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Marina Abramović: uma mulher em permanente confronto na Academia Real

A Royal Academy of Arts, em Londres, apresenta uma retrospetiva da obra de Marina Abramović. É a primeira vez que a instituição acolhe uma exposição a solo de uma mulher nas galerias principais.

Quando foi revelada, a notícia correu o mundo. Marina Abramović é a primeira mulher a expor na Royal Academy of Arts, em Londres, em 255 anos de história. Agendada inicialmente para 2020, mas adiada devido à pandemia de Covid-19, a exposição que abre portas este sábado, dia 23 de setembro, assinala os 50 anos de carreira da artista, sendo igualmente a primeira grande mostra do seu trabalho individual no Reino Unido. O olhar expositivo irá recair sobre o impacto significativo de Abramović na evolução da arte performática, mas não só. Com curadoria da própria, a exposição promete uma exploração aprofundada da sua prática artística através de vários meios, como a fotografia, o vídeo, objetos, instalações e reinterpretações ao vivo das suas performances seminais.

Chegados a 2023, é difícil descrever a influência de Marina Abramović na arte contemporânea – e na forma como a própria transitou de uma prática singularmente experimental para um lado mainstream e reconhecível por todos da sua persona artística e dos seus processos de criação. Desde que estabeleceu a sua reputação na década de 1970, a artista sérvia tem vindo a redefinir a natureza da arte performativa, conferindo-lhe um interesse global que renovadamente incentiva muitos outros artistas surgidos nas décadas seguintes. Depois da exposição adiada, também a própria Royal Academy of Arts quis refletir sobre a importância da mostra. “Aproveitámos os anos que passaram para recomeçar do zero”, afirmou à imprensa a diretora das exposições da instituição londrina, Andrea Tarsia. “A Marina foi generosa ao desenvolver não uma, mas duas exposições connosco”.

Tendo começado como pintora, a estudar em Belas-Artes, em Belgrado, Marina Abramović fez a transição para a arte performativa no início dos anos 70, adotando uma abordagem única que se centrava na exploração de ações quotidianas, ultrapassando os respetivos limites físicos e mentais e aprofundando temas complexos como o trauma, o silêncio e a presença, bem como os horrores que marcam a história recente no mundo. Considerada como a “avó da performance art”, Abramović nasceu em 1946, na antiga Jugoslávia, durante o regime paternal do ditador Tito. Teve uma infância dura, com pouco afeto parental e num regime marcado também ela por diversas privações à liberdade. O seu trabalho, que explora as relações entre o artista e a plateia, os limites do corpo e as possibilidades da mente, começou a ser reconhecido – em especial na Europa – devido à série de performances a que chamou “Rhythms”.

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As instalações "Dragão Branco" (aqui protagonizada pela própria" e "Quatro Cruzes", tal como estão apresentadas na Royal Academy em Londres

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Entre 1973 e 1974, Abramović realizou então cinco performances nas quais testava os seus limites, mas também a forma como era objetificada pelo espectador. Marcavam o afastamento de Abramović dos meios mais tradicionais de pintura ou desenho, para se concentrar na utilização do seu próprio corpo como arte. Em 1973 apresentou “Ryhthm 10”, performance em que “brincava” com uma faca, tendo acabado por se cortar várias vezes nas mãos. No ano seguinte, em “Rhytm 0”, colocou 72 objetos em cima de uma mesa e pediu ao público para os usar com ela como bem entendessem. Um desses objetos era uma arma carregada.

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Na exposição que agora abre portas em Londres, e onde muitas destas performances serão reinterpretadas com um elenco treinado, estarão algumas destas performances em vídeo, sendo que outras serão mesmo refeitas ao vivo. Também fará parte da mostra a performance contemplativa The Artist is Present (2010), apresentada pela primeira vez no MoMA — Museum of Modern Art, em Nova Iorque, entre outras, que formam um arco temporal com cinco décadas que encapsulam o desenvolvimento da sua prática ao longo do tempo. Este terá sido um dos momentos mais mediáticos da história escrita até agora por Marina Abramović: em The Artist is Present, apresentava-se sentada de um lado de uma mesa, convidando qualquer pessoa do público a sentar-se à sua frente. Assim foi durante três meses.

Através das suas experiências e contacto com diferentes culturas, Abramović interessou-se pela forma como as proezas da resistência atuam como veículos para um salto mental de fé, uma transcendência que ultrapassa a sua própria condição como ser humano.

Numa outra secção, The Communist Body, a mostra coloca um foco sobre o passado jugoslavo de Abramović e a influência dos ideais comunistas no seu trabalho. As obras aqui apresentadas incluem Rhythm 5 (1974) e The Hero (2001) — nesta última a artista falou do espírito dos Balcãs como próximo de um ideal barroco, em referência ao que descreve como extremos dramáticos de expressão e emoção. Também aqui se incluí a célebre Balkan Baroque (1997), uma obra relacionada com as guerras dos Balcãs, na década de 1990, e que lhe valeu o Leão de Ouro na Bienal de Veneza.

Para se entrar na exposição da Royal Academy of Arts, os visitantes terão de passar entre um homem e uma mulher nus – embora exista uma outra entrada normal para quem se sinta desconfortável com a experiência proposta. Trata-se da obra Imponderabilia, de 1977, que força “um confronto entre a nudez e o género, a sexualidade e o desejo”, como define Andrea Tarsia. Inclui-se na secção Body Limits, onde se apresentam as suas primeiras performances, enfatizando a sua resistência física ou a procura de uma libertação transformadora, bem como a sua intensa colaboração com o artista Ulay (1943-2020).

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Marina Abramović em 2010, em plena performance no MoMA: "The Artist is Present" convidada o público a sentar-se à mesa com a artista, de olhar fixado mutuamente

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Os dois começaram a colaborar em 1975, quando Marina se mudou para Amesterdão. Da parceria, surgiu um relacionamento amoroso que durou 12 anos e também alguns trabalhos em conjunto, dos quais se destaca, precisamente Imponderabilia, que desde o princípio dividiu opiniões, não deixando obviamente de produzir uma reflexão sobre as questões de género. A relação amorosa e intensa terminou em 1988 e, para imortalizar o momento, os dois resolveram fazer uma performance chamada The Lovers – The Great Wall Walk. Marina e Ulay caminharam partindo de sentidos opostos, na grande muralha da China, encontrando-se no meio deste monumento para uma última despedida. Esta performance, gravada em vídeo, pode ver-se em Absence of the Body, uma secção da mostra que se centra no fim da relação entre ambos.

O fim da relação pessoal e artística com Ulay levou a Abramović a concentrar-se ainda mais na sua carreira individual. Fascinada e incentivada pelo estudo da medicina chinesa e tibetana, é dessa fase de mudança que surge a série dos chamados Transitory Objects, com os quais Abramović procurou dar forma aos fluxos de energia da natureza. As superfícies dos objetos são polidas pelo uso, testemunhando a passagem dos corpos no tempo. Ligam-se, curiosamente, com a secção final, Coming and Going, através da qual se estabelece um paralelo entre a efemeridade da arte performativa e a natureza fugaz da vida. Aqui se incluem as obras Nude with Skeleton (2002) e Good and Evil (2020), nas quais a artista tem procurado constantemente transcender as limitações físicas e estabelecer ligações com o conhecimento universal ao longo da sua carreira. Através das suas experiências e contacto com diferentes culturas, Abramović interessou-se pela forma como as proezas da resistência atuam como veículos para um salto mental de fé, uma transcendência que ultrapassa a sua própria condição como ser humano.

Abramović é a primeira mulher a ocupar a totalidade das galerias principais da Royal Academy of Arts. Aos 76 anos, o seu confronto com o público através da arte não parece de todo terminado. Por oposição, somos uma vez mais testemunhas — por vezes até cobaias — de um percurso que se tornou amplamente reconhecido.

Já nas galerias finais da exposição na Royal Academy of the Arts de Londres, a mostra centra-se na experiência transformadora da arte performativa e na sua equiparação a diferentes tradições espirituais. As obras aqui são cada vez mais imóveis e darão forma à espiritualidade feminina, como Bed for Aphrodite and her Lovers (1990) e as performances de Luminosity (1997). Sobre a retrospetiva, a Academia Real britânica salienta que irão existir vários momentos de performance ao vivo, ainda que a natureza exata da participação ao vivo de Marina Abramović ainda não tenha sido revelada. A informação dada pela instituição confirma que as peças performativas serão reencenadas por outras pessoas. “Este é um elemento emocionante da exposição e é um processo que se tem vindo a desenvolver ao longo de muitos meses”, explicou a diretora Andrea Tarsia. “Começou com uma série de audições a partir das quais selecionámos cerca de 40 artistas emergentes, que passaram por um período de formação no método de Marina Abramović, que consiste numa série de exercícios concebidos por ela, na tradição de artistas como Tadeusz Kantor ou Jerzy Grotowski.”

Cinquenta anos depois de ter surgido na cena artística contemporânea e de ter abalado as suas estruturas dominantes, celebra-se o legado de Marina Abramović, que Andrea Tarsia acredita ser uma das artistas contemporâneas mais interessantes do mundo devido ao seu “destemor”, capacidade de reinvenção e “generosidade”. “Destemor não só em termos das exigências que impôs a si própria com o seu trabalho, mas também porque ela lavrou o seu próprio caminho”, sintetiza. Outra indicação dessa mesma importância é o facto de Abramović ser a primeira mulher a ocupar a totalidade das galerias principais da Royal Academy of Arts. Aos 76 anos, o seu confronto com o público através da arte não parece de todo terminado. Por oposição, somos uma vez mais testemunhas — por vezes até cobaias — de um percurso que se tornou amplamente reconhecido.

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