Foi assunto tabu durante mais de quarenta anos. Maria Antónia Siza, mulher de Álvaro Siza Vieira, morreu aos 32 anos, a 11 de janeiro de 1973, e falar-se sobre ela só voltou a ser possível quando o marido, viúvo sem nunca mais ter voltado a casar, deu o seu consentimento aos amigos e conhecidos. Tinha decidido doar uma parte do acervo dela à Fundação Calouste Gulbenkian e conversava sobre Maria Antónia com o jornalista Valdemar Cruz, pondo os amigos à-vontade para também o fazerem. A história foi revelada em 2016 no semanário “Expresso”. Depois de uma nova doação para fazer aumentar este espólio, cem desenhos do vasto acervo de Maria Antónia à Fundação de Serralves, e nas vésperas de uma exposição em Serralves (a partir de 8 de setembro), fomos ouvir os especialistas traçarem o perfil artístico daquela que o grande arquiteto português mais amou.
Espírito rebelde, personalidade arrebatadora, Maria Antónia Siza desenhava uma extraordinária radicalidade num meio artístico muito fechado e de difícil acesso. Tinha 17 anos quando se inscreveu na Escola Superior de Belas-Artes do Porto. Chegava à escola vinda de uma família burguesa, média-alta, conservadora e muito religiosa. A sua educação tinha tido lugar em colégios católicos e a chegada às Belas-Artes tinha tudo para não ser fácil. Além do mais era mulher, outra dificuldade acrescida. Terá que crescer entre José Rodrigues, Ângelo de Sousa, Armando Alves, Alberto Carneiro, António Quadros, Jorge Pinheiro, o próprio Álvaro Siza. A tarefa, porém, surge aos olhos de quem a vê desenhar como uma forma libertadora.
Maria Antónia é elogiada, desde logo, pelo diretor da Escola Superior de Belas-Artes do Porto, Carlos Ramos. A força da doutrina dá-lhe, porém, asas para dela se desvincular. “Dizer que ela desenha bem… salta à vista, ela domina todo o vocabulário e não precisa de academismos para se afirmar. Maria Antónia tinha a capacidade de pensar o desenho por dentro. Os austríacos, Klimt e Schiele deveriam ser referência para o desenho de Maria Antónia, que faz uma interrogação sobre o próprio desenho”, afirma Bernardo Pinto de Almeida ao Observador, ele que foi chamado a escrever o catálogo que acompanhou a exposição de Maria Antónia Siza em 2002, na Árvore, cooperativa portuense onde ela tinha exposto em 1970, naquela que foi a sua única mostra em vida.
“É por necessidade”, diz José Luís Porfírio. “Não há temores. É raro encontrar obras que sejam necessárias, a obra de Maria Antónia foi necessária para ela, foi necessária para quem estava junto dela, e hoje é necessária para nós”, alega o crítico de arte no final da conversa em que participou sobre a artista na Fundação de Serralves, no Porto, logo a seguir à assinatura da doação dos desenhos do acervo. “É uma obra que está dentro e fora do tempo, simultaneamente, é com uma fluidez e facilidade que ela dinamita por dentro o desenho, que acaba por se auto-aniquilar pela sua própria tensão”, continua o antigo diretor do Museu Nacional de Arte Antiga.
A violência é, de resto, uma das características que Bernardo Pinto de Almeida mais exalta na obra da artista. “Há de facto uma violência muito grande no desenho dela. Ela tem um par na arte portuguesa do seu tempo que é o Jorge Pinheiro. Os desenhos do Jorge Pinheiro, sobretudo a partir dos anos 80, são extremamente violentos e são posteriores à morte da mulher, em que ele começa a desenhar figuras tenebrosas, assaltadas pela angústia. Por vezes, nos desenhos da Maria Antónia perpassa qualquer coisa desta capacidade de contemplar o horror que é goyesca, que tem uma tradição na arte ocidental, passa pelo expressionismo, mas que encontro no século XX sobretudo na Louise Bourgois, que abriu uma porta que estava em grande medida fechada, que tem a ver com a ousadia de dizer a sensação do mundo tal e qual. Entrar sem ficar no protocolo da exibição ou dos narcisismos do desenho e do talento, mas pelo contrário, ir ao lado mais visceral, cotejando a loucura. Há uma dimensão fortíssima nos desenhos da Maria Antónia que me surpreendeu imenso logo na primeira vez que o Álvaro me convidou para escrever sobre eles. Era uma menina com 30 anos…”, analisa o crítico e historiador de arte.
Bernardo Pinto de Almeida vai mais longe: “Os desenhos dela são radicais e por vezes são altamente perturbantes, ela não teme mostrar estados de consciência que não são pacíficos. Há uma dor que atravessa os desenhos, que atravessa o trabalho dela. Essa dimensão, mulher, corajosa, violenta liga-se, a meu ver, bem, com outras possibilidades como por exemplo a Louise Bourgois, que é uma artista igualmente solitária, descontextualizada, um bocadinho contra o mundo. Pela sua coragem, pela sua desmedida, a palavra é desmedida, Maria Antónia assume o lugar do feminino, os desenhos são profundamente femininos, todo o erotismo que se liga ao feminino, os corpos dela não são semelhantes sequer, ou próximos, de corpos desenhados por homens, têm um ritmo, uma respiração, uma invenção plástica, que não é nada masculina, e que surpreende, são posições de corpos que um homem não faria, uma mulher que se espalma numa cama, um homem que caminha, mas cuja cabeça é completamente grotesca”, defende.
Em choque, foi assim que Philippe Vergne, diretor do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, descreveu como se sentiu ao descobrir e conhecer a obra de Maria Antónia Siza. Vergne caracteriza o trabalho “como de uma rara consistência e radicalidade”. Compara-o aos de Alice Neel e de Marlene Dumas, e releva “a sua maneira de contar histórias que não são felizes”. De facto, Maria Antónia Siza teve uma existência complicada sobretudo depois do nascimento da segunda filha, Joana, tendo desenvolvido uma neurose pós-parto que a remetia com frequência para níveis de depressão agudos. As ausências a que esses estados de espírito obrigavam levaram mesmo a que a sua morte fosse durante largo período encarada como um suicídio pelos que não conheciam a família. O mito da morte prematura ajudou a história e o silêncio que a envolveu também. Na verdade, Maria Antónia tinha desde criança desenvolvido um problema de coração e morre de “uma embolia pulmonar”, como revela a certidão de óbito, a que Valdemar Cruz teve acesso.
Desfeita a tragédia ainda maior, os olhares seguem a obra cada vez mais conhecida. Depois de 2002, os desenhos de Maria Antónia Siza já estiveram em Zagreb, em 2016, ao lado dos de Álvaro Siza Vieira, e dez anos antes foram mostrados no Ciclo de Bellas Artes de Madrid. A Gulbenkian dedicou-lhe uma exposição em 2019, depois de ter trabalhado os desenhos que lhe couberam em doação, e a mostra “Tudo o que Eu Quero – Artistas Portuguesas de 1900 a 2020”, atualmente patente em Tours, dá-lhe também destaque.
Maria Antónia surge num meio difícil, não só pela quantidade e qualidade dos seus pares na Escola de Belas-Artes, mas também por ser mulher. Chegar ali vinda de uma família altamente conservadora, com as suas referências e o seu modo de vida, num Porto muito fechado — “um buraco escuríssimo”, como o define Bernardo Pinto de Almeida, “e socialmente exigente, com protocolos definidos” — ela, “uma menina bem”, seria porventura aceite e não contestada pela sociedade que, por outro lado, os seus desenhos agrediam de alguma forma. “Ela tem a coragem de os fazer, e julgo que ela tinha a intenção de levar isso por diante”, considera o crítico portuense. “Pelo seu lado, ela tinha a possibilidade de ter o Álvaro Siza, que estava ali para ela. Claramente apaixonado por ela. Tinha uma paixão desabrida pela Maria Antónia e essa paixão ecoou na vida dele. Nos desenhos dele percebe-se, embora ele tenha um génio de desenho, que por vezes vai buscar soluções aos desenhos da Maria Antónia. Ela influenciou-o profundamente, a Maria Antónia não é mais um efeito Álvaro Siza. Existe além dele e ele tem essa consciência. Nós não o ouvimos dizer ‘a minha mulher’, é a Maria Antónia. Tem esse respeito intelectual, sentimental, sensível, do artista, e aprendeu muito com ela.” Bernardo Pinto de Almeida conta que quando perguntou a Siza Vieira se podia fazer um livro com os desenhos dele, este lhe respondeu pronto: “Antes de fazer sobre mim, tem que fazer sobre os desenhos da Maria Antónia. Muito do que sei aprendi com ela”. Percebe-se diz o crítico, que “ela é um farol”.
As descrições da mulher que Siza amou vão todas nesse sentido. Diz-se que enchia cada sala em que entrava, viva, bonita, sensível, dava alegria por onde passava. E levou essa “joie de vivre” ao marido, sempre mais sisudo, menos extrovertido. Juntos tiveram dois filhos, Álvaro e Joana. E terá sido após o segundo parto que Maria António contraiu a depressão profunda. Terminam os dias efusivos e cheios de trabalho, de desenhos que saíam livres uns atrás dos outros sem hesitações, cujo olhar, como diz José Luís Porfírio, “vem do desenho para nós”, “intensos, de corpos acamados, que não sabemos se se acabam se se dissolvem, nos quais a figura humana vai se deformando a partir do próprio borrão”, de tão solta, de tão viva, de tão real, ali entre o expressionismo e o surrealismo também. E surge a doença, os dias longos e escuros, a tristeza infinita, param os desenhos. Ora melhor, ora pior, Maria Antónia nunca mais terá sido a mesma. Nova, muito nova.
“Como era muito jovem e embora tenha uma grande coerência, ainda não desenvolvera a sua potência, era preciso que a obra crescesse para além dessa potência para o que poderia ter sido. Não há hesitações, é sempre muito segura. Poderia crescer muito e até em pintura provavelmente. Há uma tensão, uma ousadia, um afrontamento propriamente dito do desenho que deixa cair todos os protocolos que tinha aprendido na escola. Percebe-se que ela sabia o vocabulário todo, mas deixa cair isso em benefício de uma experimentação quase furiosa que o Ângelo também teve nos desenhos dos anos 60, há uma veemência. Julgo, no entanto, que se ela tivesse durado mais uns anos, teria levado bastante tempo a conseguir arranjar lugar na condição artística portuguesa que era muito exclusiva e muito fechada” por todas as características que a sua obra apresentava.
Talvez por isso, Álvaro Siza Vieira tenha querido esperar, ou só tenha podido esperar. A dor e o deslumbramento pela mulher que já não acordou ao seu lado na madrugada de 11 de janeiro de 1973 não consentiram que falasse antes, que a mostrasse antes do tempo, do seu tempo. E do tempo dela, do amadurecimento de uma obra que Portugal tinha que saber ver e apreciar. O tempo da abertura de espírito, do descerramento de preconceitos e entendimentos diminutos, do começo de novos conhecimentos. Álvaro Siza Vieira soube esperar pelo tempo certo e soube proteger tanto a obra como a mulher. Divulgou-a e pô-la nos sítios em que era preciso no momento em que a sociedade podia já aceitá-la sem rodeios, complexos, ou subterfúgios.
Serralves compromete-se agora a mostrar a obra, a promovê-la e a facultar a sua discussão. Em setembro poderemos ver os cem desenhos que agora foram doados, a par de um programa com muitas e diferentes atividades. Sendo o objetivo último da Fundação levar o trabalho de Maria Antónia Siza a várias localidades do país através também das exposições itinerantes que tanto tem levado a cabo.