Mário Laginha senta-se ao piano a bem da fotografia. Já que ali está, toca alguma coisa. Passa dez minutos a improvisar para as quatro almas que o acompanham no auditório da Casa Fernando Pessoa e só pára porque o fotógrafo — que será devidamente apupado — lhe pede para que pose de outra forma. Mas a entrevista correrá toda assim, ele no banco do piano, de vez em quando voltando costas ao entrevistador para enfrentar o teclado e ilustrar com música alguma coisa que está a dizer. E se tudo se desenrola em registo tu-cá-tu-lá, não é tanto por esta não ser a primeira vez que falamos. É porque com ele as conversas acontecem naturalmente assim, desarmadas e generosas, como se fossem sempre coisa de amigos.
Falamos a pretexto de Jangada, o terceiro disco do trio que há 16 anos mantém com Alexandre Frazão e Bernardo Moreira. E Mário entusiasma-se a explicar como o confinamento trouxe liberdade a este disco e como sente que nunca estiveram tão perto de conseguir o milagre de reproduzir em estúdio a energia do palco. Mas rapidamente a conversa navega noutras direções e aponta novos rumos. Gostava de fazer mais um disco em trio com guitarra portuguesa, talvez também outro com Camané, a voz que o convocou para o fado e acabou de vez com a sua “embirraçãozinha”.
Mas a grande novidade é mesmo um novo disco a solo, aguardado sucessor do admirável Canções e Fugas, de 2006, que já se começa a desenhar e do qual pudemos escutar alguma coisa em primeira mão. Será apenas o segundo disco a sós com o piano, numa discografia que se estende já por quase trinta títulos e quarenta anos de gravações.
E as notícias sucedem-se. Conta que há duas noites seguidas reservadas na Aula Magna em junho, revela que se prepara para em breve voltar à estrada com Maria João e explica como vai nascer, já este ano, um Festival de Jazz Bernardo Sassetti. Parece muita coisa, mas é capaz de não ser tudo. É que nesta conversa, experimentar é talvez o verbo que mais se conjuga.
[ouça o álbum “Jangada”, do Mário Laginha Trio, através do Youtube:]
Dizes no texto de apresentação que este é o disco mais livre do trio.
Acho que sim. É ainda assim um disco de temas, não é um disco de improvisação livre. Não é que não haja. Por acaso no tema “Jangada” há improvisação. Mas é um tema que tem 17 minutos… não sei se alguma vez tinha gravado uma coisa em disco com 17 minutos…
Não será o single…
Não será certamente o single. Esse tema nasce de uma encomenda, um desafio para fazer um concerto que associasse música e literatura. E o desafio veio da Fundação José Saramago, em parceria com a Casa Fernando Pessoa, onde agora estamos…
E daí estar aqui outro tema que é o “Desquiet”, remetendo para o Livro do Desassossego.
Sim. Fiz os dois temas para o mesmo concerto. Tentei agarrar em livros que eu gostava e criar alguma relação entre música e esses livros.
O que é que sobra de um livro que se possa perceber numa música?
São sobretudo imagens…
Há uma passagem no “Jangada” em que parece que embarcamos num rápido a descer um rio.
E é mesmo isso! A Jangada de Pedra é um livro lento e pesado, aquela ideia da Península Ibérica se desprender da Europa e seguir navegando pelo Atlântico. Mas entre as cenas dos estorninhos e alguns momentos de incerteza na história, há um movimento que quis captar. E acho que o facto de termos andado a tocar mais naquele período, um bocado antes, nos fez estar mais descontraídos a tocar em trio, a pensar menos.
Andavam a tocar mais, precisamente por causa da pandemia.
Sim, porque não tínhamos concertos.
Engraçado: o confinamento trouxe liberdade?
Neste caso trouxe, sim. Tínhamos vontade de fazer isto e tínhamos já combinado, antes da pandemia, que iríamos tentar, sempre que houvesse disponibilidade, tocar juntos mesmo sem um concerto para ensaiar.
Normalmente só ensaiam quando há concertos?
Sim… depende se o repertório já está sólido ou não, ensaiamos um dia ou dois para um concerto. E aqui a ideia era ‘bora lá tocar, às vezes sem que o objetivo fosse propriamente um ensaio, apenas a vontade de tocar em conjunto. Podíamos tocar uns standards, improvisar… Veio a pandemia, tivemos de parar ali durante aquela fase mais violenta, mas depois continuámos a juntar-nos. E portanto, sim, a ausência de liberdade, de certa forma, deu-nos a possibilidade de experimentar outras liberdades. Depois, quando fomos para estúdio sentimos uma liberdade grande a tocar.
Também dizes que este é o disco mais próximo de ouvir o trio ao vivo.
Escrevo estas palavras a posteriori, quando oiço o disco. E sim, digo que dos três discos que temos — depois do Espaço [2007] e do Mongrel [2010], dedicado ao Chopin — este é o que está mais próximo dos nossos concertos. Ao vivo as coisas são sempre diferentes, às vezes os solos são maiores, às vezes está a apetecer e toca-se mais um pouco. Raramente acontece isso em estúdio. Temos a estrutura do tema, quem sola primeiro, quem sola depois, e os solos nunca são muito longos. Mas aqui há mesmo partes improvisadas. Logo no primeiro tema, por exemplo, que começa super melancólico, no solo a coisa começa a criar uma certa energia e deixamos de estar na estrutura do tema para ficar numa coisa mais modal. Isso aconteceu e fomos por aí.
Simplesmente aconteceu?
Sim. E lembro-me quando fizemos esse take — fizemos uns três desse tema, acho eu — tínhamos todos a certeza de que aquele era “o” take, porque havia essa energia.
Escreves que “há um lado milagroso em conseguir que o prazer que um grupo de músicos tem em tocar seja sentido pelas pessoas ao ouvir.”
Exatamente, andamos sempre à procura disso.
Isto é o mais próximo que já estiveram do milagre?
[Risos] Talvez. Sempre tivemos prazer em tocar, mas comunicar o prazer é outra coisa. Conseguir que as pessoas se apercebam dele…
Terem prazer com o vosso prazer.
Exato. Perceber essa joy on stage, captar essa alegria que temos de estar ali a tocar. Acho que neste disco o milagre aconteceu.
Há aqui dois temas que nascem de livros. Os outros nascem do quê?
Houve uma altura em que fui convidado para tocar na Culturgest, era ainda o Miguel Lobo Antunes o diretor artístico. Ele gostava que acontecesse sempre qualquer coisa um bocadinho especial ali — o que eu acho que é bom, tentar estimular o artista a fazer uma coisa um bocadinho diferente do que aquilo que anda a fazer regularmente. Disse que gostava de fazer isso com o trio, mas que achava graça escrever alguma música de propósito. E alguma dessa música, que não estava em disco nenhum, está aqui. Isto é uma coleção dos temas que fui fazendo nos últimos anos. Não é que eu não consiga mais ou menos criar uma história à volta deles. Mas não foram todos fruto da mesma encomenda.
A unidade está mais na energia do trio do que numa unidade temática.
Sim. Por acaso acho que quando se ouve a música o trio tem uma identidade própria. E desta vez eu quis que isso fosse mais além. Aliás, eu tenho o LAN trio [com Julian Argüelles, saxofone, e Helge Andreas Norbakken, bateria] e tínhamos gravado para esta editora, a Edition Records …
Era uma pergunta que trazia: porquê a mudança de editora?
Bem, o primeiro disco do trio foi da Clean Feed, mas não foi um disco que eles pediram para fazer, apenas um disco que quiseram editar depois de feito, e o segundo foi edição de autor. Portanto, esta mudança é importante mas não é por cisão com ninguém. Agora, é evidente que uma editora que tem o Dave Holland, o Chris Potter, a Gretchen Parlato, aquilo acaba por ser visto e ouvido por mais gente. E eu queria estar numa editora que tivesse isso…
Querias fazer parte de um bom catálogo.
Sim. E isto para dizer que, através do LAN, eu já conhecia o dono da editora, o Dave Stapleton. Até achei que devia perguntar ao Julian se ele achava mal que eu tentasse editar este trio pela mesma editora. Isto realmente é um raciocínio muito português, coisinha pequena. Claro que ele disse que não, que achava fantástico. Então mandei o disco ao Dave Stapleton e disse “olha, eu gravei isto com o trio português, e gostava que saísse pela tua editora, que tivesse mais visibilidade”.
Há alguma relação entre isso e todos os temas, exceto um, terem título em Inglês?
Há. Os temas tinham nome em português. Mas já explico porquê…
Certo, continuemos.
Ele por acaso até demorou a responder, disse que estava com pouca disponibilidade para ouvir e tal, e eu achei que, pronto, estava só simpaticamente a chutar para canto. Mas uns dois meses depois, já comigo a achar “pá, o gajo não quer isto”, ele responde a dizer “ouvi, soa-me mesmo muito bem e eu quero o disco”. A dada altura — e agora vou responder — pergunta-me: “fazes mesmo questão de que os temas sejam todos em português?” Disse-me que eu é que sabia, que respeitava a escolha, mas que achava importante que quem pega no disco e ouve consiga criar alguma espécie de relação com aquilo, mais que não seja por perceber que na cabeça do compositor o tema tem aquele título.
E para ti isso não era relevante.
Quase todos os temas me nascem sem título, depois eu ando ali à procura de um nome. Não é aquela coisa de eu imaginar uma ondulação do mar e o tema é inequivocamente esse. Normalmente isso não acontece. A música aparece, eu escrevo-a e depois ando a pensar nela. Algumas acabam por me dizer alguma coisa, outras não. Às vezes é um martírio arranjar um nome. Portanto, que ele me pedisse para traduzir os nomes, por aquela razão que me deu, não era nada que me chocasse.
Camané e a descoberta do fado
Voltando à questão do trio. Começas com o Quinteto de Jazz de Lisboa, crias o Sexteto de Jazz de Lisboa, chegas a fazer um Decateto na Gulbenkian…
E durante uns tempos toquei em quarteto e também fiz um disco em quinteto, o Hoje, com este trio, o Julian Argüelles no saxofone e o Sérgio Pelágio na guitarra…
Mas o trio é o formato em que trabalhas melhor.
Sim… na verdade é um formato clássico, que acho que está para o jazz para aí como o quarteto de cordas para a clássica. Acho que não há pianista de jazz que não toque alguma vez em trio…
Certo, mas vai mudando a formação e mantendo o formato. Além do Mário Laginha Trio e do LAN, existe ainda o Mário Laginha Novo Trio, em que sai a bateria do Alexandre Frazão e entra a guitarra portuguesa do Miguel Amaral…
Sim, é verdade. Gosto da energia a três. Aí tinha vontade de experimentar. Guitarra portuguesa é um instrumento incrível, mas está muito preso na ideia de que é para fado. E é para mim óbvio que é um instrumento com potencialidades para muito mais. Por acaso até gostava de vir um dia a fazer mais um disco…
Com a guitarra portuguesa em trio?
Sim. Quando se experimenta um território que não está muito explorado, que é sempre um desafio apaixonante, começamos a perceber o que funciona bem e o que não funciona. E hoje, ao ouvir aquele disco [Terra Seca, 2013], de que me orgulho muito, já oiço coisas que acho que faria diferente agora. Mas gosto de experimentar, fazer coisas…
Tens muita coisa feita para voz de fadistas.
Mais recentemente, sim.
O fado é uma descoberta tardia?
É tardia em relação à época em que apareci a tocar. Nos meus vintes, o fado não me dizia nada, confesso que até tinha uma embirraçãozinha. Tudo aquilo era rítmica e harmonicamente simples demais. A minha cabeça estava a querer descobrir harmonia e coisas que eu não compreendesse, coisas em que não soubesse sequer que acordes eram aqueles. O primeiro cantor que me fez pensar “isto está a dar-me um grande gozo ouvir” foi o Camané. Já disse isto em vários sítios. Foi ele que me fez, já numa época diferente, dizer “deixa cá ouvir um bocadinho mais, sem preconceito nenhum”. Pouco a pouco comecei a perceber que gostava. Não gostava de tudo, como não gosto do jazz todo, mas gostava. Depois comecei a ouvir a Amália e descobri o absurdo, a coisa de haver uma cantora assim. Percebi que era uma cantora num milhão, que só de vez em quando no universo aparece alguém assim. Mas a primeira brincadeira com o Camané já foi feita para aí há vinte anos.
Até que deu um disco.
Há três anos recebo um telefonema dele a desafiar-me para prepararmos um concerto a dois e irmos para a estrada. Eu disse “bora”. Começou por ser um concerto e depois como sou tão bem tivemos a vontade de o gravar em disco [Aqui Está-se Sossegado, 2019]. Tivemos muitos concertos, mas se não tivesse sido a pandemia então tinha sido incrível.
Quantos foram?
Tivemos uns 50 convites e acho que fizemos uns 30 concertos. O que é ótimo. Nos dias que correm é um milagre. Tem sido uma construção, tocar piano a acompanhar um cantor de fado, sem tentar em momento algum ajazzar aquilo. Tentar descobrir um modo de tocar que respeite a tradição. Às vezes pegava num fado, tocava até me começar a soar bem. Depois ia ouvir o trio dele a tocar, que é o Rolls Royce da coisa, e ficava lixado. Bolas, ainda não está lá! Mas gosto muito da experiência e até gostava de fazer outro disco…
Isso já tem data?
Essa não. Ainda não sei se vai acontecer. Mas gostava e pode ser que um dia aconteça.
Finalmente, um novo disco a solo
Estás prestes a completar quarenta anos de discos…
Bolas! [não foi este o termo originalmente empregue]
E fazendo contas apenas aos últimos trinta anos, contei 26 discos. Só um é a solo…
[Risos]
…não gostas muito de estar sozinho, pois não?
Pá, adoro estar com alguém a fazer música, a coisa da partilha. Mas a verdade é que gosto também muito de tocar a solo. E aqui entre nós, que ninguém nos ouve, estou a preparar um novo disco a solo.
Isso é notícia! Aqui entre nós, claro.
E foi o que fiz mais na pandemia, escrever música para um disco a solo. E está quase.
Tem um pretexto formal como tinha o Canções e Fugas [2006]?
Um pouco menos… vou dizer uma coisa que pode soar muito mal…
Força, se soar a gente não transcreve.
Boa. Acho que o Canções e Fugas é o disco mais importante que eu fiz. Fugas de piano completamente escritas, entremeadas com improviso… não conheço mais nada do género. A única coisa que me lembro é o After Bach, do Brad Mehldau, que é um disco magistral. Não me quero comparar, o Mehldau é um pianista estratosférico. Mas, sem ser aí, em que ele mistura algumas coisas escritas, às vezes mesmo coisas de Bach, às vezes outras que ele liga a Bach, acho que não há nenhum outro disco a solo que ande nesses territórios. Porque as fugas são todas escritas, mas reconhece-se a influência do jazz. E eu orgulho-me muito disso.
Era isso que ia soar mal?!
Não queria soar presunçoso… Mas de vez em quando há um gajo do Japão ou de um sítio assim que me vem dizer “eu ouvi este disco e mudou a minha vida”. Às vezes recebo pedidos das partituras, já fui tocar aos Estados Unidos porque alguém ouviu o disco e quis muito fazer um concerto. De vez em quando há assim umas coisas, apesar de ser um disco que ficou um bocadinho…
Passou despercebido?
Acho que sim, um bocadinho.
Porquê?
Há um lado que eu percebo. O pessoal que flipa a ouvir aquilo são sempre músicos. Não é um disco fácil. Se calhar é um defeito que tem. E eu não quero fazer discos para músicos, quero fazer a música que me apetece fazer e quanto mais gente gostar melhor. Mas aquele deu para perceber que não é um disco fácil.
Essa preocupação está presente neste novo disco que estás a preparar? “Isto não pode ser para músicos”.
Sim! Quer dizer, eu quero que não, mas às vezes sai-me… Tem também alguma música complexa. Normalmente quando estou a escrever começo a pensar piano solo…
[vira-se para a frente e põe as mãos no teclado do piano]
…e às vezes começo a fazer qualquer coisa. Por exemplo, eu sempre gostei de fazer melodia na mãos esquerda. Até no LAN tenho um tema que é
[toca repetidamente uma estrutura de um compasso com a mão esquerda]
…e depois…
[entra a mão direita com uma segunda melodia]
Agora queria fazer uma coisa com uma estrutura um nadinha maior, num ternário…
[começa a fazer o desenho com a mão esquerda, e em seguida põe a mão direita a fazer a segunda melodia. Durante um minuto e meio desenvolve um tema que está a trabalhar para o próximo disco]
…e é isto, depois entra o improviso. Ainda me engano, isto está a nascer. Mas também não é propriamente fácil, tem sempre duas melodias a andar.
Já há data para esse novo disco a solo?
Ainda não. Na realidade, em 2021, que estava a parecer muito vazio, achei que iria escrevendo e tocando e acabaria por gravar no início de 2022. Depois comecei a ter muita coisa. É uma coisa para fazer com calma e quero que seja um disco que tenha algum statement, pela composição e pela improvisação. Não quero que não seja só mais um disco de piano solo com uns temas, sem grande marca.
Duas vezes três na Aula Magna
E concertos deste Jangada?
Já tocámos dois este ano! Um em Ourém, outro em Espinho. Em junho estamos na Aula Magna.
Isso também é notícia. Já tem data?
Dois dias seguidos na Aula Magna. No dia 1 com o LAN trio, no dia 2 com o Mário Laginha Trio. Foi um pedido, mas eu acho doido…
Achas que não há público para duas aulas magnas?
Nem para uma! Mas o programador é um tipo com muita graça, que até se tornou conhecido nos últimos tempos. No princípio da pandemia, um dos matemáticos que ia à televisão falar do Covid do ponto de vista da progressão epidemiológica, é o Henrique Oliveira, que é um melómano também. Ele tinha orçamento para fazer um festival e queria muito que eu fosse lá com os dois trios. E aquilo avançou. Vamos ver.
Também és programador. Diretor do Festival Internacional de Jazz de Loulé.
Que mudou o nome agora para Loulé Jazz. Porque nesta última edição fez-se com um cartaz exclusivo de músicos portugueses. Exato. Há aqui várias coisas que se ligam. Fui convidado para ser diretor de um festival que já tinha nome e que já tinha uma história…
E isso já foi há mais de dez anos.
É verdade. Muito mais tempo do que eu imaginei ficar. Mas aquilo é a terra da minha mãe e há ali uma ligação e eu adoro ir lá todos os anos. Eu digo-lhes sempre “eu acho que não me vou despedir, portanto quando quiserem que isto pare digam-me” (riso).
Serem só portugueses foi uma escolha…
Então, 2020 não houve festival, começa-se a fazer contactos para 2021. A ideia era ter alguns nomes internacionais, como sempre, mas não se conseguem confirmações. Era tudo talvez, condicional, deixa ver. E alguém lá da Casa da Cultura diz “isto este ano devia ser só portugueses”. E aquilo fez plim! Claro!
Houve um lado de solidariedade com os músicos que precisavam de palco.
Precisamente! E eu a pensar “como é que eu não me lembrei disto? É óbvio!” Não só fazia sentido pelas restrições de viagens dos internacionais como o pessoal cá não tinha trabalho nenhum. E foi daí também que veio a preocupação de tentar que houvesse dois concertos por dia para pôr muita malta a tocar. Pôr o máximo possível, mesmo pedindo que os concertos fossem mais curtos, à conta disso. Pronto, e aí começava a não fazer sentido que se chamasse festival internacional.
Um festival para Bernardo Sassetti
Então o que podemos esperar do Loulé Jazz este ano?
Este ano será uma coisa muito diferente…
Outra notícia?
Sim. Vai existir um Festival de Jazz Bernardo Sassetti.
Ideia tua?
Não, não tenho nada a ver com isso, a não ser pelo facto de ser pai de uma tal Inês, que está na direção artística da Casa Bernardo Sassetti. A ideia surgiu lá e acho que vai ter muita graça. Terá sempre, na semana anterior, workshops dados por uma banda que venha de fora e outra banda de nacional que também dê workshops, e no final haverá apresentação dos combos que saíram dessa semana de trabalho. Depois um festival de jazz, com um cartaz próprio de artistas nacionais e internacionais…
Então o Loulé Jazz passa a ser Festival Bernardo Sassetti?
Já vou chegar aí — mas está a pensar bem. A ideia desse festival é que vai ser itinerante e cada ano vai a uma cidade. E, sabe a Inês, como sabe mais ou menos o país inteiro, que Loulé está sempre na vanguarda destas coisas. Ela a princípio receou propor à Câmara, não queria criar nenhum conflito ou incompatibilidade por eu estar lá. E então apareceu esta ideia de num ano o Loulé Jazz ceder o espaço ao Festival de Jazz Bernardo Sassetti. Para nós é importante, desde que não se esqueçam de que o Loulé Jazz continua e que teve a generosidade de ceder o espaço àquele festival, que no ano seguinte continuará noutra cidade, em itinerância. Portanto, na realidade este ano a programação de Loulé até vai ser dividida, entre eu dar alguns nomes e a minha filha Inês, com a Casa Bernardo Sassetti, escolherem outros.
É a décima edição contigo em Loulé e faz também dez anos que o Bernardo desapareceu.
Nem tinha relacionado. Bela coincidência!
O que é que fica ao fim de dez anos? Os vossos nomes eram quase consequência um do outro.
Ele tinha menos dez anos que eu. Lembro-me de o ouvir a primeira vez e pensar “eh pá, que bem que ele toca”. E nunca deixei de pensar o mesmo a ouvi-lo. Sempre que nos desafiavam para qualquer coisa e dávamos um passo juntos, essa coisa corria bem. Os espectáculos a dois, a ideia dos três pianos…
O Grândolas.
O Grândolas! Isso nasceu de uma encomenda do Ruben de Carvalho. Ainda me lembro, telefonou-me a dizer “’bora comer um bacalhau com grão ao Buzio”. Ele sabia que eu morava lá ao pé, na Praia das Maçãs, e o Búzio, além do peixe fresco, tem sempre bacalhau com grão. E foi aí que ele fez o desafio, para fazer uma coisa para os… eram 25 ou 30 anos do 25 de Abril?
2004, 30 anos.
Foi isso. A ideia era fazer um disco e o primeiro concerto fazer-se na Festa do Avante, com músicas de resistência de todo o mundo. E também músicas que estiveram para ser sinal do 25 de Abril e não foram, para além do “E Depois do Adeus” e do “Grândola Vila Morena”. E ele sabia disso. E depois deu-nos cassetes com músicas e nós andámos ali a escolher repertório. Gravámos num dia esse disco. Fomos fazendo coisas… Uma vez fomos tocar standards de jazz ao CCB, a dos pianos. Esse nunca ficou em disco, foi pena, estava porreiríssimo. Em relação a ele agora não estar…estou a fugir um bocado à pergunta, não é?
Não quero transformar isto n’ “O que dizem os teus olhos”…
[Sorriso largo] Que dizer quando perdemos um grande amigo, um irmão, quem nos é importante? A vida vai ter de continuar, e continua melhor quando as memórias são boas. E as memórias aqui são muito boas. Também por isso, quando penso no facto de ele não estar, se calhar a tristeza é maior. Mas de resto as coisas boas foram tão boas que pertencem ao alicerce da nossa existência. Somos as nossas memórias e elas serem boas tornam os nossos alicerces melhores e mais poderosos. Quanto jantares e encontros de amigos não acabamos todos à gargalhada a contar histórias do Bernardo? E gargalhada franca, porque é como eles nos punha a rir com o seu humor desconcertante. Ele adorava o absurdo… isso está cá.
E vai dar um festival.
Fez-se a Casa Bernardo Sassetti e acho que ela nasceu muito rápido por uma razão óbvia: tínhamos de ocupar aquela falta dele. É uma casa que tenta divulgar e partilhar a música dele, mas também a energia. Isso é que é importante manter. É importante haver um Festival Bernardo Sassetti, que pode ter música dele, mas não tem de ter. Porque o mais importante é incentivar uma das razões de existência do Bernardo, que era criar. O importante é passar essa ideia de estímulo à criatividade. É bom que venham tocar ao festival pessoas que sejam criadoras e que tenham também elas a sua história para contar. Porque a preservação da música dele não está em perigo, pela simples razão de que é muito boa. O Bernardo deixou uma coleção de temas, canções e música para orquestra muito, muito inspirada. E isso é uma coisa que não morre.
Na estrada com Maria João
Falando em nomes que são quase apelido um do outro…
Sim, a Maria João…
Tirando o Songlines, álbum de 2019 que reúne mais gente, há bastante tempo que não gravam a dois…
O último foi o Iridescente [2012]. O último em nome dos dois.
Já não faz sentido?
Acho que houve um statement. Havia tanto para dizer e acho que dissemos, desbravámos caminhos, experimentámos coisas. Coisas importantíssimas para aquilo que sou musicalmente. Ela despertava em mim… para já a capacidade de se fazer tudo. Podia ser rápido, podia ser lento, agudo, grave, rítmico, tudo era possível. Fomos fazendo discos e mais discos, treze ao todo. É muita música, apesar de tudo.
É metade dos tais 26 discos dos últimos 30 anos.
Pois. Não sei se haverá muito duos de jazz no mundo com tantos discos gravados. Na realidade, tocar com a Maria João é uma coisa que não deixa espaço para muito mais. Não só porque há sempre muitos concertos como ela é… ela absorve! É tudo muito. Às vezes eu tinha vontade de fazer outras coisas, de experimentar, e não havia tempo por isso. E ela igualmente. E há um momento, que julgo que aconteceu de parte a parte, em que ambos tínhamos coisas que queríamos experimentar que não eram com o outro.
Parece um casal que decide entrar numa relação liberal.
É quase. E a sensação que eu tinha era que, a fazer outro disco, não era para continuar a subir, a desafiar, a desbravar e fazer diferente. Era um manter, já com algum… como dizer…
Comodismo.
Sim. O que é perigosíssimo. E então eu acho que foi uma coisa natural. Eu quero fazer um disco em trio, um disco com o Bernardo, um disco a solo, ela quer fazer um disco naquela cena eletrónica. Eu precisava fazer outras coisas e ela igualmente. Acho que cada um sente que já temos o nosso statement enquanto duo. Agora a pergunta: nunca mais…?
Nunca mais?
Há duas semanas tocámos ao pé de São Paulo, no Brasil, em duo.
Vou daqui cheio de notícias.
A Mónica Salmaso, cantora brasileira. Ela é incrível. Ela é nossa fã desde sempre, gosta imenso dos nossos discos, diz que para ela foram transformadores. E ela é curadora de um festival e telefonou-me há uns meses e perguntar se não punha nenhuma hipótese de irmos em duo. E eu, claro que sim. Ensaiámos duas vezes, chegámos lá e parecia que tínhamos tocado no dia anterior. E agora há uma outra proposta. A Salmaso tem um duo com o Nelson Ayres [pianista] e há uma proposta para criarmos um espetáculo a quatro: primeiro um duo, depois o outro e por fim os quatro juntos. Julgo que isso está bem encaminhado e se acontecer vamos voltar à estrada, eu e a Maria João, com muitos concertos no Brasil. Vai ser bom. No outro dia estava a tocar aquele repertório — eu escrevi aquela música, para todos os efeitos — e lembro-me de pensar assim: “isto até que nem saiu nada mal”.