deve estar a ponderar seriamente essa possibilidade”. Isto porque, dizia o antigo chefe de Governo, “o que se passou é grave demais.” A 9 de abril, um outro ex-líder do PSD, Marques Mendes disse que “por menos” o próprio Santana Lopes foi demitido por Jorge Sampaio.

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Marcelo sem pressa: as razões para não dissolver AR em 2023

O Presidente da República admite que há “um clima” de pressionar a dissolução — que diz que já existiu em novembro e em fevereiro –, mas lembra a conjuntura:”Uma guerra, que continua, uma crise financeira económica agravada por essa guerra, uma inflação muito alta e juros dos empréstimos para a habitação muito altos”.

O outro argumento são os fundos comunitários. Para Marcelo existe uma “situação complicada”, apesar de o PRR começar a “acelerar a execução”. Além disso, adverte o Presidente, Portugal vai ter mais dinheiro do que o que foi definido em 2020 e tem “a obrigação de gastar este dinheiro”. É também por isso, diz, que “não faz sentido neste ano, que é decisivo em matéria de fundos europeus, de quando em vez haver a ideia de o Presidente dissolver, por estar em causa o normal funcionamento das instituições, e ir para eleições. É fazer as contas, uma eleição significa quatro meses de paragem.”

Já mais documentado do que uma simples visita aos gelados Santini ou à Portugália (método que utilizou no passado para medir a temperatura ao “povo”), Marcelo garante que os portugueses não querem a dissolução, numa alusão a resultados de estudos de opinião. “Os portugueses têm dito mais o menos o mesmo nas sondagens todas: acham que a situação é difícil, que não há alternativa neste momento, que não deve haver dissolução a juntar à crise política.”

O outro a argumento é assim o da inexistência de alternativa e é o que mais enfurece o PSD de Luís Montenegro. É que Marcelo diz que “do lado da oposição, há o grande desafio de juntar os números [das sondagens], que tudo somado dá 50% e transformá-los numa alternativa política. Que ainda não existe.” E, no rol dos avisos a Montenegro, acrescenta que “a oposição não pode dar por garantido que o presidente empurrado, empurrado, há-de um dia dar a dissolução.” E reitera ser um chefe de Estado “independente”: “Um presidente não está no bolso do Governo, nem no bolso da oposição”.

O Governo poderá sobreviver à turbulência na TAP e qual o futuro político de Pedro Nuno Santos? São perguntas que fazemos no novo episódio do podcast “A História do Dia”. Ouça aqui.

As diferenças para Sampaio vs. Santana de 2004

Nos últimos dias são várias as comparações entre o Governo de António Costa e o de Pedro Santana Lopes, que Jorge Sampaio fez cair em 2004. Marques Mendes disse que “por menos que isso, Sampaio demitiu Santana” e que os “episódios [relacionados com a TAP] são mais graves do que os que levaram” a essa decisão do então Presidente.

Marcelo Rebelo de Sousa fez questão de diferenciar a atual situação dessa anterior: “É tudo diferente no caso em particular. Sampaio estava no fim do mandato”. Neste caso, Marcelo sugere que Sampaio estava mais solto por estar já no final do mandato. Na verdade, Sampaio dissolveu a Assembleia em dezembro de 2004 e seria Presidente até 9 de março de 2006. Ou seja: a um ano e quatro meses do fim do mandato. A Marcelo ainda faltam quase três anos.

No jogo das diferenças, o Presidente — reforçando os argumentos que já tinha dado — lembra que “não havia guerra, não havia os fundos europeus. Logo nisso, é outro mundo”. Marcelo destaca ainda que ao contrário de Santana — que tinha sido escolhido pelo PSD, mas não tinha sido submetida a sufrágio — tinha menos legitimidade política do que agora tem Costa: “Acontecia [no tempo em que Sampaio] que a maioria era liderada por um primeiro-ministro que não tinha votos. Aqui o primeiro-ministro tem votos.”

Marcelo marca ainda outra diferença quando diz que, na altura, “havia um partido hegemónico à esquerda, que era alternativa óbvia [o PS]”. E volta a reiterar: “Neste momento, não há essa alternativa.” O Presidente utiliza assim, mais uma vez, as sondagens e a falta de organização da direita (PSD não admite coligar-se com o Chega) como outra diferença para 2004.

‘Bomba atómica’: o poder de que Marcelo não abdica

O Presidente da República tem sido um defensor de que o PS não desperdice a “vantagem” de ter maioria absoluta. Mas, desde que estes problemas mais constantes começaram, na segunda metade de 2022, tem feito questão de dizer que não abdica do poder presidencial de dissolver a Assembleia da República.

Quando completou o sétimo ano de mandato, a 9 de março, disse, em entrevista ao Público e à RTP, que sempre defendeu “o cumprimento de legislaturas”, lembrando que até vinculou o mandato do atual Governo à liderança de António Costa (avisando que haveria eleições se saísse para a Europa em 2024). Apesar disso, deixou um aviso: “Não me peçam para dizer que renuncio ao poder de dissolver. Não renuncio. Não renuncio neste sentido: habituei-me a nunca dizer nunca. Porque os factos, a realidade, às vezes são mais imaginativos do que a nossa imaginação.”

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Também nas cerimónias do 5 de outubro de 2022, num discurso em que fez paralelismos com 1922, Marcelo Rebelo de Sousa fez questão de lembrar — perante uma maioria de deputados do PS — que Portugal tem uma “democracia em que milhões de pessoas votam diretamente no Presidente da República e o Presidente dispõe do poder de vetar leis e de dissolver o Parlamento“.

O poder da dissolução está lá. E Marcelo não abdica de o lembrar.