“Um impacto importante”. É desta forma que o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) classifica o efeito da greve às horas extraordinários dos médicos dos centros de saúde, que se arrasta há quase quatro meses, e que já deixou mais de 300 mil consultas por realizar, segundo as estimativas avançadas por Jorge Roque da Cunha ao Observador.
A região mais afetada é a de Lisboa e Vale do Tejo, uma vez que é nesta área que se concentram dois terços dos utentes sem médico de família, que são a maioria dos que recorrem às consultas nos serviços de atendimento complementar. Ao Observador, uma médica que trabalha numa Unidade de Saúde Familiar (USF) do concelho de Loures confessa que se sente “sobrecarregada” e explica as razões pelas quais decidiu aderir à greve.
Ao contrário da indisponibilidade dos médicos hospitalares para realizarem trabalho extraordinário para além das 150 horas previstas na lei (e que está a ter um impacto significativo em várias unidades hospitalares do país), a greve que está a afetar os centros de saúde afeta todo o trabalho extra, independentemente do número de horas suplementares já feitas pelos médicos de família.
90 mil consultas/mês ficaram por realizar desde o verão
Iniciada a 24 de julho, a greve às horas extra nos centros de saúde não tem tido o mesmo impacto mediático que a recusa dos médicos hospitalares em realizarem mais trabalho extra. No entanto, o impacto no terreno “é especialmente importante”, diz Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do SIM, acrescentando que a greve tem “provocado sérias dificuldades de acesso aos cuidados de saúde primários, sobretudo para as pessoas que não têm médico”.
Greve de médicos ao trabalho suplementar em centros de saúde prolongada até 24 de novembro
Segundo Roque da Cunha, responsável pelo sindicato que convocou a greve, cerca de 70% dos médicos que realizam trabalho extraordinário aderiram ao protesto. Desde o final de julho, já ficaram por realizar mais de 300 mil consultas (cerca de 90 mil por mês). A falta de resposta aos doentes sem médico e a situações de doença aguda têm repercussões nos hospitais, com um aumento da afluência às urgências. “Isto aumenta a pressão nas urgências hospitalares, uma vez que os centros de saúde não dão resposta”, salienta o responsável.
A greve está a fazer-se sentir com especial intensidade na região de Lisboa e Vale do Tejo — onde vivem mais de 1 milhão e 100 mil pessoas sem médico atribuído — e onde existe “uma maior necessidade de horas extra por parte dos médicos”, lembra o secretário-geral do SIM.
Desde o verão que a médica Maria João Tiago, que trabalha na USF São João da Talha há 17 anos, não dá consultas no serviço de atendimento complementar de Moscavide. Sentia-se “sobrecarregada” com uma carga diária de trabalho de 12 horas, e não estava satisfeita com a qualidade dos cuidados prestados aos utentes, confessa, ao Observador. “O atendimento tem sempre grandes filas, porque é o único recurso que os utentes sem médico têm para acederem aos cuidados”, diz a médica. Só no Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) Loures/Odivelas, a que pertence a USF onde Maria João Tiago trabalha, 30% da população não tem médico de família, isto é, mais de 114 mil pessoas, de acordo com os últimos disponíveis no portal dos cuidados de saúde primários do SNS.
Atendimento complementar de Moscavide já não garante resposta por falta de médicos
Limitado, o serviço, que costumava contar com três a quatro médicos antes do início da greve, nem sequer abre portas em muitos dias, adianta a médica — quando deveria funcionar das 18 às 22h nos dias úteis, e durante das 8h às 14h aos fins de semana. Para muitos utentes, a solução é dirigirem-se às urgências do Hospitais de Loures, de Santa Maria ou de São José, onde podem enfrentar vários horas de espera até serem vistos por um médico.
Para Maria João Tiago, o trabalho médico no serviço de atendimento complementar de Moscavide (onde se concentram os médicos da zona) é condicionado por várias insuficiências, que dificultam uma resposta de qualidade às pessoas. “Os colegas estão descontentes por vários motivos: pelas condições físicas dos consultórios, pelo estado dos sistemas informáticos — que são obsoletos –, pela violência que sofrem por parte de alguns utentes descontentes. Os médicos sentem que estão a prestar um atendimento que não está de acordo com os padrões de qualidade”, sublinha a médica, acrescentando que, no seu caso, os motivos para a greve são os mesmos. “Estou a ir para um local onde não há forma de pedir meios de diagnóstico, de fazer o seguimento do doente, etc. Isso traz-me problemas éticos e não posso continuar a compactuar com o ‘faz de conta’ do atendimento aos doentes sem médico“, diz.
Para além disso, a médica realça os desafios levantados pelos utentes que se chegam a essas consultas com situações não agudas. “Estas consultas deveriam servir para o atendimento a situações de doença aguda (amigdalites, pneumonias, infeções urinárias, lombalgias) mas servem, nesta fase de falta de médicos, para atender também pessoas sem médico, nomeadamente para vigilância de gravidezes”, explica a médica, sublinhando que dois exemplos concretos em que a ação do médico fica limitada.
“Por exemplo, se aparecer uma grávida hipertensa que precise de ser seguida numa consulta de gravidez, eu não consigo referenciar a grávida, nem pedir rastreio do 1.º trimestre, que nos permite detetar anomalias, como o síndrome de down e outras deficiências”, diz Maria João Tiago, chamando a atenção para o elevado número de imigrantes que recorrem ao serviço, principalmente provenientes do sudeste asiático.
Greve nos centros de saúde deverá manter-se até ao início de dezembro
“Só posso referenciar um doente com um tumor para o serviço de urgência, o que não é correto”, exemplifica ainda a médica. “Este serviço é mais uma sobrecarga para além do horário normal, e para além disso, não nos oferece garantias”, conclui.
Apesar das diferenças em relação às escusas a mais horas extra (além das 150 anuais) entregues pelos médicos hospitalares, a greve às horas extra nos cuidados de saúde primários tem por base as mesmas preocupações. “É uma forma de protesto em relação ao processo negocial com a tutela, à questão salarial, à questão do tempo de trabalho, à falta de investimento no SNS“, explica Jorge Roque da Cunha, acrescentando que, se por um lado o sindicato que representa não deseja o prolongamento da greve, por outro, acusa o governo de ser responsável pelos constrangimentos causados, uma vez que o Ministério da Saúde “tem sido incapaz de chegar a acordo com os médicos”.
Segundo o movimento Médicos em Luta, a greve dos médicos às horas extra já afeta praticamente metade dos Agrupamentos de Centros de Saúde. No início de novembro, o Sindicato Independente dos Médicos anunciou o prolongamento do protesto até ao último dia de 2023. No entanto, ao Observador, Jorge Roque da Cunha já tinha admitido que esta greve poderá ser suspensa quando a Assembleia da República for dissolvido e o governo demitido, o que deverá acontecer, segundo deu nota Marcelo Rebelo de Sousa, no início de dezembro.