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"Queria escrever um livro que fosse dos géneros fantástico e de terror, mas que tivesse muitos outros géneros dentro -- realismo, jornalismo narrativo", diz Mariana Enriquez
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"Queria escrever um livro que fosse dos géneros fantástico e de terror, mas que tivesse muitos outros géneros dentro -- realismo, jornalismo narrativo", diz Mariana Enriquez

"Queria escrever um livro que fosse dos géneros fantástico e de terror, mas que tivesse muitos outros géneros dentro -- realismo, jornalismo narrativo", diz Mariana Enriquez

Mariana Enriquez e uma história de crueldade argentina: “O poder da escrita é converter o horrível em sedutor”

Entrevista com uma das escritoras mais aclamadas da literatura latino-americana contemporânea, sobre o novo "A Nossa Parte da Noite", o legado da ditadura argentina e o desejo humano pela redenção.

A Nossa Parte da Noite, terceiro romance desta argentina de 47 anos (de quem a Quetzal já tinha publicado, em 2017, o livro de contos As Coisas Que Perdemos no Fogo), é um compósito de vários géneros em que o fantástico fala mais alto. Uma história de mundos ocultos onde forças poderosas e sobrenaturais se digladiam, e também uma história de família — Juan, o médium; Gaspar, o filho; Rosario, a mãe desaparecida num nebuloso acidente de autocarro — situada nos anos da ditadura militar argentina. Uma teia de rituais sinistros, sacrifícios bizarros, invocações do demónio, histórias de santos milagreiros e de casas assombradas que lhe serviu para falar do poder na América Latina. A Ordem, seita de poderosos que almejam uma forma de imortalidade, foi inspirada numa organização vitoriana que albergou personalidades e artistas célebres e de cuja iconografia a cultura pop do século XX se apoderou.

Entre a Argentina da ditadura e a Londres boémia dos anos 60, A Nossa Parte da Noite é um romance onde o racional e o sobrenatural convivem com civilidade — até porque, quanto mais a imaginação anda à solta, mais a lógica precisa de rédea curta. Já com um Prémio Herralde de Romance no currículo, o livro chega a Portugal com chancela da Quetzal e tradução de Margarida Amado Acosta.

Em vídeoconversa a partir de Buenos Aires, Mariana Enriquez diz ao Observador que a geração de que faz parte já se libertou do peso dos antepassados: Borges, o “avô famoso” de todos os escritores argentinos, não precisa que escrevam contra ele.

A capa de "A Nossa Parte da Noite", de Mariana Enriquez (Quetzal)

Como está a viver estes tempos pandémicos?
Em Buenos Aires a situação está melhor. Passámos a uma fase mais relaxada, alguns teatros reabriram, estamos num momento de menor circulação viral. Mas foram meses muito difíceis e a América Latina foi especialmente afetada pelo vírus.

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Estes dias são bons para um ficcionista? Ou, quando a realidade já é tão extravagante, a ficção já tem muito pouco a fazer?
Para mim foi péssimo. Não tem que ver com a extravagância da realidade, na Argentina e na América Latina temos muitas realidades extravagantes. Creio que este momento teve muitas características que foram contra a imaginação. Foi um momento traumático, repentino, que exigiu um isolamento involuntário. Gosto de me isolar, mas só quando quero e não com medo, com tanta incerteza. Creio que o real passou para um primeiro plano tão intenso que, no meu caso, foi como se a ficção desaparecesse. No princípio da pandemia nem sequer podia ler, porque ler também exige um exercício de imaginação. Agora já estou num momento melhor, mas ainda não estou a escrever. Depois de um romance tão extenso, precisava de um tempo de tranquilidade.

Quando começou a escrever A Nossa Parte da Noite, que livro imaginou que seria?
Comecei a pensar nele há cerca de cinco anos, mas ainda como algo muito vago, muito impreciso. Quando começou a tomar forma, há uns três anos, a primeira coisa que pensei foi que queria escrever um romance. Escrevi contos e outras ficções curtas durante muito tempo, e queria passar pela experiência de um romance grande. Já o tinha feito quando era muito jovem, e queria voltar ao mundo obsessivo do romance. Por outro lado, queria escrever um livro que fosse dos géneros fantástico e de terror, mas que tivesse muitos outros géneros dentro — realismo, jornalismo narrativo… Que tivesse temas políticos, sexuais, que falasse da juventude, dos excesso, do rock; que tivesse uma relação pai-filho, mas também demónios e deuses… A minha ideia era fazer um romance coerente com todos estes elementos.

"Na Argentina o nosso problema não é tanto o realismo mágico, mas sim [Jorge Luis] Borges. É o avô internacional famoso que marca todos os escritores argentinos. Mas julgo que agora é um bom momento para voltar a ler esses avôs, já estão suficientemente longe para não termos de escrever contra eles."

E como procurou equilibrá-los?
Quis que estivessem balanceados de modo a que fosse um romance verosímil e, sobretudo, de modo a interessar leitores que não leem necessariamente fantástico e terror. No meu caso, tanto leio realismo ou jornalismo narrativo como Stephen King ou J. G. Ballard. Para mim, não são literaturas incompatíveis. Queria um texto dirigido ao leitor que está disponível para incorporar os vários géneros. Mas, no fundo, é sobretudo uma novela fantástica. Isto é: sem a Ordem, sem o médium, sem as lutas de poder relacionadas com o sobrenatural, o livro não funciona.

Quando começa a escrever, obedece a um plano determinado?
O caminho faz-se ao correr da escrita. Não sabia que o romance ia ser tão longo, mas sabia que teria de ser extenso. A história pedia que as personagens fossem realistas e que o leitor tivesse uma relação forte com elas. Isso requer tempo; e tempo, em literatura, são páginas.

O romance divide-se em várias partes, e essas mantive-as desde o início. Mas dentro dessas secções houve idas e voltas, mudanças de direção… Ao contrário do conto, o romance constrói-se sempre à medida que se escreve.

Há alguma coisa no livro que seja especificamente latino-americana?
Há uma ideia de poder permanente, de riqueza, que tem a ver com o poder de certas famílias e que parece impossível de mudar. Talvez isso possa ser mais bem entendido por países que sofrem este tipo de opressão económica e política, que têm uma desigualdade social brutal de que nunca se conseguiram libertar. Apesar de esse ser um processo histórico latino-americano, é algo que acabou por se converter num problema do poder mundial: estamos sempre a ouvir dizer que há 1% da população que detém a mesma riqueza que os restantes 99%. Quis pensar sobre a obscenidade dessa acumulação de poder.

Diz no livro que “o dinheiro é um país”…
Sim. Tem as suas regras próprias, as suas dinâmicas, a sua geografia e, sobretudo, a sua própria lei. Quis mostrar como essas famílias são totalmente impunes. É uma sensação muito latino-americana. Gosto que os meus romances possam ser lidos internacionalmente, mas não pretendo escrever neutralmente. Escrevo desta parte do mundo. Quando leio um escritor norte-americano, quero que me fale dos Estados Unidos; se leio um escritor português, quero que me fale de Portugal. Quero perceber de que me falam, mas não me preocupo se há dados ou coisas muito específicas que não chego a entender de todo.

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"Nós, que escrevemos no género fantástico, somos muitíssimo mais influenciados por Stephen King do que por García Márquez"

Getty Images

A expressão “realismo mágico” tornou-se um rótulo muito duradouro para catalogar tudo o que viesse da América Latina. O realismo mágico ainda lhe serve?
Para nós já não existe mais, está muito longe no tempo. Foi um bom rótulo, no sentido em que posicionou a literatura da América Latina internacionalmente (creio que foi das últimas vezes que a literatura latino-americana chamou a atenção). O problema que causou internamente foi a ideia de que os autores latino-americanos escreviam sempre em relação ou contra isso. Na Argentina o nosso problema não é tanto o realismo mágico, mas sim [Jorge Luis] Borges. É o avô internacional famoso que marca todos os escritores argentinos.

Mas julgo que agora é um bom momento para voltar a ler esses avôs, já estão suficientemente longe para não termos de escrever contra eles. Passaram 60 anos, esta geração passou por outra história, outras literaturas, outras influências, leu muitíssima literatura estrangeira… A geração dos anos 90 e da globalização formou-se a ler literatura traduzida, e isso mudou muito as nossas referências. Nós, que escrevemos no género fantástico, somos muitíssimo mais influenciados por Stephen King do que por García Márquez.

Inspirou-se em alguma seita ou organização secreta para compor a Ordem?
Sim. Há uma organização inglesa vitoriana, chamada Golden Dawn, que tinha a particularidade de ter muitos artistas: William Butler Yeats (nobel irlandês que cito no livro), Bram Stocker (o autor do Drácula), Aleister Crowley [ocultista inglês]… Crowley, aliás, é uma personagem muito particular, que acaba por ser tomada pelo rock: está na capa do Sgt. Pepper’s dos Beatles; Jimmy Page (o guitarrista dos Led Zeppelin) comprou a casa dele na Escócia (onde fez alguns rituais que aparentemente acabaram mal); os Black Sabbath têm uma canção chamada “Mr. Crowley”… Era quase uma organização de celebridades; atraiu muitos intelectuais da época interessados nos temas do fantástico e do oculto. E tinha mulheres. Em geral, o ocultismo dessa época tinha mulheres em posições importantes. E havia movimentos muitos importantes, como a teosofia, cuja líder era uma mulher (Helena Blavatsky). A ideia das mulheres poderosas dentro de uma organização deste tipo vem daí.

"A ditadura argentina teve características particulares: o desaparecimento dos corpos, por exemplo. Isso deixou-nos alguma coisa de fantasmagórico. E ninguém me explicou nada. Ou melhor: a televisão explicou-me... Depois fiz perguntas, mas já era tarde."

Quando se escreve sobre mundos mágicos, tudo é possível. Poderá parecer que o escritor, não sujeito às normas da realidade, tem ainda mais liberdade. Parece-me, contudo, que quando se cria um universo e as suas regras é ainda mais importante que a lógica não tenha falhas. O género fantástico é mais exigente com a coerência?
Totalmente. A verosimilhança é mais importante no fantástico do que no realismo. Quando criamos certas regras, elas são limitantes. Não se pode fazer qualquer coisa. Se decido, por exemplo, que um personagem como Juan comunica com os deuses de determinada maneira, tem de ser sempre dessa maneira. Não posso mudá-la: seria como propor ao leitor um sonho e despertá-lo de repente. É preciso ser muito coerente. Basta um desvio das regras para destruir a verosimilhança da história.

Juan, o médium, comunica com seres ocultos em rituais esotéricos. No momento a seguir, é observado pelo cardiologista porque sofre de uma malformação cardíaca congénita; tem de ficar internado e receber oxigénio. Não é estranho que um semideus precise de ir ao médico?
Não. É como o Frankenstein, um ser feito com partes de mortos que precisa da ciência para viver. Não consegue sobreviver só com magia. Além disso, durante muito tempo a ciência e a magia eram a mesma coisa. Na vida quotidiana as duas coisas não são incompatíveis; passa-se o mesmo na ficção. As pessoas precisam da sensação de comunidade que advém, por exemplo, da oração. Já temos isso tão incorporado que nos esquecemos que é uma espécie de relação com a divindade que não tem nada de realista, e que, em geral, não há respostas. É falar para o vazio. Mas consola, ajuda.

A leitura pode causar medo físico?
Senti medo físico bastante tarde, quando, aos onze ou doze anos, li um livro de Stephen King chamado Samitério de Animais. Ofereceram-mo no Natal, comecei a lê-lo nesse dia e recordo o momento em que uma cena, de tão espantosa, me causou tanto medo que atirei o livro como se afastasse um bicho venenoso. Foi a primeira vez que a literatura me causou essa sensação. A música e o cinema fazem isso — escutamos uma canção alegre e ficamos alegres, um filme triste faz-nos chorar –, mas nunca me tinha acontecido com a literatura. E esse momento de pânico, de repugnância, foi determinante para a decisão de me tornar escritora. Queria conseguir fazer aquilo com as palavras.

O livro anterior de Mariana Enriquez, "As Coisas que Perdemos no Fogo" (Quetzal)

Qual é a sua relação com os temas do oculto e do sobrenatural?
A minha avó tinha crenças relacionadas com os santos pagãos argentinos. Não sei se acreditava propriamente, mas conhecia as histórias. Era uma mulher vinda do meio rural, onde o supersticioso é mais comum, mas vivia na cidade. Esse choque influenciou-me muito. Um lado da minha família vive na zona onde ocorre a primeira parte do romance; muitos mitos que aparecem ali são relatos familiares ou testemunhos próximos. É uma zona da Argentina que está na fronteira com o Brasil e o Paraguai, próxima das religiões afro-brasileiras e do povo guarani. É uma zona limite, e eu quis trabalhar esse limite: entre a vida e a morte, entre a ciência e a fé, entre o catolicismo e as religiões pagãs e tradicionais…

A ditadura argentina apanhou-a na primeiríssima infância. Como é que foi a aprendizagem do se passou nesses anos?
Foi uma descoberta brutal. A ditadura coincide quase totalmente com a minha infância (nasci em finais de 1973, a ditadura começa em 1976). Acabou em 1983, quando tinha nove ou dez anos. No período imediatamente a seguir à ditadura houve uma explosão de informação sobre o que se tinha passado — em revistas de circulação popular, na televisão, na rádio… Foi como destapar algo que estava fechado hermeticamente; de repente, toda a gente falava. Transmitiam-se julgamentos de militares, ouvíamos as vítimas… Foi um contraste entre anos de escuridão e fechamento e uma explosão de informação aterradora. Nessa altura li textos terríveis e repugnantes. Foi brutal e traumático.

A ditadura argentina teve características particulares: o desaparecimento dos corpos, por exemplo. Isso deixou-nos alguma coisa de fantasmagórico. E ninguém me explicou nada. Ou melhor: a televisão explicou-me… Depois fiz perguntas, mas já era tarde.

Numa das secções do livro, uma jornalista visita uma zona onde foi descoberta uma vala comum com corpos de vítimas do regime e procura descobrir as suas histórias. E diz-nos sem grande surpresa, a respeito de um casal que encontra, que eles “querem falar (…) As pessoas querem sempre falar”. É verdade que as pessoas na Argentina querem falar sobre os traumas da ditadura?
Sim. É muito diferente do que se passou noutros países que sofreram traumas com estados autoritários. Na Argentina fala-se do tema permanentemente, é algo que está em discussão constante. Há negacionistas, há gente obcecada com o tema, há filhos de mortos que continuam a sua militância, há inúmeras crianças (hoje adultos) que foram sequestradas e viveram toda a vida com famílias que não eram as delas… Isso é sinistro, são pessoas a quem se roubou a identidade. Isso também está no livro. Creio que nenhuma sociedade reage melhor ou pior; simplesmente reage. Na Argentina, a reação é de hiperexposição.

"O jornalismo serve-me para nunca ficar em branco. Há prazos, há deadlines; tens de entregar o texto e não há negociação; não podes esperar pela inspiração nem apelar a questões artísticas. A minha falta de solenidade em relação à literatura tem a ver com a prática do jornalismo."

Quando lemos sobre violência, acontece que somos menos impressionados pela violência em si do que pela maneira como ela afeta as personagens. Se, naquele universo ficcional, for banal haver crianças presas em masmorras ou corpos oferecidos para sacrifício, damos por nós a não estranhar que as coisas sejam assim. O escritor tem o poder de decidir o que são o bem e o mal?
Ao criar universos ficcionais, o escritor tem um poder enorme para fazer, por exemplo, com que um vilão seja encantador. Um exemplo clássico: O Monte dos Vendavais, de Emily Brontë, tem um personagem masculino, Heathcliff, que é o herói romântico que durante gerações encantou as mulheres. Ele é um monstro — é louco, violento com as mulheres, sacrifica o próprio filho… E, contudo, é muitíssimo atrativo. Esse é o grande poder da escrita: converter o horrível em algo normal, aceitável ou até sedutor. A ficção tem a sua própria verdade, e a verdade da ficção pode ser muito perigosa. Por isso a literatura é tão importante: é um lugar onde se permitem estes riscos, estes atrevimentos, onde o que está bem e o que está mal se confundem.

O seu trabalho como jornalista alimenta a ficção?
Com o passar do tempo foi alimentando cada vez mais. O jornalismo permitiu-me investigar temas que mais tarde usei na ficção. Continua a ajudar-me, por exemplo, a apreender histórias (no livro há algumas histórias reais). O jornalismo tem um estilo que te permite fazer com que aquilo que estás a contar, mesmo que não seja real, pareça real. É o género do verosímil. Por isso o jornalismo tem de ser tão responsável: possui as ferramentas para contar qualquer coisa de maneira a que pareça real, mesmo que seja um engano.

Além disso, o jornalismo serve-me para nunca ficar em branco. Há prazos, há deadlines; tens de entregar o texto e não há negociação; não podes esperar pela inspiração nem apelar a questões artísticas. A minha falta de solenidade em relação à literatura tem a ver com a prática do jornalismo.

Sabe tudo sobre este livro ou há segredos que ele guarda — até de si?
Há segredos que o livro guarda. Creio que fica claro, por exemplo, que as mulheres da Ordem decidiram matar Rosario, mas não é claro o que se passou nem porque decidiram fazê-lo. O futuro de Gaspar também não fica claro; muito menos o destino de Adela. Eu também não o sei. Posso especular, mas são zonas que decidi não revelar. O livro conta muito, mas também tem pontos de vista: não há só um narrador que saiba tudo. Há coisas que o Juan sabe, outras só Rosario é que sabe. Mas nenhum deles sabe tudo. Decidi respeitar essas zonas que são misteriosas também para eles. Como autora, posso especular sobre o que se terá passado, mas não quero explicá-lo. São os narradores que contam a história ao leitor, e eu não sou a narradora. De alguma maneira, sou apenas a médium dos narradores.

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