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Menos hip hop, mais homens, menos América, mais funk: metade da música mais ouvida em Portugal no Spotify é brasileira

Em 2022, 51% do Top 10 semanal do Spotify é feito de música brasileira. Que canções são estas? Como chegaram aos primeiros lugares do top? E que outras tendências ficam deste ano que agora termina?

A matemática era simples: contavam-se os discos vendidos, acertavam-se as contas com a bagatela do digital e a Associação Fonográfica Portuguesa revelava os resultados. Há dez anos, o espanhol Pablo Alborán liderou durante 37 semanas as tabelas de vendas em Portugal, recebeu os discos de platina, deu concertos em volta olímpica e “ni una sola palabra más”. Mal sabíamos que era o final de uma época, o mercado discográfico estava em queda livre e o consumo digital ainda era residual. Em 2022, é o mundo do avesso: os serviços de streaming dominam cada vez mais, contabilizam-se platinas com streams e contas de merceeiro e ninguém sabe ao certo a quantas andamos.

O streaming é anárquico por natureza, não obedece às regras a que a indústria discográfica nos tem habituado e manobra sublevações que o vagar da história não acompanha. Uma solução é seguir-lhe o rasto. Foi o que fizemos em 2019, quando revelámos que 47% do Top 10 semanal do Spotify era composto por música portuguesa. Em 2022 aconteceu mais uma sublevação, uma alteração nos hábitos musicais dos portugueses: metade da música mais ouvida em Portugal via streaming é brasileira. Como chegámos aqui? A informação que revelamos de seguida tem por fonte uma análise sistemática aos dados públicos do Spotify referentes a Portugal, baseados somente nos dez lugares cimeiros que a plataforma disponibiliza semanalmente.

O funk é rei em Portugal. Como chegou ao trono?

Há três anos, a música brasileira representava 7% entre as 520 músicas do Top 10 semanal do Spotify. E 7% não era de somenos, como foi devidamente destacado pelo Observador: “Em comparação com o resto do mundo, uma das particularidades do consumo musical em Portugal é a presença constante de canções brasileiras (…) o funk é o género mais exportável de música brasileira, sendo Portugal o melhor exemplo desta exportação, equiparado somente com o vizinho Paraguai.” No ano seguinte, o consumo de música brasileira subiu ligeiramente: 9%. A grande diferença aconteceu em 2021: a música brasileira correspondeu a 32% das canções de sucesso. Finalmente, em 2022, regista-se uma alteração completa do paradigma: 51% do Top 10 semanal do Spotify em Portugal é composto por música brasileira.

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É do brasileiro Pedro Sampaio a canção mais ouvida de 2022 no Spotify em Portugal: "Dançarina"

Primeira questão: qual a música brasileira que se ouve em Portugal, será a mesma que se ouve no Brasil? A cantora de sertanejo Marília Mendonça, que morreu no ano passado, é a artista mais ouvida no Spotify no Brasil em 2022, e os seguintes artistas mais populares são também representantes da música sertaneja: Henrique & Juliano, Jorge & Mateus, Gusttavo Lima e Maiara & Maraisa. Apesar de figurar entre os músicos mais ouvidos em Portugal, nem Marília Mendonça, nem qualquer um destes cantores de sertanejo surgem uma única vez no Top 10 semanal português. Ou seja, assinala-se outro fenómeno: a música brasileira que se ouve em Portugal não é exatamente a mesma que se ouve no Brasil.

São estas as dez canções mais ouvidas em Portugal no Spotify em 2022:

  1. “Dançarina”, de Pedro Sampaio
  2. “Malvadão 3”, de Xamã
  3. “As It Was”, de Harry Styles
  4. “Lua”, de Ivandro
  5. “Galopa”, de Pedro Sampaio
  6. “Morena”, de Luan Santana
  7. “Heat Waves”, de Glass Animals
  8. “Simplesmente Ela”, de MC Gabzin
  9. “Onde Anda”, dos Calema, Zé Felipe
  10. “Mon Amour — Remix”, de zzoilo, Aitana

O funk é rei em Portugal. A música pop, maleável em todas as suas configurações — pop-rock, pop-EDM, etc — ainda é a mais popular, mas conta números muito próximos do funk brasileiro. Nesta análise, 40% das canções são pop e 38% são funk, com apenas 22% de outros géneros musicais — este cenário polarizado entre pop e funk é anómalo em comparação com os restantes países europeus. O funk que os portugueses gostam é essencialmente “safado”, confortável com a sua sexualidade, a começar pelas duas canções mais ouvidas em Portugal: “Dançarina”, de Pedro Sampaio, e “Malvadão 3”, de Xamã. Se as insinuações de Pedro Sampaio a senhoras “doidas pra sentar” são suficientes para o enrubescer, não se aventure pelas restantes canções populares em Portugal, desde os suspiros lascivos de “Ai preto”, ao sucesso do momento, “Evoque Prata”, uma noite de delinquência a bordo de um Ranger Evoque, com beat do DJ Escobar, o autointitulado “faixa preta da putaria”.

A maioria destas canções não são transmitidas nas rádios de maior audiência (Comercial, RFM, Renascença), seja pelo rigor da curadoria ou pela lascívia do género musical. Mas existem canções brasileiras de sucesso que são transmitidas regularmente nas rádios jovens (Cidade FM, Mega Hits), como o hip hop brasileiro, seja trap, drill ou a série intimista “Poesia Acústica”. A febre da pisadinha, uma espécie de forró pimba, também chegou finalmente a Portugal, através da “Malvada” de Zé Felipe — “Coloca o capacete que lá vem pedrada”. E não somos despromovidos de apreciar uma bela dor de corno, o sertanejo, e em particular Luan Santana, que também marca presença nos tops do Spotify. Esta mudança drástica do gosto popular ainda favoreceu os portugueses que colaboraram com músicos brasileiros em 2022: Mizzy Miles trocou versos com o rapper baiano Teto, e os Calema atiraram-se à pisadinha de Zé Filipe.

Ivandro é um fenómeno extraordinário de popularidade, seja como artista solo ou ao lado de Bárbara Bandeira — “Como Tu” foi a única música portuguesa a alcançar a posição cimeira, com três semanas seguidas na liderança. Ao contrário do que sucedeu em 2019 e 2020, as canções populares nacionais não refletem uma “cena” musical de sucesso, apenas artistas avulso que conseguem romper o mainstream.

A soma do funk, hip hop brasileiro, pisadinha e sertanejo traduz-se numa soberania entre os ouvidos portugueses. Segunda questão: como é que isto aconteceu? Uma resposta possível pode estar no aumento de imigração brasileira. Segundo os Censos 2021, os cidadãos brasileiros são a maior comunidade estrangeira a residir em Portugal, com cerca de 200 mil residentes — no estudo populacional anterior, em feito em 2011, eram cerca de 110 mil cidadãos de nacionalidade brasileira. O SEF estima que vivem 250 mil brasileiros em Portugal e confirma que é a comunidade estrangeira com maior crescimento: entre 2020 e 2021 houve um aumento de 11,6%; e entre 2021 e 2022 assinala-se um crescimento superior, de 23,1%. Segundo a Folha de São Paulo, “o número de brasileiros no país já é 210% superior ao de 2016”, com uma atenuante: estes números não incluem cidadãos de dupla cidadania ou com residência não regularizada.

A Associação Sociocultural Luso-brasileira de Apoio à Integração em Portugal (UAI) descreve um novo perfil desta vaga migratória: “Mais famílias inteiras a mudarem-se do que pessoas individuais em busca de uma vida melhor, o fator inicial da imigração”. Este ponto é relevante, tendo em conta que os serviços de streaming como o Spotify são consumidos maioritariamente por uma faixa etária entre os 18 e os 35 anos — os dados disponíveis não contemplam menores de 18 anos. Ao aumento da imigração brasileira junta-se, naturalmente, o crescente gosto dos jovens portugueses pelo funk, como comprovam os dados contabilizados de ano para ano. No entanto, convém sublinhar, não existem estudos que demonstrem uma correlação direta entre a imigração e a alteração dos hábitos de consumo musicais portugueses.

Uma pandemia e a música portuguesa em queda livre

Um conluio entre uma multidão de miúdos devotos do funk e 250 mil brasileiros pode explicar uma alteração nas canções de sucesso? Outra possibilidade está na análise, em contraponto, com a música que decresce de popularidade e abre o espaço ao domínio brasileiro. Segundo o Spotify, cada vez se consome mais música portuguesa: “Relativamente ao ano passado, os utilizadores portugueses consumiram mais 37% de música local.” No entanto, as canções mais ouvidas em 2022 contam uma história completamente diferente.

Ivandro é o primeiro artista nacional na lista deste ano de canções mais ouvidas no Spotify em Portugal, com "Lua"

Entre os temas analisados do Top 10 semanal do Spotify em 2022, somente 15% são portugueses. Esta parca representação nacional também pode justificar a presente soberania brasileira. Em 2019, revelámos que 47% do top era música portuguesa, em particular o hip hop tuga — um acréscimo notório em relação aos anos anteriores, que nos fazia acreditar num período de prosperidade da música portuguesa. Infelizmente, um desastre bíblico intrometeu-se na estabilização do hip hop português nesta contabilidade: a Covid-19. O Instituto Nacional de Estatística (INE) comprovou que a pandemia afetou particularmente o setor cultural, sobretudo em 2020, com uma quebra de 100,4 milhões de euros nas receitas de bilheteira dos espetáculos ao vivo. A queda acentuada do consumo cultural português em 2020 refletiu-se no streaming, com a música portuguesa a representar uma descida para 19,5% do Top 10. No ano seguinte, prosseguiu a tendência de queda: 11%. Hoje, os 15% de música nacional são uma ligeira recuperação e devem-se fundamentalmente ao R&B açucarado de Ivandro.

O consumo decrescente de música portuguesa faz-nos refletir até que ponto estamos condicionados por meia-dúzia de nomes fortes, desde Ivandro a Wet Bed Gang — por exemplo, se retirarmos as canções de Ivandro da equação, a música portuguesa seria apenas 3% em 2022. O canto melancólico de Ivandro é um fenómeno extraordinário de popularidade, seja como artista solo ou ao lado de Bárbara Bandeira — “Como Tu” foi a única música portuguesa a alcançar a posição cimeira, com três semanas seguidas na liderança. Ao contrário do que sucedeu em 2019 e 2020, as canções populares nacionais não refletem uma “cena” musical de sucesso, apenas artistas avulso que conseguem romper o mainstream — se este ano foi dominado por Ivandro, no ano passado foi repartido por Yuri NR5, Gama WNTD e Wet Bed Gang.

O panorama da música em 2022 também foi marcado pela contaminação de elementos externos, como o renascimento de uma canção com 37 anos, “Running Up That Hill” de Kate Bush, à boleia da quarta temporada de “Stranger Things”; ou os trechos de músicas virais no TikTok que se infiltraram nos tops.

Por outro lado, o contexto deste consumo decrescente de música portuguesa é muito particular: uma pandemia. Até que ponto a música portuguesa depende do contacto direto dos palcos? Segundo o artigo académico “Um Requiem pelas músicas que perdemos”, das sociólogas Paula Guerra, Ana Oliveira e Sofia Sousa, da Universidade do Porto, existem algumas evidências a considerar. As sociólogas definem “música”, “por natureza”, como uma “produção artística que carece de um encontro físico, isto é, trata-se de uma expressão artística que ganha ímpeto nas interações entre o público e os músicos”; e descrevem o cenário musical português como essencialmente “precário”. Neste contexto de precariedade e sem apresentações ao vivo, relatam que parte dos músicos portugueses “deixaram de sentir motivação para a criação de novos conteúdos artísticos”, “deixaram de ter um objetivo para criar”.

Menos hip hop e mais mambo

A música portuguesa não foi a única a encolher entre as canções populares. Em comparação com os últimos quatro anos, 2022 foi o ano em que os portugueses ouviram menos canções norte-americanas — mais uma pista para o atual domínio da canção brasileira. Os EUA representam apenas 10,5% das canções — em 2018, por exemplo, eram metade. O resultado da queda de consumo da música portuguesa e norte-americana é o tombo da popularidade do hip hop em Portugal, qual bola de neve — em 2019 o hip hop representava 60% das canções do Top 10; em 2022 é somente 5%. Há analistas que arriscam uma previsão global: podemos estar diante do fim do hip hop no cume da montanha. Em contrapartida, é um momento de uma maior paleta musical e os portugueses em 2022 atiraram-se à guaracha e ao mambo. Que o diga Rosalía:

“La noche esta larga
La noche está buena
Mambo violento

Y fin del problema”

Harry Styles Performs On His European Tour At AccorHotels Arena, Paris

Harry Styles é o primeiro artista anglo-saxónico a surgir nesta lista, em terceiro lugar, com a canção "As It Was"

Helene Marie Pambrun via Getty I

O retrato geral da música mais ouvida em Portugal é de canções feitas por homens a solo. O sexo masculino continua a representar a maioria das canções de sucesso — 82% do Top 10 são homens — e os artistas a solo correspondem a 66%. A tendência masculina é global e não surpreende que as plataformas de streaming não revelem publicamente esta brutal disparidade de género. No entanto, há uma novidade em território português, alguém identificado como não binário está entre as canções mais ouvidas: Sam Smith.

O panorama da música em 2022 também foi marcado pela contaminação de elementos externos, como o renascimento de uma canção com 37 anos, “Running Up That Hill” de Kate Bush, à boleia da quarta temporada de “Stranger Things”; ou os trechos de músicas virais no TikTok que se infiltraram nos tops. É outra peripécia do mundo do avesso: a décima canção mais ouvida em Portugal nestes moldes é uma música espanhola com dois anos que nunca teve qualquer história neste lado da península. De resto, Portugal segue outras tendências globais: a canção com mais streams do mundo, “As It Was” de Harry Styles, é a terceira mais ouvida em Portugal; “Heat Waves” de Glass Animals e “Enemy” de Imagine Dragons também estão na lista.

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