A conversa, agendada para o passado sábado, era para ter acontecido no stand da Lego na Comic Con (retratado nas fotografias deste artigo), espécie de festival de cultura popular com conferências, pavilhões, brinquedos e muita gente mascarada dos seus super-heróis e figuras pop favoritas, que este ano mudou de recinto, da Exponor de Matosinhos para o Passeio Marítimo de Algés, em Oeiras. A música que se ouvia com elevado volume nos altifalantes, contudo, fez com que a entrevista acontecesse no exterior do pavilhão improvisado em que estava o stand, numa pequena esplanada ao ar livre.
Marcos Bessa tinha acabado de participar num painel inserido no conjunto de conversas de “A Cave do Markl”, blogue dinamizado pelo humorista e radialista português Nuno Markl, grande divulgador da cultura pop norte-americana em Portugal. Markl não o convidou por acaso, numa sessão em que estiveram também o humorista César Mourão, o radialista Diogo Beja e a cantora Joana Espadinha. O autor de “O Homem que Mordeu o Cão” e criador da série “1986” é muito um fã assumido do trabalho de Marcos Bessa. Nuno Markl, um fã de construções com peças Lego, chama-lhe mesmo “o Cristiano Ronaldo da Lego”, como Marcos Bessa revelou entre risos ao Observador.
Bessa é o senior designer (ou designer sénior) da empresa de brinquedos dinamarquesa. Foi o primeiro português a desenhar conjuntos Lego no mercado, tendo estado fortemente envolvido nos últimos anos no desenvolvimento de trabalhos como a casa dos Simpsons, a série Lego Superheroes ou a construção “Castelo da Disney”, um conjunto de mais de quatro mil peças que Marcos Bessa concebeu e que deu à Lego e lhe deu a ele, enquanto designer, um reputado prémio Tony, considerados na indústria como uma espécie de “Óscares dos brinquedos”.
Na entrevista que, segundo Bessa, serviu também de “preparação” à apresentação que faria a seguir na Comic Con, sobre o seu trabalho na Lego, o designer português falou do “sonho” que tinha em criança de trabalhar nesta empresa de brinquedos, da ida para a Dinamarca sem certezas de quanto iria ganhar ou de que tipo de emprego teria, da sua vida na Dinamarca nos últimos anos e de como é ganhar a vida “a construir com peças Lego, a brincar com Lego — mas a brincar com responsabilidade, prazos, orçamentos e janelas a que temos de obedecer, com uma série de restrições e regras”.
Nasceu em Vilela, localidade de Paredes com pouco mais de cinco mil habitantes. Construir com Lego era uma brincadeira habitual de infância?
Era. Começou tudo através de algumas prendas que recebi no Natal, dos meus pais. Ou do Pai Natal, na altura (risos). E recebi algumas caixas de Lego. Lembro-me que tinha 3, 4 anos quando brinquei com as primeiras peças de construção, que não eram peças oficiais Lego, eram peças semelhantes que a minha avó tinha numa loja em que as vendia. Lembro-me de brincar com esses blocos de construção. Desde muito cedo os meus pais perceberam que passava muito tempo à volta daqueles blocos, que gostava bastante de me distrair com eles. Daí ter passado rapidamente para as peças Lego: aos 5, 6 anos compraram-me as primeiras caixas de peças Lego System. Na altura eram chamadas assim, hoje é o que conhecemos como peças normais Lego. Recebi algumas caixas em aniversários e no Natal. Coisas muito pequenas, porque Lego sempre foi — muita gente ainda se queixa hoje — um brinquedo mais caro do que muitos outros. Por isso, tinha poucas peças mas passava muitas horas à volta daquilo. E o interesse foi ficando. O desejo de trabalhar naquilo foi tomando forma, fui dizendo que gostava era de trabalhar para a Lego, na altura sem fazer ideia onde era a Lego, o que é que era o trabalho na Lego… sabia apenas que devia haver alguém que criava aquilo. E eu queria ser uma dessas pessoas.
Recorda-se de alguma construção em particular que lhe tenha ficado na memória?
Sim, os dois primeiros sets [construções temáticas] que me lembro de receber. Não sei dizer exatamente o nome ou a referência do produto, mas sei que uma era uma torre de um mago, montada no topo de uma rocha, que se abria e revelava alguns detalhes e acessórios no interior. Tinha uma figura azul, com um chapéu de mago e com uma varinha mágica. Era uma coisa pequena mas achava fascinante, porque tinha tantos detalhes e tantas possibilidades e era algo que podia desmontar e reconstruir de mil e uma maneiras. O outro tinha um rio, uma casa na montanha, um jipe, uma ponte e umas árvores. Também não era muito grande mas tinha tantos ingredientes, tantos cenários, tantas histórias, tantas construções diferentes… Para mim não havia brinquedo melhor. E não digo isto porque trabalho para a Lego, sentia verdadeiramente que não havia outro brinquedo que me permitisse expressar-me e criar de uma forma tão simples e tão acessível.
Há uma faixa etária que se costuma associar ao interesse por Lego. Consigo o interesse manteve-se depois da infância? Ou também diminuiu?
Não diminuiu, foi abafado. É uma coisa que infelizmente acontece a muita gente e a muitas crianças, justamente devido a essa ideia de que Lego é apenas um brinquedo e é um brinquedo apenas para uma certa idade. Não podiam estar mais errados e as crianças são as primeiras a saber disso. Infelizmente, depois os pais de certa forma esquecem-se, à medida que crescem, e abafam um bocado a vontade dos miúdos expressar-se, criarem e darem asas à liberdade e à criatividade. Porque há muito poucas coisas que se fazem hoje que estimulam tanto os miúdos a criar e a imaginar. Hoje as crianças passam imenso tempo nos iPads, telefones e jogos de computador. Não digo que não haja valor nessas atividades, mas há tanto mais que se pode fazer com lápis de cera, com papel, com peças Lego, coisas que são muito mais tangíveis, muito mais “hands on” [de construir e brincar manualmente]. Acho que infelizmente perde-se muito com os pais que acreditam que Lego é apenas um brinquedo.
Respondendo: deixei de construir com peças Lego quando tinha 12 ou 13 anos, que foi quando comecei a dar ouvidos às pessoas à minha volta, que me diziam que já não tinha idade para brincar com aquilo, que tinha era de fazer outras coisas, jogar à bola, por exemplo. De facto, comecei a acreditar nisso, que deveria estar a fazer outras coisas. E fui deixando de lado o meu cesto com peças Lego, que eventualmente foi para o sótão e ficou esquecido uns anos. Voltei a pegar nele aos 18 anos, curiosamente quando atingi a maioridade e alguma independência, embora ainda estivesse a viver com os meus pais. Fui para a faculdade e, de uma forma poética, reencontrei o Lego através de um catálogo. Vi as construções que estavam à venda e tudo à volta, porque os catálogos na altura criavam cenários enormes em peças Lego, com os produtos colocados lá pelo meio. Fiquei fascinado e deu-me vontade de voltar a sentir as peças na mão e de voltar a construir. Fui pegar no cesto que estava no sótão e nas peças que estavam lá, cheias de pó, velhinhas e mastigadas, porque usava os dentes para tirar as peças — ninguém deve fazer mas eu fazia em miúdo, não tinha aquelas peças separadoras que agora vêm com muitos conjuntos. Peguei nas peças e voltei a construir.
Quando escolhe o caminho da engenharia informática, por volta dessa altura em que recomeça a construir Lego, que ideia é que tinha para o futuro?
Com o afastamento que tive de Lego depois dos 12 ou 13 anos, aquele sonho de querer trabalhar naquilo passou para segundo plano, terceiro, quarto… fui dando espaço a outras atividades e preferências. Sempre fui muito dados a artes: sempre gostei de cantar, de dançar, de representar, de escrever, de encenar, de dirigir, de fazer música. Tudo o que envolvia expressividade e criatividade, estava lá e fazia, fosse nas oportunidades que surgiam na escola fosse nas oportunidades que surgiam na minha vila, em que cresci, em atividades recreativas, de grupos — escuteiros e por aí fora. Andava sempre metido em tudo o que era possível. Esses gostos foram ganhando mais peso na minha vida e dando aso a outros sonhos. Comecei a pensar: gostava de ser ator, gostava de ser cantor, gostava de escrever um livro, gostava de fazer filmes. Com isso veio outro desafio: convencer os meus pais a seguir uma carreira artística. Também não teve sucesso [ri-se]. Eles queriam que seguisse algo mais seguro, que me desse um futuro com mais certeza. Sabíamos, ainda hoje sabemos, que a vida de artista é sempre incerta, hoje há trabalho mas amanhã não há, pode-se ganhar bem se se tiver sorte e for famoso mas também se pode estar a mendigar para conseguir pagar uma renda, um carro, o que for. Os meus pais queriam que tivesse uma carreira mais realista e foi por isso que explorei outras opções. Tentei perceber que outras coisas das atividades que faço e gosto me poderiam dar alguma garantia. A informática e a tecnologia eram áreas pela qual tinha interesse e curiosidade, daí ter seguido engenharia informática.
Para fazer o quê?
Trabalhar na Pixar, fazer cinema de animação, fazer videojogos… estava sempre a sonhar alto.
O curso foi bom? Valeu a pena?
(Faz uma pausa e ri-se) Fiz só a licenciatura, embora o curso tivesse mestrado integrado. Felizmente não fiz os cinco anos. Ao fim dos três anos já estava um bocado desmotivado, para ser sincero. Acho que é o que se passa com muitos cursos na faculdade: há muita teoria, muitas disciplinas que estão mais ou menos ligadas a um ramo em que podes estar ou não interessado. Como tinha uma visão muita específica do que queria fazer, os três primeiros anos, que são o tronco comum [da engenharia informática], foram-me matando o entusiasmo, porque estava a demorar muito até chegar à fase em que poderia escolher cadeiras que mais interessantes para o percurso que queria fazer. Ao fim do terceiro ano decidi fazer uma pausa, queria ganhar alguma experiência profissional, queria experimentar o que era o mercado de trabalho e reencontrar-me um pouco, perceber se era aquilo que queria fazer.
Como é que se dá a mudança para a Dinamarca? Não foi muito depois disso.
Pois, felizmente, ao mesmo tempo, à medida que me estava a preparar para os exames finais do terceiro ano, a Lego colocou um anúncio na internet à procura de designers. Pensei: se calhar… Porque ao longo dos três anos tinha voltado a construir com Lego, a comprar caixas Lego, tinha-me juntado a uma comunidade de fãs de Lego em Portugal, a comunidade 0937, e tinha começado a ir a eventos de Lego, a exposições, a participar em competições online. E o bichinho que tinha sido adormecido voltou a acordar, mas a acordar com uma força… a vontade de voltar a saber como seria trabalhar na Lego, que profissão é que isso seria, voltou. Comecei a procurar saber e quando ao fim do meu terceiro ano a Lego colocou esse anúncio, já sabia que era na Dinamarca, já sabia mais ou menos o que era o trabalho de Lego designer e estava certo que deveria tentar, fosse depois de acabar o mestrado ou noutra altura. Porque aquele sonho de miúdo de repente voltou ao primeiro lugar da lista de sonhos. Decidi arriscar e candidatar-me.
Em que ano é que respondeu a esse anúncio?
Em 2010. Tinha 21 anos, estava a fazer os exames de terceiro ano e pelo meio, enquanto estudava, quase sem tempo nenhum, fui preparando um portefólio e mandei um portefólio para a Lego para me candidatar. Não tinha experiência nenhuma de design em concreto, de forma profissional. Não tinha formação em design. Mas pensei: gosto de construir com Lego, até acho que tenho algum jeito, talvez eles gostem de alguma coisa. Pelo menos essa primeira oportunidade poderia ser uma possibilidade de conhecerem um pouco o meu trabalho, verem o meu nome ali pelo meio das candidaturas e quem sabe numa segunda ou terceira oportunidade percebessem: este rapaz está realmente interessado nisto, está a tentar. Essa era a minha ideia, mas não foi preciso. À primeira a coisa resultou.
A resposta demorou quanto tempo a chegar?
Entreguei a candidatura mesmo no último dia, porque estava com os exames e foi mesmo à última, à português. Depois, passado perto de duas semanas contactaram-me para ir à Lego na Dinamarca prestar provas, para ir a um workshop.
Para que funções é que entrou na empresa?
Fui contratado como Lego junior designer. Comecei como, sei lá, o aprendiz num escritório. Tinha um mentor para me inteirar dos processos e perceber como é que a profissão realmente se desenrolava, que tipo de responsabilidades ia ter. Fui colocado numa equipa de oito designers, se bem me lembro.
De muitas nacionalidades?
Sim, era uma mistura imensa. Naquela equipa estavam pelo menos um colombiano, um dinamarquês, um inglês, um alemão, um polaco e eu português. São os que me lembro assim de cabeça. Obviamente que a língua comum era o inglês, a língua oficial dentro da Lego é mesmo o inglês, que é o que falamos todos. Essa equipa em que fui colocado estava a terminar na altura a coleção do Piratas das Caraíbas e estava prestes a começar a série “Lego Superheroes”, o tema que engloba os super-heróis da Marvel e da DC Comics. Curiosamente um mês antes de começar, na minha entrevista tinham-me perguntado que tema é que achava que faltava à Lego, o que é que ainda não tinha sido feito. Mencionei os super-heróis da Marvel, porque era um grande fã de super-heróis, particularmente do X-Men, do Homem-Aranha e do Iron Man. Sugeri porque achava que o tema incluía imensas personagens, imensas histórias. Quando soube que estava colocado na equipa que ia começar o projeto de super-heróis, fiquei nas nuvens. Já estava nas nuvens por entrar na Lego, ainda fiquei mais.
O dia de um designer da Lego varia muito consoante o projeto que está a fazer? Ou há uma rotina minimamente definida?
Varia muito. Temos vários projetos que têm restrições e particularidades muito específicas. Projetos como [construções de sets de] super-heróis, Simpsons ou Ghostbusters, em que estamos ligados a uma entidade que existe fora da Lego, seja um filme, um videojogo ou livros de banda-desenhada, e em que partimos de algo concreto como inspiração. Algo que pode ser o guião do filme em causa, imagens dos desenhos animados, por aí. Há uma base para criar algo, aí. Nem sempre nos limitamos necessariamente a uma transcrição direta mas usamos essa base como inspiração. Outras vezes criamos projetos completamente de raiz. Dentro da Lego, criou-se por exemplo um tema de ninjas que tinham uma missão clara, personalidades específicas e foram modelos criados à volta das histórias e aventuras que se queria contar. A mesma coisa, por exemplo, com o Lego City, em que tirámos inspiração do mundo real mas depois criámos tudo do zero, sejam as caracterizações de uma pizzaria, um museu, uma prisão, um hospital, daí haver pequenas coisas que variam de um projeto para o outro. Mas todos os projetos envolvem a mesma coisa: construir com peças Lego. Acho que é isso que fascina as pessoas fora deste universo de trabalho, porque imaginar que o nosso trabalho é brincar com Lego… e em muita parte é mesmo, mas brincar com responsabilidade, com prazos, com orçamentos, com janelas a que temos de obedecer, com uma série de restrições e regras que quando se está a brincar sem ser em trabalho não são uma preocupação. Mas para mim isso também torna este trabalho aliciante.
Há um lado curioso nessa construção de conjuntos: coloca artefactos e “pistas” que remetem para si. Já colocou em construções Lego uma pequena bandeira de Portugal, matrículas com as siglas do seu primeiro e último nome, com a sua idade de nascimento… qual é o objetivo, é para personalizar os projetos?
Na Lego temos uma cultura de que ninguém é super estrela. Embora às vezes sinta que aqui em Portugal sou colocado um pouco como super estrela da Lego, sobretudo pelo Nuno Markl [risos], é ele que me descreve como um Cristiano Ronaldo do Lego, como uma vez disse. Mas na Lego, na verdade, temos muito a cultura que isto é um trabalho tão colaborativo e de tanta gente que se desenvolve à volta de um produto que não é justo colocar uma cara ou um nome à frente de algo e dizer que essa pessoa é a autora, a responsável. Porque ela se calhar fez fez a parte mais visível e identificável daquilo, mas há tanta gente envolvida. É por isso que nos conjuntos não diz “desenhado por X ou Y”. Só muito raramente isso aconteceu. Aconteceu por exemplo no projeto Lego Ideas, que é um conceito diferente, com um fã a submeter ideias e um designer a trabalhá-las, transformá-las e tornar aquilo num produto oficial. Aí dá-se um pouco mais foco ao designer da Lego porque também se dá um pouco mais de foco ao designer fã que criou o conceito.
Por normalmente não haver essa atenção, não se dar um nome e uma cara a quem cria o produto, os designers sentiram se calhar um bocadinho a necessidade de colocar uma pequena assinatura ali e acolá, mais por diversão, para poder perguntar aos amigos: reparaste naquilo? Quando comecei na Lego o que mais se via era, nos conjuntos Lego City, as matrículas terem alguma relevância, ou por ter as iniciais do designer, ou as iniciais do seu filho, da mulher, do pai … era uma coisa fácil de colocar ali, ninguém ia reparar muito e quem conhecia a pessoa apanhava a referência. Tentei começar a fazer o mesmo. Primeiro fi-lo nas matrículas, depois começou a ser um número especial que aparecia em mais do que um conjunto, depois uma bandeira escondida num outro set. Também noto que outros designers começaram a ganhar vontade de deixarem a sua assinatura e parece-me que hoje já é uma prática mais comum.
Há alguns projetos que lhe tenham dado um gozo especial a fazer? E quais é que foram os mais complicados, mais morosos?
Felizmente, acho que todos os conjuntos que tive em mãos trouxeram um desafio novo. Foi algo que tentei sempre procurar dentro da Lego: desafios novos. Quem me conhece sabe que tenho uma tendência de fazer mil e uma coisas, começar imensos projetos, mudar de interesses. Então tinha uma preocupação: será que me vou fartar disto e vou querer procurar outra coisa? Um trabalho na Lego é um bom trabalho, se calhar é muito difícil encontrar no mundo um emprego que seja equiparável. Imagino que trabalhar para a Google ou para a Pixar o possa ser e, se calhar, mesmo nestas grandes empresas não se tem as condições, a liberdade criativa e o relaxamento que se tem ao trabalhar numa empresa de brinquedos como a Lego. Pelo que conheço de outros colegas que vieram de empresas de brinquedos, de grandes marcas, não se encontra em muitos lados, o ambiente e a realidade são incomparáveis. Portanto, tinha medo de me aborrecer, não me queria aborrecer, queria ficar lá.
Para assegurar que não me aborrecia, fui sempre atrás de desafios novos. Por exemplo, criei o Helicarrier dos Avengers. Nunca tinha construído um conjunto tão grande e um conjunto que exigisse tanta engenharia, nas peças técnicas que suportavam a estrutura, no desenvolvimento da função das hélices rodarem sincronizadas… Outro desafio foi construir uma casa como a casa dos Simpsons, porque era um grande fã da série e passei dias a a rever episódios e a criar uma casa que pudesse ter os detalhes que as pessoas reconheciam da série mas ao mesmo tempo pudesse também oferecer espaço para se brincar e pudesse ser uma experiência boa de construção. Olhando para o meu portefólio na Lego, não vejo muitas coisas que sejam semelhantes e trabalhei em várias coisas. Também me tem dado oportunidade de conhecer bastidores de coisas de que gostava, ir a estúdios [de cinema], conhecer cenários, falar com artistas que estão por trás de tudo o que vemos, conhecer realizadores, ler guiões… Tem-me dado oportunidade de viver e realizar alguns sonhos.
[“A casa dos Simpsons” desenhada em Lego por Marcos Bessa:]
Quanto tempo é que demora conceber uma construção? Onde é que se vai buscar inspiração?
Curiosamente, falava nas visitas aos estúdios [de cinema] e comigo aconteceram sempre depois de fazer os sets. Muitas vezes as pessoas acham que vamos para lá para nos inspirarmos e até é, mas não para construir um produto em específico. A Lego defende que devemos estar inspirados todos os dias, porque é um trabalho que depende imenso da nossa criatividade, da nossa abertura de mente e do mundo que nos inspira à nossa volta. Daí que esteja aqui na Comic Con, é justamente porque há a vontade de me exporem a um ambiente que possa alimentar a minha inspiração e a minha criatividade, que me permita ver o que as outras marcas estão a fazer e ver do que é que as pessoas gostam, a que é que dão importância. Ir a estúdios e ver os sets de gravações acontece pelo mesmo motivo. Mas depois as construções…
Já desenhei sets em três, quatro dias — sobretudo brickheadz [figuras individuais em Lego, de que foi impulsionador]. Já aconteceram essas situações de ter de fazer as coisas rapidamente. Também já construí conjuntos que demoraram meio ano a um ano, conjuntos em que não estive a trabalhar constantemente, a toda a hora, mas em que trabalhava de forma regular. O tempo de desenhar um conjunto varia muito, depende do tamanho da construção, do tema que é, do contexto em que vai sair e do que inclui. Por exemplo, a casa dos Simpsons é relativamente grande mas foi relativamente simples de construir, demorou um mês, ao contrário do Hellcarrier dos Avengers, que por causa da complexidade técnica das peças e das hélices e da estabilidade estrutural que o modelo exigia demorou perto de meio ano até chegar a um resultado satisfatório.
Recorda-se de alguma reação mais curiosa a uma construção sua? De pessoas mais ou menos próximas.
Sigo muito as hashtags no Instagram ligadas à Lego e volta e meia no meu Instagram vou vendo fotografias de pessoas comuns, que publicam fotografias de alguma coisa que construíram, com os filhos, com os sobrinhos, com os irmãos. Isso vai-me mantendo ligado à realidade daquilo que estamos a fazer. Depois tenho a experiência de estar em contacto com o público, em eventos como a Comic Con. Felizmente tenho tido a oportunidade de visitar alguns eventos ao longo destes anos, que me têm permitido estar em contacto com as pessoas que realmente apreciam e tiram proveito do nosso trabalho. É uma experiência difícil de se descrever, porque eu era aquele miúdo com 8 ou 9 anos que dizia: eu quero trabalhar na Lego, eu quero criar isto. Na altura o sonho que tinha era muito egoísta, tinha-o porque adorava fazer aquilo, mas agora, sendo adulto e tendo responsabilidades, saber que o que me paga as contas é permitir que outras pessoas de todas as idades sintam aquilo que eu senti aos 8 ou 9 anos, saber o que isso é e a importância que aquilo teve para mim, é de uma satisfação e riqueza difíceis de descrever. Na Lego temos um mote: inspiring the builders of tomorrow [em português, a inspirar os construtores do amanhã]. Estamos a tentar inspirar quem vai ser o criador, o idealizador do amanhã, estamos a tentar inspirar os miúdos de hoje que crescem com Lego e que eventualmente serão os próximos cientistas, engenheiros, construtores, arquitetos do mundo. Muitos deles terão começado a pensar: e se eu criar isto? É uma responsabilidade grande, mas uma satisfação imensa.
Venceu um prémio Tony com o desenho que fez para o Castelo da Disney. Pergunto-lhe duas coisas, como é que esse projeto de mais de quatro mil peças se desenvolveu e se vvencer esse prémio era um objetivo que tinha há muito tempo ou se nunca o tinha tido em mente?
O prémio foi completamente inesperado. O castelo foi falado no escritório durante alguns anos até acontecer. Sobretudo nestes conjuntos maiores há sempre uma discussão à volta do mercado: será que há um mercado para aquele conjunto, um público que terá interesse e poder de compra disponível para comprar um conjunto de mais de quatro mil peças, que ter um preço significativo? Cá em Portugal acho que é quase um salário mínimo, não é brincadeira [ri-se]. Houve sempre ali uma discussão sobre se haveria interesse à volta deste tipo de produto.
Há um designer na Lego, o Jamie Berard, que era um dos meus ídolos quando estava fora da empresa e com quem agora trabalho [sorri]. Era um projeto de que ele gostava há muito e que tinha tentado materializar algumas vezes mas nunca tinha acontecido. Até que de alguma forma a conversa surgiu com a Disney — temos uma parceria com eles há muitos anos, uma parceria muito saudável –, que estava muito interessada em ter um produto que conjugasse Lego e Disney disponível nos parques Disneyland. Nessa altura o Jamie Berard estava assoberbado por outras coisas. Eu tinha acabado um projeto, estava disponível, vieram-me propor se estava interessado em fazer. Fiquei nas nuvens, porque sou um grande fã de filmes da Disney, cresci com montes deles. Vi aquilo como uma oportunidade de fazer mais uma coisa completamente diferente: pegar num dos maiores símbolos de uma das maiores empresas de animação do mundo e recriar aquilo em Lego. O processo foi semelhante aos outros. Imprimi fotografias do castelo da Cinderela do Parque Disney em Orlando e comecei a tentar recriar tudo com alguns detalhes em peças Lego. O que ditou a escala foi o portão, fiz o portão de maneira a que as figuras pudessem passar e de maneira a que conseguisse capturar o detalhe suficiente para ser reconhecível. A partir daí foi um processo de ajustar o resto e capturar o máximo de detalhes à escala mais adequada e aproximada possível.
E o prémio?
Não fazia ideia sequer… honestamente não conhecia bem estes prémios na altura. Sabia que já tínhamos ganho alguns no passado e alguém partilhou comigo que o castelo tinha sido nomeado. Fiquei super contente e depois alguém disse-me: olha, isto é os Óscares dos brinquedos nos Estados Unidos, é mesmo a sério. Fiquei contente, queria ganhar um Óscar desde miúdo, se calhar era este… [ri-se]. Depois saíram os resultados e recebemos de facto o troféu, que é uma peça com uma estrela e tal, toda XPTO, penso que de vidro, muito bonita. Está lá no meu escritório. Já esteve na minha secretária e vi-a há dias na secretária da diretora de projeto da altura. Ainda vou lá perceber porque é que lá está [ri-se]. Mas foi de facto o reconhecimento do trabalho, dentro da indústria dos brinquedos mas também do público, porque aquilo tem uma vertente de voto do público. É sempre bom ter-se reconhecimento.
O que é que estava a fazer quando soube da vitória?
Estava em frente ao computador, vou admitir. Estava à espera que saíssem os resultados, a fazer “refresh” na página de anúncio [ri-se]. Depois lá saíram os resultados e fiquei super contente.
Quem é que foram as primeiras pessoas com quem conversou depois disso?
Na altura, pensei: estou contente mas isto para o resto das pessoas isto não interessa. Devo ter dito logo, não sei, à minha mãe e ao meu pai, acho. Disse-lhes: ganhei este prémio, fiquei contente. Depois no trabalho, estava com a equipa que esteve envolvida e parabenizámo-nos uns aos outros pelo prémio. Mas ficou por aí, não mudou nada. Foi um bom reconhecimento, um bom momento.
E mudando de assunto, como é que é viver e trabalhar na Dinamarca?
Em termos profissionais não tive nenhum trabalho sério noutro lado. Até mudar para a Dinamarca tinha sido estudante a tempo inteiro e fui fazendo alguns part-times pequenos: desenhava mobiliário para o meu pai, que tinha uma empresa de mobiliário, desenhava cozinhas e fazia simulações 3D de cozinhas para uma outra empresa de Vilela. Fiz algum trabalho de design gráfico, também, para pequenas empresas e serviços, de logótipos a branding. Fazia isso porque gostava e achava piada. Fui fazendo alguns biscates desse género aqui e ali, que me davam dinheiro para as despesas do dia a dia. Para pagar Lego, muitas vezes… Mas nunca tive uma experiência de ter um patrão e horário fixo [noutro país], por isso não tenho grau de comparação.
Tenho consciência, por conversar com outras pessoas, que estou numa empresa e situação privilegiadas. Viver na Dinamarca também é um privilégio, porque é um país onde a sociedade e o governo andam de mãos dadas e onde, de forma geral, acredita-se num bem comum, num interesse comum. Em Portugal acho que há muitas vezes um interesse demasiado individualista, quase uma regra de uma pessoa procurar desenrascar-se sozinha, mas sem querer saber do resto ou dos outros. Na Dinamarca, por exemplo, pagam-se imensos impostos, mas as coisas funcionam: a educação é paga [pelo governo], os serviços de saúde também e não tens de te preocupar se vais ter acesso ou não a um tratamento. As ruas estão em condições, sem buracos, os salários permitem-te viver bem, teres a tua casa, o teu carro e ires de férias… Há uma realidade de trabalho que defende que é importante ir de férias! Nós temos 25 dias de férias normais, comuns, e depois quase todas as empresas oferecem cinco dias extra. Ao todo, acabamos por ter 30 dias de férias distribuídos pelo ano.
A realidade de trabalho e o horário são flexíveis. Há alturas em que estou mais ocupado e tenho mais coisas para entregar e se calhar acabo por trabalhar um pouco até mais tarde, num dia ou noutro, mas na semana seguinte se já estou mais relaxado e há menos coisas para fazer se calhar saio a seguir ao almoço. De forma geral as pessoas saem do trabalho por volta das 15h30, 16h. Também começam cedo. Trabalhamos 37 horas por semana, regra geral. Lembro-me que há oito anos, quando comecei a trabalhar lá, as lojas na rua fechavam todas às 16h. Fechavam porque os lojistas tinham o mesmo direito de ir para casa e ter o seu tempo de família. Questionava-me: mas quem é que faz compras, é só pessoas que não vão trabalhar? Como é que vou às compras? Mas pronto, se precisas de ir às compras, tiras a tarde e vais às compras, pronto. E no outro dia trabalha-se até mais tarde se for preciso. Hoje já é um pouco diferente, mas ainda é uma realidade muito distinta.
A mudança foi fácil? A família aceitou bem a ida para a Dinamarca?
Eles viram sempre Lego com alguma desconfiança, por estar a gastar dinheiro em peças. Uma coisa para a qual já aos 13 anos não tinha idade, segundo diziam… Foi um bocado difícil para os meus pais perceber aquele interesse, o esforço, tempo e dinheiro que eu dedicava àquele passatempo. Mas apesar disso, à medida que fui falando no assunto, foram-se apercebendo que era um interesse sério que tinha, que queria transformar aquilo de um passatempo num trabalho, numa profissão, numa carreira. Acho que na altura era difícil para eles imaginarem o que isso era, o que seria uma carreira na Lego. Quando a oportunidade surgiu, foram apanhados um bocado de surpresa porque não esperavam que realmente acontecesse.
Era como dizer que queria ser ator e fazer filmes ou novelas na televisão… quantas pessoas dizem que querem fazer e depois é muito difícil chegar lá? Mas de repente aquilo que vinha a dizer há três anos aconteceu: ofereceram-me um emprego na Lego. Na altura recebi a chamada de uma pessoa que entretanto foi meu chefe a dizer-me que tinha uma oferta de trabalho para mim. Nem sequer perguntei no telefonema o que é que ia ganhar, não fazia ideia. Sabia que tinha um emprego, apenas, e que tinha de ir para a Dinamarca daí a duas semanas. Lembro-me da minha mãe me perguntar: e agora? Vais para a Dinamarca, viver para lá? E eu: pois. E vais ganhar o quê? Não sabia. “E se não tens dinheiro que chegue para pagar as contas?” E depois preocupação de mãe: o que é que vais fazer, eu não estou lá, quem é que te vai lavar a roupa e fazer o almoço e o jantar? [Ri-se]. Não foi fácil adaptarem-se a essa ideia, porque apesar de não ser uma coisa nova, visto que eu já dizia há algum tempo que era aquilo que queria fazer, acho que não acreditavam que pudesse acontecer. De repente aconteceu e a ponto de em duas semanas estar fora do país, a viver sozinho e a ganhar o meu dinheiro.
Nunca houve um momento em que ponderou regressar? Alguma vez as coisas chegaram a esse ponto?
Houve momentos no início em que a saudade apertava muito. Obviamente pensava: será que é isto que realmente quero fazer, aqui? Porque estou tão longe… Mas depois a certeza estava lá, era isto que queria fazer. E o preço que estava a pagar era um preço que tinha de medir se realmente valia a pena. E foi valendo, fui ficando. Depois fui ganhando mais raízes, conhecendo mais pessoas. Eventualmente ao fim de alguns meses, quando ia visitar a família, que era uma coisa importante para mim, comecei a sentir que estava a ir para casa quando regressava à Dinamarca. E à medida que esse sentimento foi crescendo, foi-se definindo um caminho. Não significava que já não houvesse volta desse caminho, mas não era preciso haver volta.
Também tem um conhecido interesse musical: passou pelo The Voice português e chegou aos quartos de final do programa. Participou também num outro programa de talentos na Dinamarca. Esse interesse pela música também surgiu na infância? Ou apareceu já mais tarde, na adolescência?
Surgiu cedo. Aos sete anos participei no mini Chuva de Talentos na minha terra. Não era televisivo, era uma versão do mini Chuva de Talentos mas era organizado a nível local, em Paredes, com as escolas todas da região. Selecionavam dois representantes de cada escola e depois iam a concurso regional. Fui cantar Eros Ramazzotti, tinha 7 anos. Com uma boina, havia efeitos de fumo, banda a tocar no palco, era coreografado. E isso já não foi a primeira vez, na escola tudo o que era atuações que envolvessem música, dança e coreografia, eu estava lá. E muitas das vezes na frente, fazia questão de estar. Não sei dizer exatamente de onde é que este interesse vem, porque não tenho na família pessoas que tenham trabalhado nestas artes. Mas tenho gente talentosa na família: a minha mãe é poeta, é uma autora publicada, e o meu pai é artista de várias artes: tem a sua empresa de mobiliário mas fez desde sempre escultura em madeira, pintura, desenho e também foi cantor litúrgico nos seus anos de juventude. Talvez venha daí o gosto pela música, um bocado por ele. A minha avó materna também sempre foi muito dada a representação — agora nem tanto, os anos foram passando e foi-se desligando, mas fazia peças de teatro nas festas da terra e andava sempre envolvida, sem vergonha nenhuma de se meter ali no meio.
Em que fase é que está o seu percurso musical?
Fui sempre fazendo coisas. A minha participação nos programas, tanto na Dinamarca como no The Voice, aconteceu por surgir uma oportunidade, não fui atrás. Não que haja algo de errado em ir atrás das oportunidades, acho que as pessoas devem ir, mas estava bem no meu trabalho, estava dedicado à minha carreira na Lego e se calhar até um bocado conformado com a ideia de que o mundo da música estava relegado para segundo plano. Na altura em que comecei a participar nesses programas, estava a cantar gospel, era o que fazia naquele momento. Tinha-me mudado para uma cidade nova, descobri que havia um grupo de gospel lá, estava curioso e juntei-me e comecei a cantar gospel. Todas as quintas-feiras tínhamos ensaio, volta e meia tínhamos um serviço. Ia fazer atuações em festas privadas, casamentos e coisas assim do género, cantava karaoke todas as sextas-feiras com um grupo de amigos num bar… Estava com isso e estava feliz.
Nessa altura, um recrutador de talentos contactou-me na Dinamarca, perguntou-me se estava interessado em fazer uma audição para um programa dinamarquês. Porque não? Na altura não ponderava sequer a hipótese [de se inscrever] porque não falava dinamarquês. Ainda hoje não falo, por preguiça e por não ter necessidade, nunca dediquei tempo a aprender. Lá me perguntaram se não falava mesmo nada e disse que arranhava uma coisa ou outra. Fui e a coisa correu bem, cheguei aos quartos de final, se bem me lembro. Foi uma experiência engraçada. Isto teve alguma projeção em Portugal, por ser um português que estava neste programa de talentos na Dinamarca. E tive um convite de um recrutador em Portugal para participar no The Voice português. Pensei: era giro, cresci a ver a Operação Triunfo, a Academia de Estrelas, o Ídolos… e quando quis participar nesses programas não podia, não aceitavam miúdos da minha idade.
Tinha algum objetivo específico em vista, ao participar?
Foi pela experiência, para ver como era. Também, se calhar, para tentar encontrar alguns contactos, conhecer pessoas que me pudessem abrir algumas portas no sentido de poder fazer mais coisas, como conhecer produtores e gravar alguns dos meus originais. Neste momento, na Dinamarca, estou a trabalhar com um produtor dinamarquês. É uma pessoa que conheci através de outros amigos com quem estou a trabalhar. Estou a investir do meu próprio bolso, por meu interesse, é um hobby que me dá imenso prazer.
Quero criar a minha música porque não sei viver sem o fazer e porque podia estar sentado no sofá a ver televisão mas não é a mesma coisa. Estive agora uns dias no Porto a visitar a família e estava a mostrar aos meus pais algumas das coisas em que estou a trabalhar. Eles perguntaram-me: então e o que é que vais fazer a seguir? Porque como pais, às vezes têm alguma dificuldade em perceber porque é que perco tanto tempo e gasto tanto dinheiro numa coisa que não dá dinheiro. Sei lá o que é que vou fazer a seguir com isto… ponho na net, se alguém quiser ouvir, ouve, se não quiser ouvir, não ouve. Porque escrevo músicas de uma forma muito pessoal, não consigo escrever para outros artistas e outras pessoas, não consigo contar as histórias de outras pessoas. Gosto muito de escrever e já o fiz de outras formas, mas na música preciso que seja algo meu, histórias das minhas vivências, das minhas experiências. Quando sair cá para fora, sai cá para fora.
Neste momento tem-lhe sido possível conciliar as duas coisas. Mas e se houver um momento em que deixar de ser e tiver de escolher o trabalho na Lego ou a música, o que é que escolheria?
Acho que seria o Lego. Quando estava no programa aqui em Portugal, perguntavam-me muito sobre o que é que poderia acontecer a seguir se ganhasse, se surgisse uma oportunidade de trabalhar na música a sério. O meio artístico é tão incerto e é tão difícil vingar que abdicar de uma coisa que é tão segura e que me dá tanto prazer como o Lego seria uma idiotice, acho. Por mais que adore a música. E como tenho conseguido conciliar de alguma forma, como o objetivo também nunca foi estar nas luzes da ribalta, encher pavilhões, fazer dinheiro ou ir para a televisão, estou bem.
Na Lego, na música ou em outra área, o que é que gostava de fazer que ainda não fez?
Adorava dar voz a uma personagem de cinema de animação, porque gosto de cantar e de representar e vejo aí uma oportunidade de fazer muitas dessas coisas de uma forma diferente. Adorava ver um filme de um guião que tenha escrito, é um objetivo que tenho a longo termo. Gosto de escrever e gosto de contar histórias. Acho que está na descrição da minha página de Instagram que sou um contador de histórias. De alguma forma, se calhar aquilo que melhor me define em todos os aspetos e em todas as vertentes do que faço é mesmo isso. Seja através de um conjunto de Lego, de uma canção que escrevi ou de uma história que efetivamente passei para papel.
Este lado vem muito por influência do meu avô paterno, que foi uma pessoa muito especial para mim, uma referência imensa na minha vida, muito presente nos meus primeiros 20 anos. Ele era o melhor contador de histórias que se pode imaginar, conhecia de cor os textos que aprendeu na escola primária. Teve apenas os primeiros quatro anos de escola primária de escolaridade, mas quase debitava contos e todos os dias contava uma história diferente. Cresci tanto com essa influência que sempre tive vontade de contar histórias. Portanto, tudo o que tiver a ver com contar histórias que ainda não tenha feito, quero fazer.
Pergunto-lhe o mesmo que lhe perguntaram na entrevista de emprego para a Lego: o que é falta à Lego construir?
Se dissesse o que é que falta, poderia estar a dizer o que vem aí e isso não posso contar. Mas posso dizer que adorava ver edifícios portugueses na linha de arquitetura, só que infelizmente sou uma voz muito pequenina lá dentro para influenciar dessa forma…
Há mais portugueses noutras funções, na Lego?
Há, há. Mesmo no grupo de design já somos seis portugueses. A maioria deles veio depois de eu ter entrado. Muitas vezes o que é preciso é acreditar que é possível. Na altura em que comecei a trabalhar na Lego, surgiu em vários meios de comunicação a informação de de que um português estava a trabalhar na Lego. Na verdade não era o primeiro, estava lá a Rosário Costa, que já estava há imensos anos, num cargo de direção. Mas designers, com as mãos na massa por assim dizer, era o único naquela altura. Entretanto já contratámos mais alguns e há mais uma série de outros portugueses noutras áreas [da empresa], desde desenho de moldes a engenharia, passando por produção, qualidade, pelo grupo financeiro… já somos bastantes. Porque lá está, as pessoas começaram a pensar: se ele está lá, também posso tentar, se calhar funciona. E funciona! Às vezes só falta isso, as pessoas acreditarem que é possível.
Quantas pessoas trabalham consigo, na Lego?
Acho que somos, não sei, à volta de três mil.